Conheça os 'kombeiros', pessoas que transformam kombis em 'tetos' na estrada

Movimento que cresce na Bahia tem desde quem decidiu viver uma vida nômade até quem adaptou o veículo para viagens pontuais

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  • Thais Borges

Publicado em 10 de abril de 2022 às 16:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Fotos: Acervo pessoal/Reprodução

O fascínio era antigo: no início da década de 1970, o pai do jornalista e fotógrafo César Marques, 50 anos, teve uma kombi corujinha, uma das primeiras gerações do carro que se tornou um dos mais amados do Brasil. Mesmo adulto, ainda tem as lembranças das aventuras a bordo do veículo. Quando criança, a kombi o encantava: era um carro enorme, bonito e cheio de charme. 

Com esse histórico, talvez o presente e o futuro de César não sejam tão inesperados assim: há pouco mais de dois anos, ele comprou uma kombi que virou seu plano de vida. Desde então, é nela que investe horas livres de seu tempo - seja para as melhorias e adaptações, seja nas viagens pelo interior da Bahia. É com a kombi que César e a esposa, a empresária Tatiana, 40, planejam mudar de vida em um projeto de expedição pela América. “A kombi tem uma vantagem, porque ela entra em qualquer lugar. Em vez de ter uma caravana, uma sprinter, um carro maior, sempre quis começar esse projeto com a kombi”, explica o jornalista, que atualiza o perfil @jornalistanakombi no Instagram com as novidades e aventuras do veículo. A pandemia atrasou o começo do projeto internacional: agora, o casal deve partir em 2023, quando termina seu contrato atual de trabalho e quando espera que as fronteiras de todos os países já não tenham restrições pela covid-19. Até lá, contudo, ele vai fazendo roteiros por aqui - só na Bahia, a kombi já passou pela Chapada Diamantina e pelo Sul, além de por Sergipe.  César e Tatiana se preparam para percorrer a América (Fotos: Acervo pessoal) Por mais que uma mudança de rotina como a de César não seja comum, o movimento de pessoas que, como ele, largaram ou se preparam para largar a moradia convencional só aumenta no estado. Entre os ‘kombeiros’, como alguns se chamam e são chamados, há de tudo um pouco: desde quem montou uma casa dentro do veículo até quem pouco alterou a estrutura interna mas ainda usa a kombi como teto quando cai na estrada. 

“Hoje, graças à tecnologia, muitas pessoas conseguem ter essa vida online como nômade. De um ano para cá, muita coisa mudou. Muitas pessoas estão construindo seus projetos, querendo cair na estrada e viver sua vida ou pessoas com casas estão querendo curtir o fim de semana”, analisa. 

Reformas Kombis como a de César são adaptadas de forma artesanal. Ele havia comprado uma do modelo furgão, por R$ 7 mil, e a primeira coisa que fez foi o isolamento térmico com isopor, madeira e compensado naval. As mudanças foram sendo feitas ao longo de seis meses com um investimento que ficou entre R$ 35 mil e R$ 40 mil. 

“Nunca tinha apertado um parafuso, nunca tinha feito nada em marcenaria”, lembra. A parte mecânica deixou com uma oficina de confiança. Mas, à primeira vista, a principal diferença da kombi dele para um veículo comum da mesma marca é que os bancos são retirados e, no espaço de aproximadamente 4m², é colocado o banco que serve tanto como sofá quanto como cama. 

Para quem não sabe por onde começar, o YouTube tem uma infinidade de canais de pessoas que transformaram suas kombis - ou outros veículos - em motorhomes. O próprio César é um deles. E ele recomenda que não tenham medo de investir no sonho. “Faz bem para a cabeça. É terapia. Você erra, acerta, xinga e, no final, sai a sua cara. O primeiro passo é comprar uma kombi que não tenha muita coisa para fazer de chaparia e mecânica. Depois, meter a mão na massa e comprar os equipamentos”, orienta. 

