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Yasmin Garrido
Publicado em 20 de setembro de 2018 às 05:00
- Atualizado há 2 anos
Vestido com uniforme do Barcelona, Nicolas, de apenas 9 anos, tinha acabado de voltar da aula de futebol, na quarta-feira (19), e não escondeu a felicidade ao contar à mãe, Marcelle Guimarães, que marcou um gol durante o treino. Ele mal tinha descansado de uma partida e já queria voltar à quadra do prédio onde mora, em Salvador. “Mamãe, vai ter mais foto ou eu posso jogar bola?”, perguntou o pequeno. >
Apesar da timidez, a criança não hesitou em convidar a equipe do CORREIO para jogar futebol. O clima era de tranquilidade, mas o que Nicolas, que nasceu em Houston, no Texas (EUA), não imagina é que a vida dele está envolvida em uma briga diplomática que parece estar longe de acabar: a mãe do menino é acusada pela Justiça americana de tê-lo sequestrado em 2013.>
A criança, que chegou em Salvador aos 3 anos de idade, descobriu durante uma aula de teatro na escola onde estuda que a história dele pertencia, na verdade, ao mundo. “Ele é tímido, mas adora teatro. E, durante uma das aulas, o professor estava fazendo uma pesquisa da origem dos sobrenomes dos alunos e, quando digitou o do Nico na internet, apareceram fotos e vídeos dele com o pai”, contou Marcelle Guimarães.>
O menino é filho de Marcelle com o americano Christopher Scott Brann. Eles se conheceram durante o mestrado que ela fez nos Estados Unidos e foram casados por cerca de quatro anos. Mas o casamento dos sonhos acabou se transformando em um pesadelo. Segundo Marcelle, o ex-marido a agredia, física e psicologicamente, com frequência.>
O caso Em julho de 2013, Marcelle saiu dos Estados Unidos, acompanhada do filho, com destino ao Brasil. A viagem aconteceu mediante a autorização do pai, Christopher. No entanto, ela não voltou aos EUA e no dia 12 do mesmo mês a baiana entrou com uma ação no Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA) pedindo a guarda da criança.>
A decisão não demorou muito a sair. No dia 22 de julho, o juiz responsável por julgar o processo decidiu pela concessão da guarda provisória a Marcelle, estabelecendo o direito de visita ao pai americano. >
De acordo com documento do tribunal baiano, ao qual o CORREIO teve acesso em inteiro teor, o juiz argumentou que a “competência internacional para processar e julgar o feito, são o local onde a criança encontra-se residindo e a ocorrência, ou não, de sequestro internacional, conforme estabelecido na Convenção de Haia”. É justamente na Convenção de Haia, um tratado internacional respeitado pelos EUA e pelo Brasil, que se apoiam os advogados da baiana. Os defensores alegam que a guarda de Nicolas concedida a Marcelle tem validade perante as Justiças brasileira e estadunidense e, por isso, ela não pode ser acusada de sequestro do filho.>
Prisão dos pais No entanto, não é desta forma que entende a Justiça norte americana. Marcelle continua sendo acusada pelo crime de sequestro internacional de menor e não pode ir aos Estados Unidos sob pena de ser presa no desembarque. O que ela não esperava é que toda essa situação fosse recair sobre os pais dela, o empresário Carlos Guimarães, 67, e Jemima Guimarães, 66 anos.>
O casal, que tem outro filho morando nos Estados Unidos, decidiu sair de Salvador para visitar a família em fevereiro deste ano e acabou detido no aeroporto de Miami, no estado da Flórida. Eles foram condenados em maio, sob acusação de terem participado e facilitado o sequestro do neto Nicolas.“Meu filho fez nove anos há alguns dias e esse foi o primeiro aniversário que os avós não passam com ele. Meu pai, inclusive, uma vez, passou apenas três dias em Houston para não perder o aniversário do Nico. É muito triste isso. Eu não ouço a voz de meus pais desde fevereiro”, contou Marcelle, emocionada.Os pais de Marcelle chegaram a ficar 40 dias em um presídio federal e, após pagarem fiança, foram transferidos para prisão domiciliar, na casa do filho caçula, onde permanecem com tornozeleira eletrônica e sem nenhuma comunicação externa, principalmente com o Brasil.>
