Conheça a história da Casa Amarela, o único casarão na encosta da Baía

Erguida no século 19, construção passará a integrar píer de edifício de luxo do Corredor da Vitória

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  • Fernanda Santana

Publicado em 14 de agosto de 2021 às 05:35

- Atualizado há um ano

. Crédito: Isadora Sodré/Divulgação

Envolta ao verde da mata, sob os arranha-céus que se projetam acima, há uma - e somente ela - Casa Amarela. Ela desconhece vizinhos e, desde 2014, não tem moradores. É como uma ilha que sobreviveu ao tempo, protegida por um muro de pedras que contêm o mar.   O imóvel será entregue, neste mês, como parte do píer da Mansão Wildberger, no Corredor da Vitória, construída no lugar de um casario que hoje dá nome ao edifício de 40 andares, o mais alto de Salvador.

A Casa Amarela, que agora terá uma piscina à frente e uma ponte que leva para o mar, era o último casarão do século 19 habitado no bairro e o único que sobreviveu naquela área de onde os ingleses gostavam de acompanhar, por interesses comerciais, a movimentação portuária.  Casa Amarela fará parte do píer da Mansão Wildberger (Foto: Paula Fróes/CORREIO) Há duas formas de ver a Casa Amarela: pelo mar ou de um dos apartamentos mais ao oeste do Corredor da Vitória. De costas para a cidade, as janelas azuis dela dão para um horizonte de água.

Na década de 70, o empresário cubano Daniel Solis velejava por ali e avistava o imóvel. O estrangeiro tinha acabado de chegar a Salvador, para a construção do Hotel Hilton, o que nunca aconteceu, e ficava deslumbrado com a composição de mar, mato, construção e encosta.    Durante quinze anos, trocou de endereço duas vezes com esposa e filhos, mas não desistiu de encontrar o dono do sobrado. Procurava, perguntava nomes, sem desvendar quem era o proprietário, que depois se revelou o advogado paulista Benedito Patti. Numa das viagens de trabalho que fazia a São Paulo, Daniel, coincidentemente amigo de um genro de Benedito, soube que o advogado queria vender a casa. Era a oportunidade que buscava.“De início, eu não pensava em morar, a ideia era passar o dia. Mas a gente foi se adaptando”, lembra.A Vila Brandão já existia, mas era uma comunidade menor e ainda longe dos olhos do turismo, sem estrada que levasse à Casa Amarela. A família Solis - Daniel, Lucy e três filhos - descia a pé ou de carro Toyota Bandeirante, para passar o dia. Os cinco moravam de frente para o mar, e Lucy não gostou, de pronto, quando o marido apareceu com ideia de se mudarem para o novo endereço. A residência estava em pleno isolamento. Depois, ela cedeu, e todos se mudaram em 1990.    Durante a reforma que antecedeu a mudança, a estrutura foi preservada e um anexo lateral térreo adicionado. A estradinha de pedras que existe na entrada da Vila Brandão foi construída pela família de origem cubana àquela época, para conectá-los à residência. Instalados, precisaram se acostumar. Morar na Casa Amarela era como viver numa "obra de arte”, metaforiza o artista plástico José Ignacio Solis, filho de Daniel.“Levamos um tempo para nos acostumarmos ao tempo bom e ao tempo ruim. Era uma experiência sui generis [morar lá]”, define ele, responsável pelo estudo da tipologia e das características da casa para a reforma. Separada do mar apenas por um muro de pedra e rodeada de mato, não há qualquer outro casarão habitável, daquele porte e com aquele entorno, em Salvador. Os únicos sons que chegam à Casa Amarela são das ondas que batem no muro de pedras - “um dissipador de energia”, como Daniel gosta de chamá-lo - e do vento, que fica mais intenso em dias de chuva.

“Dois arquitetos tinham sido buscados por meu pai e eles queriam construir outra casa”, lembra José Igna. Tanto quanto possível, as estruturas foram mantidas, exceto pela retirada de divisões internas, e a casa ficou com quatro quartos, três salas e 400 m de área.