Para percorrer toda a América Latina e subir até os Estados Unidos e o Canadá, César e a esposa têm feito uma reserva econômica ao longo dos anos. Além disso, vão contar com um aluguel de um imóvel como renda fixa e registrar toda a viagem em conteúdos para podcast e vídeos para YouTube, que podem ser monetizados. Também fotógrafo, ele pretende oferecer serviços como fotos aquáticas por onde passarem. “A gente sabe que não é fácil se virar, como muita gente se vira, na estrada. Mas quem vai para a estrada tem que se planejar, saber por onde vai passar e ter uma reserva para imprevistos”, acrescenta. Juntos Em alguns países, a cultura dos chamados 'motorhome' - as casas sobre rodas - já é mais difundida. Esse é o caso da Austrália, de onde veio a inspiração da psicóloga Carolina Almeida, 27, e do profissional de TI Felipe Cunha, 27. Os dois tinham feito um intercâmbio no país e, em 2019, compraram a primeira kombi.  Carolina e Felipe já estão viajando pelo Brasil (Foto: Acervo pessoal)  "Queríamos esse estilo de vida, mas quando chegamos ao Brasil vimos que motorhomes são muito caros aqui, então, tivemos que adaptar. Na primeira tentativa, não deu muito certo. Nossa família surtou, então vendemos a kombi. Só em 2021 compramos outra e tornamos o sonho real", contam. O veículo deles, de 2006, passou por adaptações que incluem a instalação de vaso sanitário portátil, chuveiro, barraca e fogão. Por conta disso, eles não sabem ao certo o quanto gastaram ao longo do processo. Mas, desde que ficou pronta, a kombi saiu de Feira de Santana e já rodou localidades como Itacaré, Porto Seguro, Arraial d’Ajuda, Trancoso, Espírito Santo, Rio de Janeiro e São Paulo, onde estão atualmente. 

Em breve, devem seguir em direção ao Sul do Brasil e, depois, passar por todos os países da América do Sul. "Transformamos a kombi na nossa casa, inclusive, vendemos o apartamento que tínhamos na nossa cidade", contam. 

Quando definiram que tocariam o projeto, começaram a se organizar financeiramente. Cortaram gastos desnecessários e destinavam qualquer dinheiro que entrasse para construção da kombi. Hoje, os dois ainda trabalham em suas áreas dentro do veículo - como psicóloga, Carol atende online, enquanto Felipe presta serviços de TI a uma empresa. 

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"Claro que, no começo, o processo de adaptação não foi fácil. O espaço é limitado, temos que aprender a viver com esse espaço reduzido e continuar com nossas atividades normais, inclusive trabalhar. Mas nosso quintal tem sido o mundo. Acordar todo dia com uma vista diferente ou estar pela manhã em um estado e à noite em outro são coisas que não têm preço para nós". 

No mês passado, o CORREIO contou a história do casal Carina Moura, 28, e Eduardo Baruch, 31, que caiu na estrada com a kombi Letícia. Os dois pediram demissão dos trabalhos como assistente de incorporação e na área de TI, respectivamente, para viver como nômades. Sem calendários, os dois começaram pela Chapada Diamantina e pretendem descer até o Sul do Brasil, visitando também Uruguai e Argentina. 

Mas, quando tiveram a ideia do projeto, a kombi chegou até a ser vetada. "A gente queria ter uma casa ambulante para essa vida de nômade, mas quem nunca teve kombi tem essa ideia de que é um carro velho que só dá problema. Mas, pesquisando, vimos que era o melhor custo benefício e começamos a ter mais amor", conta Carina.  Eduardo e Carina tiveram o Capão como primeiro destino (Foto: Paula Fróes/Arquivo CORREIO) Letícia é um modelo 2008 e, antes de virar uma casa, tinha feito transporte escolar com 12 lugares. "Compramos por R$ 18 mil, muito mais barato do que qualquer outro carro. Chutaria que gastamos entre R$ 15 e R$ 20 mil (com as adaptações)", diz Eduardo, citando procedimentos como a troca de óleo, correia, filtros, quatro pneus novos e os equipamentos 'domésticos'. 

Um dos investimentos foi para uma bateria capaz de carregar todos os equipamentos eletrônicos - celulares, televisão, computador - e que é movida por uma placa solar instalada no teto do carro. Eles têm, ainda, fogão, pia, uma caixa d'água, armários e luminárias. 

A preparação para passar tanto tempo na estrada teve que incluir muito desapego. No guarda-roupa, por exemplo, priorizaram roupas de verão que são mais versáteis e minimalistas. Já que ainda devem demorar até chegar aos destinos mais frios, as roupas para essas temperaturas ficam embaladas a vácuo. Utensílios de cozinha também são os mais básicos - não dá para ter uma airfryer, por exemplo. 