“São duas pessoas de idade, presas em uma casa, e só têm uma hora diária destinadas a caminhadas pelo bairro, como forma de exercício físico. Meus pais passaram 40 dias presos, separados. Minha mãe não fala uma palavra em inglês e precisou dividir cela com condenados por tráfico internacional de drogas, por exemplo. Agora, mesmo na casa de meu irmão, eles estão devastados, minha mãe é mais alta do que eu e está pesando menos do que eu peso”, desabafou Marcelle, sempre segurando as lágrimas ao falar dos pais.>
A baiana ainda descreveu como está sendo os meses sem os pais. “Imagine o que é estar no meio dessa confusão, com meus pais presos, sendo acusada de um crime internacional e ter de preservar meu filho, que é uma criança. Nico faz terapia desde que chegou no Brasil. Eu sempre tentei preservar ele, mas, desde a prisão dos avós, por causa das notícias, as coisas chegaram nele, os colegas já comentam a situação na escola”, disse ela.>
Marcelle também afirmou que não pode ter nenhum tipo de contato com os pais nem com os irmãos. “Meus pais foram condenados e ainda podem pegar 3 anos de prisão em regime fechado lá nos Estados Unidos. Infelizmente, diante de tantas notícias ruins, o que me dá esperança é que o tempo que eles já permaneceram custodiados sirva para abater da pena dada a eles por júri popular”, disse.>
Diplomacia Carlos e Jemima dependem de uma decisão judicial que vai definir como se dará o cumprimento da pena, se em domicílio ou em presídio federal. “Nossa esperança é que as autoridades brasileiras se imponham perante os Estados Unidos e lutem pela liberdade de meus pais. Não existe nem nunca existiu sequestro internacional e o país norte americano está descumprindo e rasgando a convenção de Haia. As autoridades brasileiras precisam fazer alguma coisa”, desabafou Marcelle.>
A defesa de Marcelle está há cinco anos em uma briga diplomática pela regularização da guarda de Nicolas e a consequente retirada da condenação atribuída a ela. A Convenção de Haia, da qual Brasil e Estados Unidos são signatários, estabelece no artigo primeiro que o documento “aplica‐se aos atos públicos lavrados no território de um dos Estados contratantes e que devam ser apresentados no território de outro Estado contratante”. >
Desta forma, segundo a defesa da baiana, a guarda do menor, concedida pelo Tribunal de Justiça da Bahia se tornou documento probatório da não existência de sequestro internacional, uma vez que foi solicitada e expedida no país onde a criança se encontra. Apesar do pacto internacional entre os países, os documentos emitidos pela Justiça americana sobre o caso mencionam a Convenção de Haia em benefício de Christopher.>
Em maio deste ano, já depois da prisão dos pais de Marcelle, por exemplo, quatro senadores dos estados unidos assinaram um documento enviado ao governo solicitando providências para o retorno de Nicolas ao país de nascimento, os Estados Unidos. De acordo com trecho do ofício, “o retorno dele [Nicolas] aos Estados Unidos é fundamental e acreditamos [os senadores] que a questão do rapto parental internacional deve ser uma prioridade para seus agentes”.>
No mesmo documento, os senadores americanos acusam a Justiça brasileira de descumprimento da convenção, alegando que os juízes que decidiram sobre a guarda de Nicolas se recusam a reconhecer que ele deve voltar aos Estados Unidos. “Isso é uma loucura, porque a convenção deve ser utilizada para preservar a vida do menor e meu filho, assim como eu, corria perigo se continuasse em Houston”, declarou Marcelle.>