Quando os filhos cresceram, e Daniel e Lucy perceberam que era hora se mudar, uma exigência foi feita no contrato de venda para o Consórcio de construtora MRM e João Fortes Engenharia, que construiu a Mansão Wildberger: a Casa Amarela não poderia ser demolida, nem modificada. Deveria permanecer da forma que a deixaram e para sempre pintada de amarelo.

Tombamento chegou a ser planejado   Os primeiros registros que se têm da Casa Amarela datam de 1830. Os documentos levam à conclusão de que ela foi construída pelo cônsul inglês William Pennel, enterrado no Cemitério dos Ingleses, a um quilômetro da residência. O estrangeiro é citado num estudo inglês do Centro de Estudos Brasileiros da Universidade de Oxford, assinado por Louise Guenther, como “provavelmente o melhor documentador britânico na Bahia no século 19”.

A maioria dos ingleses, como documenta o estudo, moravam na Vitória, que dava para o mar onde navegavam as embarcações com mercadorias ou africanos escravizados. Nessa época, a pintora inglesa Maria Graham esteve num sarau na casa, onde ficou admirada pelo fato de ela “pender à Baía” e que, atrás, existissem “flores e frutas que se misturam até a beira d’água".  Uma das ilustrações de Salvador feitas por Graham. Ao fundo, a Igreja de Santo Antônio da Barra (Imagem: Reprodução) Não se sabe ao certo o que ocorreu depois da morte de Pennel. Nos registros do Museu Carlos Costa Pinto, no Corredor da Vitória, constam que 16 propriedades do Beco do Wilson, então um dos acessos para a Casa Amarela, além do desembarque de barco, foram vendidas a Carlos Costa Pinto, pelos herdeiros de José Ventin Duran. Tudo indica que o novo dono usava a casa como apoio para seus passeios de lancha.

A residência estava num local privilegiado não só pela vista ao mar, que só se tornou um atrativo imobiliário na década de 80, mas pelas nascentes de água no terreno. Antes da inauguração da barragem de Pedra do Cavalo, em 1985, na cidade de Cachoeira, Salvador sofria sucessivas crises de desabastecimento. Dispor de uma nascente era um diferencial.

A Casa Amarela permaneceu com a família Costa Pinto até Margarida Costa Pinto, viúva de Carlos, vendê-la a Benedito Patti, no início da década de 60. O advogado tinha chegado em Salvador com a família, para passar férias, e estava encantado com a cidade, onde queria ter uma casa de veraneio. 

O arquiteto Paulo Ormindo de Azevedo foi quem sugeriu a Casa Amarela como opção. Pouco tempo antes, ele, que era estagiário da Secretaria de Patrimônio Histórico Nacional - mais tarde chamado de Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) -, esteve na casa para avaliar um possível tombamento que não foi adiante.“A casa estava em ruína. Seria interessante recuperá-la como testemunho de uma residência urbana com um pavilhão à beira mar. Saímos de barco e a família Patti se maravilhou. Ele entrou em contato com dona Margarida e a comprou”, recorda.A família Patti nunca chegaria a passar verões na Casa Amarela. Em 1964, com o Golpe Militar, Patti foi preso, e não retornou à Bahia. A venda da Casa a Daniel permitiu que ela não afundasse no arruinamento que o arquiteto Paulo tinha previsto. Depois da morte de Margarida Costa Pinto, em 1979, no entanto, uma briga judicial entre os Solis e os Costa Pinto teve início. Os herdeiros da falecida afirmavam que inexistiam provas da venda. “Encontramos um documento que comprova que ela tinha vendido a residência”, conta José Ignacio.

As visitas não eram muitos constantes à casa dos Solis, cercada ao fundo por um muro azul onde está grafado o nome “Casa Amarela”. “A casa intimidava”, conta Ignácio. E intimidava tanto que nem ladrões se atreviam a aparecer. Mas não intimidava os Solis, que viviam na cidade, como se morassem numa ilha.

