Conheça a cientista baiana que pesquisa moscas de fruta na ONU

Formada em Biologia pela Ufba, ela trabalhou no McDonald’s durante a faculdade e hoje coordena projetos na Áustria

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  • Thais Borges

Publicado em 13 de novembro de 2021 às 15:55

- Atualizado há 10 meses

. Crédito: Foto: Acervo pessoal
Vanessa defendeu o doutorado em 2018 por Foto: Acervo pessoal

A bióloga e pesquisadora baiana Vanessa Dias, 36 anos, sempre soube que não poderia desperdiçar oportunidades. Foi assim quando decidiu trabalhar no McDonald’s, ainda no final do Ensino Médio, para conseguir pagar o cursinho pré-vestibular e quando se tornou bolsista de iniciação científica na Universidade Federal da Bahia (Ufba). 

Essa atitude não mudou em nenhum momento - nem quando encarou um estágio na Áustria, sem falar inglês, para tocar o mestrado, ou quando embarcou para quatro anos de doutorado na Universidade na Flórida, nos Estados Unidos. Por isso, não seria diferente quando se candidatou à vaga que a transformaria em uma das principais entomologistas - uma cientista que estuda insetos - da Agência Internacional de Energia Atômica (IAEA, na sigla em inglês), da Organização das Nações Unidas (ONU), na Áustria, onde está hoje, com projetos com a mosca de fruta."Eu era muito cara de pau e nunca disse ‘não’, independente de estar despreparada. Você não pode se sentir preparada para aceitar as oportunidades. Você vai se preparar no caminho, mas tem que ter humildade para saber suas limitações. Não pode tentar enganar alguém com algo que você não sabe. Com o idioma foi assim. Eu não sabia, não sabia, e fui melhorando. Nunca parei nem deixei a dificuldade me definir", diz ela, em entrevista por telefone. Em casa, ninguém tinha feito faculdade antes. A mãe, que concluiu a escola aos 50 anos, é aluna de Serviço Social na Ufba aos 66 anos. Um dos irmãos, policial militar, cursa Psicologia. "Não fazia parte da minha realidade saber o que era mestrado, doutorado, pesquisa, nada disso", lembra. Na época, morava no Cabula, perto da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), onde o resto da família ainda vive. 

No Ensino Médio, ainda aluna do Colégio Estadual Thales de Azevedo, era o momento de decidir o que fazer. Para Vanessa, era cada vez mais certo que precisava estudar. No entanto, em 2003, sabia que seria difícil entrar em uma faculdade pública. Naquela época, ainda não existia o sistema de cotas, que só viria a ser implementado na Ufba no final do ano seguinte para estudantes que começassem a estudar em 2005. 

Foi quando os recrutadores do McDonald's estiveram no colégio, e Vanessa decidiu que aquilo seria uma oportunidade. Tinha tentado o vestibular para Enfermagem na Ufba, mas não tinha sido aprovada. Com o dinheiro do trabalho no Mc, planejava pagar o cursinho pré-vestibular. 

Assim, durante todo o ano de 2004, ela ia às aulas de manhã e, logo em seguida, à tarde, saía para trabalhar. No mesmo ano, foi aprovada na Ufba para fazer Biologia. 

"Comecei a faculdade com 19 anos e foi quando minha vida mudou em todos os sentidos. Eu já era boa aluna, mas lembro que durante a graduação foi muito difícil. Tive que sair do McDonald's e me manter com auxílio desemprego logo no início", conta. Depois dos seis meses de auxílio, ela passou outro semestre sem nenhum suporte. "O que me segurou na faculdade foi a bolsa de iniciação científica", diz Vanessa.  Vanessa entrou na iniciação científica durante a graduação na Ufba (Foto: Acervo pessoal) Iniciação na pesquisa Na época, o plano dela era cursar matérias de Saúde e fazer uma transferência interna para algum curso na área. Mas, ao mesmo tempo que as disciplinas de Saúde não despertaram tanto interesse, as de Biologia superaram as expectativas - especialmente devido à oportunidade de pesquisa. 