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Com as economias dos dois, conseguem se manter na estrada por até seis meses. No entanto, nesse período, têm feito investimentos em conteúdos para redes sociais e youtube. Além disso, Eduardo, que atuava na área TI,  também pensa em trabalhar à distância. "Nosso objetivo também é inspirar as pessoas e mostrar que existe outra forma. Se você está incomodado com seu estilo de vida hoje, não existe só CLT, existem outras possibilidades. Não é fácil, é trabalhoso, mas é uma possibilidade também e, desde que a gente tomou essa decisão, está muito mais feliz", reforça Carina. Trabalho  Mas nem todo mundo pensa na kombi como casa. Para algumas pessoas, ela pode ser simplesmente um teto temporário na estrada, durante uma viagem específica. Esse é o caso do psicólogo e músico Isaac Fiterman, 59, vocalista da banda Professor Doidão e Os Aloprados. 

Inicialmente, a ideia era adaptar mais a kombi que comprou há sete anos. Mas, quando se deu conta, o veículo tinha se tornando 'a kombi da banda' - ou praticamente o quinto elemento dela, já que passou a ser usado nas viagens para shows. "A gente dormia na kombi, mas às vezes nem dormia, porque ela era o centro das atenções ou a gente tinha algum lugar para ficar. Mas acabava ficando sempre como ponto de apoio", conta. Nos últimos dois anos, porém, a chamada Kombiruta ficou praticamente parada, já que a banda não vinha fazendo shows. A pandemia fez os integrantes ficarem reclusos. Isaac chegou a ter covid-19 duas vezes.  A kombi de Isaac virou o quinto elemento da banda (Foto: Acervo pessoal) "Não é um mar de rosas, porque é um carro que está exposto. Mas você pode trabalhar dentro da kombi, vender arte em cada ponto. Antes de fazer parte da banda, eu fazia o atendimento de psicoterapia às vezes dentro da kombi. Você pode ter condição de unir seu trabalho e sua vida. A felicidade também está dentro de uma kombi".  

O fotógrafo Pedro Nunes, 39, também encontrou uma forma de unir a paixão pela kombi - um carro que admirava desde criança - ao seu trabalho. Ele procurava uma para comprar há quase cinco anos, quando recebeu um vídeo de um amigo com uma à venda há alguns meses. Assim, por cerca de R$ 10 mil, arrematou uma kombi 1989, modelo furgão, sem bancos no fundo. "Como eu sou fotógrafo e gosto muito de contar histórias, registrar pessoas e, claro, registrar essas histórias com imagens e textos, decidi juntar essas duas grandes paixões. Pretendo fazer algumas viagens, inicialmente pela Bahia, para para levar fotografia impressa a quem não tem acesso a essa fotografia", explica. O projeto será divulgado através do perfil @fotokombinada no Instagram.Para deixar a viagem mais confortável, Pedro instalou um sofá-cama, dois ventiladores na frente, um rack no teto e luzes. Quando conversou com o CORREIO, Pedro tinha feito a primeira viagem com a kombi - percorreu 620 quilômetros em três dias, de Eunápolis a Salvador, com paradas em Canavieiras e em Serra Grande, distrito de Valença. Pedro comprou a kombi Virgulina para um projeto de fotografia (Foto: Pedro Nunes) Ele diz que viajar na Virgulina - como sua kombi foi batizada - é mais um passeio do que uma viagem de fato. Em pouco mais de 600 quilômetros, por exemplo, só fez cinco ultrapassagens e ficou com a velocidade média de 90km/h. "É uma experiência muito bacana e merece ser compartilhada e vivida por todo mundo, pelo menos uma vez na vida. A sensação de apreciar a estrada com calma e maior interação com a paisagem durante o percurso alimenta o desejo de continuar viajando".

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Preparação para cair na estrada inclui aspectos mecânicos, financeiros e emocionais

Se você ficou tentada ou tentado a cair na estrada só com uma kombi, deve lembrar que a preparação é longa: vai da adaptação do próprio veículo e da situação financeira ao emocional. Quanto ao carro, é possível encontrar kombis até de 2013, ano em que foi descontinuada, à venda, como explica o engenheiro mecânico Eduardo Tourinho, professor da UniRuy. "Tem que ter uma ideia do projeto que você quer, o que almeja com esse automóvel. Já vi projetos de R$ 3 mil e outros que gastam R$ 20 mil, R$ 30 mil. Escolha um bom carro, que tenha boas condições e faça uma revisão total dele. Não deixe de lado a parte elétrica e o isolamento térmico geral", orienta. Por isso, segundo o professor, é importante saber a diferença: é só para viagem ou é para morar? Se for para morar, tem que pensar em um banheiro, como um vaso sanitário móvel. "Tem muita gente nos Estados Unidos que trocou totalmente a residência fixa, em casas e apartamentos, por um motorhome. Mas lá tem toda uma estrutura que permite morar em motorhome. Aqui, a gente ainda fica dependente de postos de gasolina", pondera, citando veículos que não têm chuveiro adaptado. 