De acordo com o processo de guarda que ainda tramita no Tribunal de Justiça da Bahia, todo os direitos de visita ao menor foram concedidos a Christopher, que, desde 2013, altera as regras determinadas pelos juízes brasileiros. No TJ-BA, todas as tentativas do americano, por meio de recurso, foram negadas pelo órgão.“Ele sempre teve direito a ver o filho. Eu nunca o impedi que o fizesse. Muito pelo contrário. Às vezes a gente agendava as datas e ele não aparecia no Brasil. Ou, então, vinha a Salvador resolver outras questões e sequer comunicava ao filho. Teve um dia que meu filho ficou esperando o pai por horas na escola e eu que precisei ir buscá-lo”, revelou Marcelle.Os pedidos de Christopher na ação do TJ-BA consistem em visitas realizadas por dias seguidos e sem a presença de segurança, exatamente da forma contrária estabelecida pelo tribunal, que permitiu que o pai veja a criança em dias alternados e sempre na presença de um oficial de justiça. “Claro que, se ele ficar sozinho com o Nico, vai dar um jeito de tirar meu filho de mim”, disse.>
Ainda existe outra ação na Justiça Federal que discute a guarda de Nicolas, em razão de um recurso enviado por Christopher. Mas, não há nenhuma decisão que questione a situação atual da criança, que permanece sob a guarda da mãe. Nos processos, Marcelle juntou documentação que explica a decisão dela de sair dos Estados Unidos, a exemplo de agressões sofridas, um transtorno sexual que acomete o ex-marido, além de descumprimentos de medidas protetivas impostas contra Christopher por juízes americanos.>
Série de agressões Marcelle Guimarães disse ao CORREIO que, durante o casamento com Christopher, sofreu várias agressões físicas e psicológicas, que envolviam até ameaças com arma e contra o filho. “A gente sempre casa acreditando que vai dar certo e luta por isso. E foi isso o que eu fiz até não aguentar mais ser agredida. Eu quis proteger a minha vida e a vida de meu filho”, contou. Ainda de acordo com ela, à medida em que o tempo passava, as agressões aumentavam, até que, ela precisou da ajuda de um médico.>
Um documento datado de 2012 mostra que Marcelle buscou atendimento médico em um hospital do Texas [Midtown Family Medicine], se queixando de dores de ouvido e na mandíbula. No laudo médico consta: “a paciente declara violência doméstica; marido bateu do lado esquerdo da face, mas a dor está no lado direito da mandíbula e do lado direito do ouvido, possivelmente pela queda no chão. A paciente não quer denunciar para a polícia.>
No mesmo ano, outro documento, desta vez uma troca de e-mail entre Christopher e Marcelle, mostra o americano confessando as agressões contra a ex-mulher. A defesa da baiana explicou que, por ser da religião Mórmon, o pai de Nicolas sempre confessava todo e qualquer ato que desrespeitasse Jesus. E as confissões tinham que ser feitas à vítima em forma de perdão.>
Em e-mail datado de 5 de agosto de 2012, Christopher escreveu que na noite anterior, na presença do filho, gritou, xingou, empurrou, puxou o cabelo, bateu na cabeça de Marcelle com as mãos, além de ter retido o aparelho de celular dela e mantido ela em confinamento dentro do quarto. Antes de assinar, ele escreveu: “Não tenho orgulho de meus atos. Espero que que a minha sentença seja justa aos olhos de Deus e da Justiça”.>
Vício por sexo Além das agressões que alega ter sofrido durante todo o período em que ficou casada com Christopher Scott Brann, Marcelle também afirmou que o ex-marido tem “compulsão por sexo”. Ela contou ao CORREIO que só soube do fato, depois de anos de casada, porque o ex-marido confessou o problema e pediu ajuda.“Ele confiou em mim para contar que sofria de uma compulsão, um vício por sexo, e que isso chegava até a prejudicar o trabalho dele como médico, já que ele precisava evitar de fazer alguns exames em mulheres”, disse a baiana. Marcella declarou que chegou a pagar terapias para o ex-marido, com profissionais conceituados dos Estados Unidos e especialistas no tipo de problema que Christopher dizia ter.Em dezembro de 2012, Christopher enviou e-mail a uma das terapeutas que cuidava do caso dele. “Gatilhos: provocados por uma paciente (22 anos que precisava de um exame pélvico). Não fiz o exame. Pedi para que um dos residentes o fizesse. Tenho evitado todos os exames pélvicos e de mama desde que voltei”, escreveu ele na mensagem, que foi enviada também para Marcelle.>
