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Cidade quase esvaziada: coronavírus deixa Salvador irreconhecível em domingo de sol

Praias, parques e áreas de convivência ficam vazias após restrições para combate à Covid-19

  • Foto do(a) author(a) Alexandre Lyrio
  • Alexandre Lyrio

Publicado em 23 de março de 2020 às 05:00

 - Atualizado há 2 anos

. Crédito: Marina Silva/CORREIO

Sombreiros uns por cima dos outros, calor, mergulho em águas calmas, queijo coalho, cerveja, caipirinha, camarão do João, picolé Capelinha e várias JBLs tocando de sertanejo a pagodão. Esse seria o Porto da Barra em um domingo de sol. É assim desde que a gente se entende por gente. Ontem não foi. Às 11h de um domingo de céu aberto, apenas pombos imunes ao coronavírus ciscavam na areia. Nas quatro escadas de acesso à praia, tapumes colocados pela prefeitura avisavam: “Praia Interditada. Decreto Municipal 32272/20”. 

O primeiro domingo de sol sob ameaça da Covid-19 revelou uma Salvador sem vida, mais vazia que em uma quarta-feira de cinzas ensolarada ou em uma semana de São João, onde grande parcela da população vai para o interior. A cidade ficou irreconhecível em diversos locais. Foi a maior prova de que, por mais beleza que a capital baiana tenha, o que dá vida a ela é o povo. Mesmo os que se arriscavam a sair e visitar os pontos que mais costumam encher aos domingos, mesmo esses estavam com “cara de enterro”. A saída de casa foi um respiro. Um respiro perigoso, mas um respiro. 

O serigrafista Itamar Santos, 42 anos, não aguentou passar o dia sem montar na sua bicicleta, a qual costuma utilizar três vezes por semana. “Eu já tô em casa há vários dias e não me privei hoje de dar uma volta de bike. Estou um pouco saturado. Preciso cuidar da minha parte física para o corpo absorver esse impacto”, argumentou, visivelmente triste. “Cara, um desalento. Fora do normal uma situação como essa. A gente tem que repensar muita coisa. Já tá impactando na vida de todo mundo. Tomara que não deixe tantas sequelas”, torce.  

Assim como Itamar, algumas pessoas não dispensaram o cooper ou caminhada, muitos de máscara. A comerciante Cláudia Silva, 51 anos, não deixou de sair com sua cachorrinha, Magali, da raça akita. “A rua tá vazia. Tenho que sair com ela de qualquer jeito. Quando chego em casa lavo o focinho e as patinhas. Tá tranquilo por enquanto”, disse Cláudia, que tem dois restaurantes na área do Porto da Barra. “Tá aberto, mas só tem os funcionários. Muito prejuízo”. Fora esses gatos pingados na Orla, os locais mais procurados nos domingões estavam às moscas. Não teve batida de perna ou o sorvete no shopping, não teve música no Parque da Cidade, não teve acarajé no Rio Vermelho ou Itapuã. 

As praias, principal opção dos baianos no final de semana, estavam desertas. Valia pelo cenário ainda mais paradisíaco. “Aí que a gente vê que a praia de Piatã é linda, sem aquela muvuca”, disse um homem que passava. Na Barra, turistas vestidos com cangas e shorts observavam tudo desolados das portas dos hotéis. O casal de suíços Beat Suter, 75 anos, e Annette Suter, 80, se arriscaram para registrar uma selfie em uma da pontas do Porto da Barra. Tiveram o vôo de volta cancelado e ficaram presos em Salvador. Alugaram um apartamento em Praia do Flamengo para passar um mês. “Estamos bem. Pelo menos aqui tem sol e calor”, disseram, sorridentes. 

Em Ondina, ao lado do Restaurante Sukiaki, agentes da Semop e da Defesa Civil davam “uma chamada” por megafone alguns poucos que chegaram a pular os tapumes das praias para dar um mergulho. “Cidadão: a praia está interditada! Favor sair da praia. Por favor cidadão, peço que se retire imediatamente!”. “Graças a Deus tá funcionando. A população tá, aos poucos, entendendo a mensagem de que tem que se proteger e proteger a quem ama. No caso das praias, elas ficaram vazias. Encontramos algumas pessoas que burlaram a determinação, mas respeitaram o nosso chamado. Sempre tem os que burlam, né?”, afirmou Adriano Silveira, diretor da Secretaria Municipal de Ordem Pública (Semop).    

Tem mesmo. Em uma das praias em que a Semop atuou, quando o CORREIO passou novamente pelo local, cerca de uma hora depois, outras pessoas também haviam burlado o decreto municipal. Dois homens jogavam frescobol e outros dois faziam um “salãozinho” enquanto esperavam a galera para “bater o baba”. Mas nenhum evento parece ter reunido tanta gente quanto a tradicional Feira do Rolo, na Baixa do Fiscal. Enquanto as principais avenidas e praias seguiam vazias, os mesmos fiscais da Semop flagraram mais de 800 pessoas reunidas na feira. Além da grande quantidade de gente, com a ajuda da Guarda Municipal e Polícia Militar foram apreendidos dois caminhões de material irregular.