O caso de Vanessa é um exemplo da importância da iniciação científica para alguém decidir tocar essa carreira. No especial Cérebros da Ufba, publicado pelo CORREIO no ano passado sobre 20 pesquisadores 1A do CNPq na instituição - o mais alto degrau da pesquisa no Brasil -, ao menos cinco deles começaram como bolsistas na graduação. 

Em 2020, havia 1.290 estudantes recebendo bolsas de iniciação científica na Ufba, concedidas por diferentes agências de financiamento. Na época de Vanessa, o valor era de R$ 300. Hoje, elas pagam R$ 400 - uma quantia que não tem reajuste há mais de dez anos, apesar da inflação.  O interesse pelos insetos veio logo nos primeiros anos da graduação em Biologia (Foto: Acervo pessoal) Uma das primeiras professoras que teve contato no curso - a professora Iara Bravo, que acabou sendo sua orientadora - tinha alguns insetos no laboratório. Vanessa logo se apaixonou por eles. Com a iniciação científica, conseguiu se manter pagando as despesas que iam de cópias de textos na xerox à alimentação. 

Foi na iniciação científica que passou a ter contato com pesquisadores de fora da instituição, enquanto ajudava num trabalho sobre a dieta de insetos criados em larga escala em uma empresa de Juazeiro. Os insetos tinham uma alimentação que custava R$ 300 por quilo. Depois dos estudos, conseguiram reduzir os custos para R$ 8 por quilo sem perder a eficácia. "Nessa época, fazendo parte do processo, eu tive que viajar para Juazeiro para ajudar no experimento de larga escala. Lá, encontrei um rapaz da IAEA, porque ela tem projetos de vários países". Vanessa acabou apresentando sua pesquisa individual lá e voltou a Salvador. Faltando dois meses para se formar, sua orientadora recebeu uma ligação: era de um dos pesquisadores que estavam em Juazeiro, com uma oportunidade de trabalho para ver a compatibilidade sexual de moscas de fruta numa determinada região. A técnica é importante porque liberar insetos estéreis para acasalar com os férteis ajuda a controlar a população com uso mínimo de pesticidas. 

A indicação de Vanessa veio quase naturalmente. Por telefone, o cientista perguntou como era o inglês dela, já que a oportunidade não era no Brasil, de início. Vanessa teria que ir para a Áustria para uma fellowship - uma bolsa - para o treinamento, antes de desenvolver o mestrado em si, na Ufba. 

"Falei que meu inglês era muito ruim, mas respondi 'se você me disser quanto tempo eu tenho, me preparo e ainda sento com você para bater um papo em inglês. Ele disse que precisava pelo menos que eu sobrevivesse, que pudesse dizer quando estava com fome", diz, aos risos. Mas o prazo era curto. Ela teria menos de dois meses para aprender a língua. Quando desligou o telefone, caiu a ficha. "Falei: meu Deus, o que eu fiz?". 