Quanto ao gasto de combustível, algo tão importante nos últimos tempos, a kombi pode até ter mais vantagens. "Por ter uma tração traseira, ela desenvolve melhor e tem um aproveitamento melhor do combustível do que os carros que têm tração dianteira. Esse foi o pensamento da kombi, do fusca", acrescenta o professor.

Para custear isso, o ideal é que a pessoa tenha economias. Por isso, a economista e educadora financeira Natália Maria Cruz explica que é preciso de empenho para controlar o orçamento, arrumar as contas, enxugar gastos e anotar despesas. Mas, se não houver um propósito que dê sentido ao sonho, é possível que algumas pessoas desistam no caminho. 

Uma estimativa mínima de poupança para passar seis meses viajando como nômades vai depender de cada pessoa.“A recomendação é descobrir qual o montante total que você precisa e, a partir desse valor, organizar suas despesas atuais para juntar mês a mês mais um pedacinho da realização desse sonho”, diz. Na internet, existem calculadoras de viagens no esquema de baixo custo. Natália cita um desses exemplos em que um dia de viagem incluindo alimentação, lazer e combustível fique em torno de R$ 180. Assim, segundo ela, esse deve ser o ponto de partida: calculando 180 dias - seis meses - com custo de R$ 180 cada, a viagem sairia por R$ 32,4 mil. 

“A partir de então, tendo uma noção do valor total, a etapa seguinte é a “mão na massa” da organização financeira: descobrindo o que pode vender para levantar dinheiro, quais contas podem ser economizadas e assumindo o compromisso de guardar todo mês uma quantia do salário”, ensina, citando possibilidades de trabalho como ‘bicos’ no setor de hotelaria, serviços de limpeza e até o patrocínio através das redes sociais. 

Para ela, quem busca essa mudança de vida pode estar sendo influenciado por novos padrões de comportamento - em especial, os da chamada Geração Z (nascidos na segunda metade dos anos 1990 e início dos anos 2000), que questiona normas sociais como emprego fixo e prioriza aspectos como o minimalismo e a valorização das vivências. 

“Acredito que essa geração mais nova tem influenciado também as gerações anteriores. Traz um encorajamento na busca pela felicidade e na sua experimentação de fato. Além disso, a pandemia do coronavírus e o isolamento social necessário também gerou reflexões em alguns seres humanos”, opina. 

De fato, a pandemia pode ter tido um papel importante para que algumas pessoas tomassem decisões assim, na opinião da psicóloga clínica Isabella Barreto. "Ao se deparar com uma possível interrupção abrupta da própria existência, elas decidem viver uma experiência que é uma aventura, algo inédito", afirma, ponderando que, diante do repertório e da subjetividade de cada um, situações assim podem reverberar de formas diferentes. "Existe um apelo em relação a viver hoje aquilo que você pode. 'Não deixe para amanhã aquilo que você pode realizar hoje'. A própria pandemia coloca essa condição de viver o aqui e o agora. E como pensar numa segurança se segurança não é algo que existe? A gente é mesmo colocado num conflito interno muito grande", argumenta. Além disso, atividades que se tornaram mais comuns na pandemia, como o home office, aumentam as possibilidades para pessoas que não querem viver no mesmo lugar. Ainda assim, ela pondera que os grupos que têm como seguir esse caminho ainda são minoria na sociedade. São pessoas que têm alguma liberdade ou autonomia e, ao mesmo tempo, não precisam de chancela social. 

"Mas é importante a gente ter consciência, refletir, levar em consideração inclusive o nosso não saber quando a gente vai decidir qualquer mudança ou permanência", diz. "Uma das coisas que esse movimento representa é uma busca por viver, afinal de contas, 2020 e 2021 foram dois anos em que a gente teve que lidar com o não viver e com a morte de uma forma muito presente - tanto a morte real quanto a simbólica", acrescenta. 

O próprio confinamento - e a permanência por muito tempo em um mesmo local - pode gerar uma demanda maior por novos cenários e por um sentimento de experimentar o novo. "As pessoas estavam sufocadas pela monotonia da paisagem, por estar 24 horas dentro de cada. Um carro é bem verdade que é um espaço menor, mas a paisagem externa muda. Você tem a possibilidade de parar e descer, parar e caminhar", completa.