Conheça Cacá Magalhães, a pequena diva baiana do jazz

Aos 12 anos, baiana impressiona com voz de gente grande

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  • Kátia Borges

Publicado em 28 de abril de 2019 às 03:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Renato Santana/CORREIO

Enquanto você lê esta matéria, um post despretensioso numa rede social vem acumulando números por segundos há uma semana. Até a manhã desta sexta-feira, cerca de três mil pessoas – mais da metade do público da Concha Acústica do TCA – havia compartilhado o vídeo que mostra a vocalista da banda baiana Terráquea interpretando a canção Get yo feet back on the ground, dos californianos da Tower of Power, criada nos anos 1960 pelo saxofonista Emilio Castillo. 

Os músicos da Terráquea são muito bons. A base de metais dos Skanibais, que toca com eles, é potente e o repertório, impecável – principalmente se você ama jazz-soul e blues. A razão do compartilhamento vertiginoso, no entanto, não é a qualidade inegável da banda e, sim, a interpretação de Ana Clara Magalhães, a Cacá, uma garota de 12 anos que surpreende pelo timbre grave e maturidade vocal. 

Mesmo quando cantarola distraidamente Stand By Me, dos Beatles, basta fechar os olhos por alguns segundos para imaginar-se diante de uma intérprete realmente madura. Ao abri-los, meio incrédulos, encontraremos uma garota tímida e sorridente que divide seu tempo entre as aulas na escola, o conservatório de música – onde estuda canto, piano, violão e guitarra – e três outras grandes paixões: futebol, skate e surfe.

Família musical  No amplo estúdio onde a Terráquea ensaia, instalado na casa do criador da banda, o músico norte-americano Lon Bové, Cacá recebe a reportagem de pés descalços, calça jeans, bata indiana azul e cabelos compridos. Olhando para ela, o pensamento viciado em referências oscila entre a Alanis Morissette de Hand In My Pocket e a Janis Joplin dos primeiros anos da Big Brother and the Holding Company.

Comparações, que por sua própria natureza costumam ser redutoras, não resistem a uma interpretação feita de improviso do clássico I Put a Spell on You, a canção visceral composta pelo bluesman Jay Hawkins nos anos 50 e gravada por uma pá de grandes divas da música, de Nina Simone a Annie Lennox. A verdade é que há muito mais referências aqui do que supõe a nossa vã filosofia. Alguém havia sugerido que ela cantasse Summertime antes? – não foi a repórter, juro. 

O clima é de tranquilidade e irreverência no estúdio. No fim da tarde, os músicos dos Skanibais chegarão para mais um ensaio com a Terráquea. Os pais e a irmã de Cacá também estão por ali, apreciando tudo. “A banda é uma extensão da nossa família”, comenta a mãe, a advogada Izabel Magalhães. Ela e o marido, o empresário João Mauro Nascimento, ainda estão se acostumando com a movimentação musical em torno da filha caçula, que vai ganhando cada vez mais profissionalismo. A primeira apresentação internacional deve acontecer ainda este ano na Costa Rica. A banda é uma extensão da família, diz a mãe de Cacá (Foto: Renato Santana/CORREIO) Adultos que gostam de jazz Cacá fala pouco. Longe de simular um discurso adulto e empolgado sobre seu processo criativo, prefere encarar com leveza a carreira que parece já ter nascido com ela ou, melhor, dentro dela. Pensar que tudo começou na casa do avô, escutando discos de “adultos que gostam de jazz” até sentir que poderia cantar também. Quem percebeu primeiro que havia algo esquisito foi Maria Júlia, 19, que via a irmãzinha cantarolando noite e dia pelos cantos da casa. E não, não eram músicas infantis.

É que, inspirada pelo que ouvia quando estava com o avô, ela foi se apaixonando pelos clássicos do jazz e do blues, aprendendo as letras e treinando sozinha até acertar o tom. O balé não havia dado muito certo. Um belo dia, a menina de 4 anos chegou na aula e entregou as sapatilhas à professora. “Não volto nunca mais aqui”, falou. E não voltou mesmo.  No ano seguinte, entrou para o Conservatório de Música Mozart, em Lauro de Freitas, onde mora com os pais. Ali achou a sua turma.

A segurança na escolha do repertório é o que mais surpreende o músico Heber Coutinho, que vem acompanhando a evolução de Cacá há sete anos no conservatório, onde dá aulas de violão. “Ao contrário de outras crianças, que tentam aprender aquilo que os professores sugerem, ela sempre trazia as músicas que queria tocar. Recentemente, fui a uma apresentação da Terráquea e confesso que fiquei emocionado”, diz. Foi assim também com Lon Bové, mescla de professor, amigo e mentor. Cacá e Lon Bové no estúdio onde a Terráquea ensaia (Foto: Renato Santana/CORREIO) Apesar da diferença de idade entre eles – coisa pouca, mais de meio século –, quem observa os dois ensaiando ou improvisando algum arranjo musical percebe que fazem parte da mesma tribo. Duplamente, aliás. Além de blues e jazz, amam pegar onda. Para Bové, que ousou colocar uma menina de 10 anos como vocalista de uma banda profissional, o que Cacá faz é dar passagem à música que existe no universo. “É essa conexão que a torna ainda mais especial”, diz.