O jeito foi se inscrever em um curso intensivo de inglês. Hoje, ela acredita que não tenha ajudado muito na língua em si, mas fez com que ganhasse mais confiança. Um mês e meio depois, Vanessa viajaria de avião pela primeira vez - e já para fora do país.  Na época do primeiro treinamento na Áustria, Vanessa não falava quase nada de inglês (Foto: Acervo pessoal) Passou três meses na Áustria, andando no laboratório sempre com um dicionário de inglês e português debaixo do braço. Ela conseguia entender o que lia, mas ainda se batia com a fala. "No final desse estágio de três meses, tive que fazer uma apresentação. Fiz e todo mundo riu, porque eu trabalhava muito duro, mas minha leveza de baiana chamava atenção", conta.  A pesquisa do mestrado incluía a coleta de frutos com moscas, como esses de Bento Gonçalves (RS) (Foto: Acervo pessoal) Nos EUA Quando voltou ao Brasil, já tinha sido aprovada para o mestrado na Ufba e começou a tocar o projeto de compatibilidade sexual. No mesmo período, sua orientadora tinha conseguido aprovar um projeto apoiado pela IAEA e Vanessa chegou a viajar para os Estados Unidos para trabalhar com um pesquisador que tinha sido orientador do rapaz que a levou para a Áustria. "Lá nos Estados Unidos, foi a virada total. Meu inglês se desenvolveu e tive a transformação mais radical na minha profissão. Os americanos são muito bons em ter metas, trabalhar com propósitos e conseguir cumprir", avalia.Ela fazia a pesquisa de controle biológico com apoio do Departamento de Agricultura dos EUA (USDA, na sigla em inglês), na Universidade da Flórida. Só que ouviu de uma professora lá algo que ficou em sua mente. "Você vai fazer graduação, mestrado e doutorado na mesma universidade? Porque você tem perfil para pesquisa", perguntou a mulher, deixando implícito que seria válido ter uma formação em diferentes locais. 

Era uma pergunta chave para definir o futuro. Prestes a concluir o mestrado, o caminho mais natural seria aplicar para o doutorado na Ufba e seguir ali mesmo. 

"Eu trabalhei no McDonald's. Como que filha de pobre, de cabeleireira e cobrador de ônibus vai entrar na Universidade da Flórida, que tem o melhor curso de Entomologia do mundo? Era algo muito inatingível", reflete. "Para mim, também era como se eu estivesse traindo minha orientadora", acrescenta. 

Só que a resposta da orientadora foi no caminho inverso. A professora foi uma das maiores incentivadoras e disse que Vanessa deveria mesmo tentar. Ainda nos EUA, Vanessa conseguiu um orientador que disse que não teria dinheiro para bancar uma bolsa. No entanto, se ela trouxesse a bolsa, estaria disposto a orientá-la. Vanessa se inscreveu para o Ciência sem Fronteiras, programa que foi extinto pelo Ministério da Educação em 2017, e conseguiu que a Capes financiasse os quatro anos de doutorado na Universidade da Flórida. Cada ano custava quase 50 mil dólares, somando as mensalidades. "A Capes pagou tudo e sou extremamente grata por isso. Tenho muito orgulho de falar a qualquer pessoa que o Brasil fez isso pelos estudantes. Por isso é extremamente importante o financiamento para a ciência, porque o retorno que dei para o Brasil já se pagou".  Sua pesquisa no doutorado era com insetos transgênicos que produzem uma quantidade extra de uma enzima antioxidante. Esses insetos teriam uma resistência maior aos efeitos negativos da radiação. 

"Minha ideia era fazer esse inseto resistir mais à radiação. Eu avaliava o comportamento sexual e fiz toda a medida de feromônio. Eles usam um perfume e têm todo um repertório comportamental. Eles dançam como se tivessem dançando um pagode. A fêmea avalia se aceita ou rejeita o macho", explica. 

Mesmo com as dificuldades com o inglês, no começo, ainda no primeiro ano, ela recebeu o diploma concedido aos 6% dos alunos que tinham as maiores notas de toda a universidade - entre todos os mais de 50 mil estudantes de todos os cursos. 

Pesquisadores que têm doutorado pleno financiado pela Capes precisam de fato 'pagar' algo em troca. Uma das opções é permanecer o período do doutorado - no caso dela, quatro anos - no Brasil, pesquisando aqui. No entanto, os cortes na ciência nos últimos anos têm tornado essa opção inviável para a maioria dos cientistas do país. No mês passado, o jornal mostrou como muitos jovens pesquisadores saído do Brasil devido à falta de oportunidades de trabalho, bem como à falta de investimentos em pesquisa em geral. 