Divórcio Em 2012, depois da série de agressões sofridas, Marcelle decidiu pedir o divórcio a Christopher, seguindo o conselho de uma das terapeutas que cuidava do caso dele. Segundo ela, pouco tempo após a separação, no entanto, o americano tentou invadir a casa da ex-mulher e só se retirou do local com a chegada da polícia.>
Marcelle também contou que decidiu estabelecer um esquema de visitas de Nicolas ao pai, ainda em Houston, e que, em um dos fins de semana, o ex-marido impediu de a criança voltar para a casa da mãe. “Ele fez muitas coisas a meu filho, mas eu nunca falei mal do pai para o Nico. Não quero expor meu filho a essa situação. Ele guarda as fotos com a família americana, avós, tios e primos. Eu nunca impedi que ele tivesse contato com ninguém. Mas, ele está crescendo e começando a entender tudo o que está acontecendo. Ainda é muito difícil dar esse suporte a meu filho, que é uma criança”, disse.>
A baiana relatou ao CORREIO que chegou a obter uma medida protetiva na Justiça americana, que proibia Christopher de se aproximar dela e do filho, mas ele descumpriu a decisão e continuou ameaçando ela. “Ele dizia que o país era dele e que eu era quem iria ficar sem o Nico. Ele ameaçava tirar meu filho de mim todos os dias. E eu estava totalmente sozinha, com medo, vivendo sob aquele terror”, disse.>
Depois de todos os episódios, Marcelle contou que, em razão da troca de juízes dentro do processo dela contra Christopher, a medida protetiva acabou sendo revogada e o passaporte e do filho ficou retido por alguns dias com a Justiça americana.“Meu ex-marido me deixou em pânico e eu sabia que, se ele quisesse, poderia tirar meu filho de mim”, declarou.Volta ao Brasil Foi, então, que surgiu um convite para Marcelle participar de um casamento em Salvador e ela pediu à Justiça a devolução dos passaportes. Com os documentos em mãos, foi a vez de Christopher autorizar a saída de Nicolas dos Estados Unidos, e assim ele o fez. A mãe embarcou com o filho para Salvador no início de julho de 2013.>
“Eu cheguei em Salvador com uma mala, apenas. Vim para o casamento, passar férias ao lado de minha família, mas, quando me vi aliviada daquele sentimento de prisão que eu vivia em Houston, comecei a buscar formas legais de ficar no Brasil. Procurei advogados e fiz tudo dentro da lei, desde o pedido de guarda e todos os procedimentos adotados até agora. Não foi nada planejado, como meu ex-marido afirma”, contou Marcelle.>
De acordo com as acusações de Christopher, que se estendem a Carlos e Jemima Guimarães, ex-sogros dele, Marcelle já saiu dos Estados Unidos decidida a não voltar. Os documentos enviados ao Governo Norte Americano relatam que Nicolas tinham matrícula em escola de Salvador, de propriedade da mãe de Marcelle, desde antes de chegar à capital baiana, o que, segundo a defesa do americano, comprovam a premeditação do sequestro do menor.>
No entanto, Marcelle explicou que as matrículas do filho na escola da mãe dela aconteciam sempre que o menino passava férias em Salvador. “Minha mãe tem uma escola infantil e sempre faz cursos de extensão para os alunos. Quando o Nico viajava para Salvador, eu matriculava ele nos cursos, para que pudesse ter uma atividade durante o período que ficávamos na cidade. Isso sempre acontece”, relatou Marcelle.>
Ainda segundo ela, em razão de todas as manifestações da Justiça americana, que insistem na acusação, principalmente após a condenação dos pais, a única esperança da família é que as autoridades brasileiras ajam com mais eficácia no caso. “A gente precisa que as autoridades do país enfrentem os Estados Unidos e lutem pela liberdade de dois brasileiros que são inocentes. Meus pais não cometeram crime nenhum. Eu não cometi crime nenhum”, afirmou.>
O Ministério das Relações Exteriores afirmou que o Consulado-Geral do Brasil nos Estados Unidos é quem cuida do caso, ao lado dos advogados contratados por Carlos e Jemima, perante as autoridades americanas.>
*Com a supervisão do chefe de reportagem Jorge Gauthier>