O teste para entrar definitivamente na Terráquea, conta Bové, foi justamente o desafio de interpretar uma canção da banda Tower of Power. “Todos me diziam que ela cantava muito bem. Então dei a ela a letra de uma música deles e pedi que voltasse e cantasse para mim. É uma canção dificílima, até mesmo para artistas experientes. Ela fez a lição de casa e, ali, eu percebi que era realmente uma grande intérprete”. Um ano antes, quando ela tinha apenas 9 anos, olheiros do programa The Voice Kids, exibido no Brasil pela Rede Globo, entraram em contato com Izabel e João Mauro. Os dois decidiram que ainda não era o momento e recusaram o convite.

“I feel good” Dá certo medo pisar no palco? “Ah, todo mundo sente um pouco de vergonha”. Mas é só começar a cantar, ela diz, que tudo se transforma numa brincadeira de gente grande – ah, gente grande, leia-se, Nina Simone, Aretha Franklin, Etta James, Amy Winehouse, algumas de suas intérpretes prediletas. “Também gosto de Skank, Daniela e Ivete”, complementa sorrindo. E Saulo Fernandes, of course.

Começando a compor, em inglês e em português, Cacá já tem ao menos um reggae pronto que está sendo trabalhado aos poucos com os músicos. Planos para um primeiro álbum com a banda? “Virá no tempo certo”. Correndo sem pressa, ao largo da voracidade do mercado e da mídia, a Terráquea prefere se manter em contato mais estreito com causas ambientais e sociais. “Música com amor”, define Bové. 

Para a vocalista da Terráquea, definir o que sente ao cantar vai na mesma batida. “Não consigo explicar com palavras o que é a música na minha vida. Apenas me sinto bem”, resume. Professora de canto de Cacá desde os 4 anos, Stela Campos diz que o timbre dela sempre foi diferente, um timbre de adulto. “Definitivamente, não é algo comum numa criança. Eu diria que ela já nasceu cantora, é como se viesse de uma outra vida para completar algo iniciado antes”.  Aos 12 anos, Cacá estuda guitarra, piano, violão e canto (Foto: Renato Santana/CORREIO) Se for verdade, talvez justifique a obstinação com que ela se dedica a aprender. “Ela não vacila quando a pergunta gira em torno do que pretende. Música é a resposta. E, para isso, estuda guitarra, piano, violão, canto. Tudo com dedicação e disciplina”. A entrada na banda marcou o amadurecimento como intérprete. “Ela ficou mais segura, ganhou domínio de palco, aprendeu com os músicos a orientar os arranjos”.

Com os graves e a afinação naturalmente nos lugares certos, Stela conta que elas passaram a trabalhar bastante a tessitura da voz, na região dos médios e agudos, com um pouco de música erudita em meio aos blues. O resultado tem sido o ganho no domínio da potência vocal. “Penso que ela sabe porque cantar, e quando alguém sabe porque cantar tudo flui de um outro modo”, comenta Bové. 

Turtle blues Na agenda da banda Terráquea, há pelo menos dois grandes eventos este ano. O primeiro deles em prol da preservação das tartarugas em Punta Banco, na Costa Rica, cujos moradores trabalham ao longo de quatro meses cuidando dos ninhos sem qualquer recurso financeiro. Há também um espetáculo no qual a banda se juntará a corais de escolas públicas, repetindo um evento realizado no ano passado no Colégio Pinto de Aguiar, com apoio do cantor Saulo Fernandes. 

Shows menores, em formato de ensaio aberto, também estão na programação. Um deles acontecerá na Praça Tereza Batista em data ainda a ser marcada. O outro será no restaurante Crepioca, em Stela Mares, no dia 10 de maio. O bar Jazz na Avenida, na Boca do Rio, também receberá a Terráquea para uma apresentação acústica no dia 30 do mesmo mês. “Temos um time de músicos muito bom. Antes, o público ia aos shows só para ouvir nosso som, hoje vão para ver ela”, diz.

Sem dar a mínima para o possível peso dessa coisa toda, Cacá vai sintonizando com as pessoas por meio da música, e do modo mais simples e espontâneo possível. Com o fotógrafo Renato Santana – de uma família de músicos –, que fez as imagens desta matéria, ela dividiu algumas cantorias após o fim da reportagem. Teve até a premiada Shallow, de Lady Gaga, no repertório. Antes de irmos embora, vimos como descia com habilidade a rua do condomínio de casas, deslizando no asfalto em seu skate. 

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