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Vanessa conseguiu aprovar um projeto de inovação, que é um tipo de retorno em forma de serviço. Ela ajudou a elaborar projetos, presta consultoria para grupos no país, colabora com um grupo de pesquisadores do Amapá que desenvolve tratamento fitossanitário para a mosca da carambola e costuma levar estudantes brasileiros de doutorado para estágios na Áustria. 

Na Flórida, ela conseguiu fazer um doutorado sanduíche justamente na IAEA no último ano da formação. "Muita gente que tinha me visto há dez anos e gostado de mim se perguntava: 'como é possível isso?'. Mas a educação transforma pessoas. Eles ficaram impressionados", explica. 

Por coincidência, havia uma vaga em aberto na agência. Eles estavam procurando um consultor para um projeto de um acordo com a USDA, mas Vanessa ainda não tinha defendido o doutorado. A bolsa estava prestes a acabar. "Eu não sabia qual seria meu salário no próximo mês".

Ela foi chamada para ser a consultora e também esperava o resultado de uma seleção para ser professora em uma community college (faculdade comunitária) na Flórida. Foi aprovada nos dois. "Na ONU, seria temporário. Era um contrato de dois anos. Mas falei ao meu orientador que meu sonho era trabalhar lá", conta. 

Nações Unidas Os dois anos de contrato como consultora na ONU acabaram sendo ampliados para três. Depois, no ano passado, ela se tornou funcionária efetiva da própria agência.  

A entrevista para a vaga definitiva na agência foi marcada para o dia do parto da filha. "Mas eles adiaram. Fui para a entrevista 10 dias depois, com ela mamando", lembra. 

Desde então, Vanessa é entomologista para tratamentos fitossanitários para mosca de fruta na ONU, coordenando projetos como o acordo com a USDA. Além de desenvolver os projetos, a rotina de Vanessa é garantir que eles aconteçam. "Tratamento fitossanitário é o que você aplica quando colhe o fruto. Ou seja, é depois da colheita, para você exportar de uma região que tem uma praga para outra que não tem, para evitar a entrada dessa praga onde ela não existe", explica. Esses tratamentos podem ser aplicados de várias formas. Uma das mais famosas é a forma química, como a que usa fumigantes - ou seja, pesticidas - e que há um movimento em todo o mundo para que acabe. Há tratamentos físicos com calor e frio (o Brasil, por exemplo, exporta frutas para a Europa usando tratamento hidrotérmico de temperatura).  Desde o ano passado, ela é funcionária da Agência Internacional de Energia Atômica, onde já trabalhava como consultora há três anos (Foto: Acervo pessoal) "E tem o tratamento com radiação, que é o carro-chefe da gente aqui. Nossa posição é de aplicar a energia nuclear para fins de paz e desenvolvimento. A gente aplica a energia nuclear para a agricultura", acrescenta Vanessa. 

As pesquisas desenvolvidas pelo grupo de Vanessa são, principalmente, comparativas. Por exemplo, ela avalia se é melhor irradiar de forma mais rápida ou mais lenta uma mesma dose e se isso teria o mesmo efeito. 

"Minha rotina é estudar, escrever experimentos, escrever paper (artigos científicos), mentorar e conversar com pessoas", lista. "Eu amo o que faço. Na minha posição, a gente tem um período máximo de sete anos. Depois, temos que parar por ano para qualificação e entrar na agência de novo, se for do interesse deles". 

Quando esse período como efetiva acabar, ela ainda não sabe como vai ser. Não descarta, por exemplo, voltar aos Estados Unidos como pesquisadora ou mesmo para o Brasil. Para Vanessa, cientistas têm obrigação de fazer um bom trabalho independente de onde estejam - e das circunstâncias em que esse trabalho tem sido feito. 

"Meu próximo passo será ficar para sempre, porque já são 13 anos em países diferentes. Não descarto ser professora no Brasil, mas agora não tem dinheiro para pesquisa nem de quem já está aí. Eu sou muito grata ao meu país, tenho muito orgulho da minha formação e quero dar retorno sempre que puder, com a minha pesquisa", diz.