Tinham os vizinhos da Vila Brandão, mas, na prática, é como se estivesse longe de tudo. Ao acordar, Daniel ia para o mar “do melhor banho”, como ele considera, e depois ia trabalhar. Hoje, ele vive em um apartamento com a esposa, mas não demonstra saudosismo quando diz: “A Casa Amarela, como tudo na vida, foi uma fase".

O desaparecimento dos casarões Os bairros da Barra, Campo Grande, Corredor da Vitória e Graça eram os destinos favoritos da alta burguesia soteropolitana. Entre eles, o Corredor da Vitória era o protagonista, pela vegetação, que tornava o ar mais puro, e a possibilidade de construir casas recuadas da pista. "O Corredor da Vitória era o cartão de visitas da cidade, dessa burguesia que trazia portas, ornamentos e vasos vindos da Europa", elenca o historiador Rafael Dantas.

O Centro Antigo, no século 19, já não era mais tão interessante para os mais ricos. Era uma época de epidemias e as ruas estreitas, com casas grudadas, pareciam um pesadelo para a elite que queria se aproximar do higienismo e da arquitetura europeia. Entre o Corredor da Vitória e a Graça, principalmente, as famílias tradicionais ergueram seus casarios com estilos neoclássico e eclético.

A ruína das famílias nobres que antes dependiam do escravagismo, acompanhada da urbanização das cidades, reinventou a ordem e essas famílias migraram para bairros mais afastados, como o Itaigara. 

  

Aos casarões, que não eram tombados, não restou muito mais senão o chão. Os que sobrevivem, a maioria, foram convertidos em salões de festa ou de entrada de prédios de luxo. O Corredor da Vitória não possui nenhum casarão tombado pelo Iphan ou Ipac. Em 2005, um pedido de tombamento provisório aconteceu, mas não foi para frente. Hoje, 18 casarões sobrevivem no endereço, calcula Rafael Dantas. “Os tombamentos ocorrem muito mais em casas neoclássicas. A mentalidade não valorizava o eclético. Isso fez com que casarões, como o Wildberger, da família Calmon, e muitas outros, fossem demolidos”, diz. Como não há proteção federal nem estadual de casarões do bairro nem no Iphan, nem no Ipac, não é possível saber quantas foram demolidas e quais foram seus destinos. O Corredor da Vitória dos casarões começa a ser transformado no Corredor da Vitória dos prédios na década de 40, mapeia a arquiteta e professora da Universidade Federal da Bahia Luciana Guerra, com a emigração das famílias mais ricas. Píer se transformou em símbolo de luxo no bairro do Corredor da Vitória (Foto: Paula Fróes/CORREIO)  A classe média, portanto, chegou primeiro nesse ínicio da verticalização, e, só depois a classe mais alta retornou, com a liberação do gabarito dos edifícios, entre 1976 e 1987, que empurrou para o topo dos prédios da Vitória para o céu. Os valores da conservação e da modernização começam a surgir a partir daí, acredita Luciana. Hoje, o metro quadrado na Vitória custa até R$ 7,6 mil e é um dos mais disputados da cidade."​​O retorno da classe alta começa em 1987, com a construção do Carlos Costa Pinto, prédio mais alto, construído num terreno desmembrado pela família Costa Pinto, atrás do museu". O status social, antes denotado pelos móveis e adereços que atravessavam o Atlântico para ornamentar os casarões, passa a aparecer pelos próprios nomes dos edifícios - com palavras mansão, solar ou tower, como cita a arquiteta Luciana - e pelos decks privados no mar, ligados por teleféricos aos prédios. "O marco do luxo na Vitória é a questão do píer", opina Luciana. Atualmente, existem 16 píeres no bairro.

O primeiro prédio a ter um desses deques foi o Mansão Carlos Costa Pinto, nome do antigo proprietário da Casa Amarela, que agora também será parte de mais um deles.