"Acabamos de fazer uma operação agora na Baixa do Fiscal. Tem uma feira, a Feira do Rolo, que devia ter mais ou menos umas 800 a 1 mil pessoas. Fizemos um trabalho de conscientização, apreendemos muitos materiais irregulares que estavam sendo comercializados e fizemos a dispersão", disse Adriano Silveira. Nos poucos lugares abertos, como supermercados e restaurantes, os funcionários trabalhavam preocupados. Muitos estavam de máscara para receber os clientes. Mas, nem todos. Caixa do supermercado Mix Bahia, na Graça, Andréa Gomes disse que optou por não usar máscara porque “fica sufocada”. “Mas acho que o certo era usar, né?”. Pouco antes, um caminhão do Corpo de Bombeiros com a sirene ligada passava pelo local com um carro de som à sua frente. “Faça a sua parte. Quarentena não é férias. Ajude a diminuir a contaminação por coronavírus nos bairros. Permaneçam em suas casas”.

Seguindo pela Orla, os bares e restaurantes que costumam ficar mais cheios aos domingos estavam completamente vazios. Quem diria que o Rei do Pirão, que faz fila na porta, estaria do jeito que encontramos. Em um final de semana, o restaurante recebe em torno de 800 a 1 mil pessoas. Ontem, no início da tarde, não havia atendido nem 15 mesas. O estabelecimento tenta reduzir um pouco o prejuízo com entregas delivery. “A redução é de 95% na casa. Delivery tá bombando, mas não compensa”, disse Deraldo Pereira, gerente.   

Se tá ruim para eles, imagine para os pequenos comerciantes. Na porta do Parque da Cidade, o vendedor de picolés Isac Correia, 51 anos, havia vendido quatro unidades em um dia que normalmente venderia cem ou 120. “Tá bem difícil. Como é que sustenta a família desse jeito?”. Em Piatã, também cercada pela Semop, o vendedor de castanhas também não encontrou ninguém para apreciar a especiaria “importada” de São Felipe, no Recôncavo. “Vim da Barra até aqui de ônibus vendo se tinha gente em alguma praia. Tô voltando pra casa depois de vender duas porções dessa. Costumo vender 30”.

“Nunca houve algo dessa proporção em toda história de Salvador”, diz historiador

Não existe comparação do que está acontecendo em Salvador hoje em relação a qualquer fato ou evento que já tenha ocorrido em toda a história. A única epidemia capaz de fazer os soteropolitanos também se trancarem em suas casas, mas em proporção menor, foi a epidemia de cólera no século 19, que atingiu a capital baiana especialmente no ano de 1895. A constatação é do historiador Jaime Nascimento, do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB).

“A gripe espanhola matou muita gente, mas foi muito mais na Europa. Aqui o que matou mesmo foi o cólera, em 1855. O cólera matou um terço da população da Bahia. Dezenas de milhares de pessoas. É a única comparação que se tem de uma epidemia que realmente fez um grande estrago na cidade”. Segundo o professor, não houve um isolamento compulsório decretado pelas autoridades públicas, mas, em desespero, boa parte das pessoas se trancou em suas casas. “Criou-se uma sensação de desespero. Afetou a cidade psicologicamente e materialmente”.

“Porque na verdade não se sabia de onde vinha. Não se sabia que era um vírus ou bactéria. Para eles tudo era peste. Febre amarela ou cólera era tudo peste”. Muitos dos doentes foram levados para o então Hospital de Isolamento, onde hoje é o Instituto Couto Maia. Jaime Nascimento cita o livro A Morte é Uma Festa, de João Reis, em que aspectos daquele momento de pânico coletivo é descrito.

Morreu tanta gente que não se tinha onde enterrar. “Foi a partir daí que surgiram os cemitérios fora de igrejas. Não havia onde enterrar os mortos. O Campo Santo tava para ser inaugurado. As irmandades que ganhavam dinheiro com a morte se revoltaram e se viram ameaçadas porque começou-se a construir cemitérios”. A grande semelhança é que, assim como corona, o cólera também não escolhia vítimas. “Como dessa vez, não havia distinção entre classe social, o cólera pegou todo mundo”.

A diferença dessa vez, diz o professor, é o acesso antecipado à informação proporcionado pelo mundo contemporâneo. “Esse mundo da informação antecipada criou uma realidade híbrida e antagônica. A gente tem acesso à informação, fica sabendo o que já aconteceu em outros lugares, já sabe como evitar, mas por outro lado permanece uma resistência da população em não acreditar que isso é real. No século 19 não havia informação, as pessoas foram pegas de surpresa. Dessa vez temos a chance de minimizar o estrago. Espero que as pessoas levem a sério o que está acontecendo”.