Contos incompletos de Lygia Fagundes Telles

Antologia reúne textos publicados em sete livros da escritora em diferentes fases

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  • Da Redação

Publicado em 9 de fevereiro de 2019 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Divulgação

A editora Companhia das Letras acaba de lançar o livro Os Contos, de Lygia Fagundes Telles. O tamanho do volume — 750 páginas — faz supor que se trata da reunião de todos os contos da autora, uma suposição plausível já que grandes contistas têm tido sua obra reunida em um único volume. A Editora Rocco teve êxito com Todos os contos, de Clarice Lispector, e a própria Companhia lançou Contos Completos, de Caio Fernando Abreu.

 Para Lygia, nada de “todos” ou “completos”. O título é apenas Os Contos, nome misterioso como a própria autora. A editora, de fato, não promete uma obra completa, mas tão somente a “mais completa antologia de contos da autora”. Não tendo nenhuma adjetivação, Os Contos é título ambíguo. Não afirma que são todos os contos, como efetivamente não é, mas parece dizer que ali há apenas contos, o que não é verdade. Essa é uma questão importante que a antologia deveria ter esclarecido e não o fez. Uma omissão grave, já que a confusão entre textos ficcionais e memorialísticos é uma característica de Lygia.

A partir da publicação de Invenção e Memória (2000), ficou muito difícil diferenciar, na obra da autora, o que é apenas ficção e o que é apenas memória. Esse livro e os dois seguintes, Durante Aquele Estranho Chá (2002) e Conspiração de Nuvens (2007) formam uma trilogia em que os gêneros ficção e memória estão misturados. Então, diferenciar o que é memória e o que é invenção em Lygia é um aspecto relevante, ainda mais quando alguém se propõe a publicar os contos.

Desafios 

A antologia não se propõe a enfrentar esse problema e deixa de fora livros importantes sem apresentar justificativa alguma. É bom listar todos os livros constantes do volume: Antes do Baile Verde (1970), Seminário dos Ratos (1977), A Estrutura da Bolha de Sabão (1991), A Noite Escura e Mais Eu (1995), Invenção e Memória (2000), Coração Ardente (2012) e uma seção denominada Contos Esparsos. Ou seja, estão de fora Durante Aquele Estranho Chá, Conspiração de Nuvens e A Disciplina do Amor (1980).

Antes de continuar, é preciso dizer que Lygia tem inúmeros outras coletâneas de contos que deixaram de ser publicadas e tiveram seus contos incorporados em outros livros. Faço uma lista informal apenas para ilustrar: Porão e Sobrado, Praia Viva, O Cacto Vermelho, Histórias de Desencontro, Histórias Escolhidas, Filhos Pródigos, Jardim Selvagem, Mistérios. Todos esses livros — exceção a Porão e Sobrado — tiveram contos reescritos e realocados em outros livros. Como se vê, a obra da autora é um desafio para estudiosos e editores. Há muito a mapear e organizar.

Mais desafiador, ainda, é separar ficção de memória. Ao retirar livros inteiros da antologia, a editora deixou de fora muito da ficção curta da escritora, além de textos que, embora possam ser lidos apenas como textos memorialísticos, evidentemente foram engendrados com a técnica da ficção. O livro Durante Aquele Estranho Chá é talvez o mais fácil de catalogar apenas como memória, embora o subtítulo da edição da companhia frise ser também ficção.

O leitor, entretanto, jamais poderá ler Onde Estiveste de Noite? sem se sentir num dos contos fantásticos da autora, mesmo que o conto seja sobre Clarice. O conto que dá nome ao livro apresenta a autora, jovem, em um encontro com Mário de Andrade. O escritor ficou famoso pelas cartas que enviava a escritores importantes de sua época. Numa confeitaria, durante um chá, ele também entrega uma a Lygia. Como nos melhores contos da autora, no final, a carta desparecerá cobrindo de mistério o seu conteúdo. Como se vê, este livro não poderia ficar de fora pelo muito de ficção que tem

Conspiração de Nuvens, outro livro etiquetado como ficção e memória, inicia com o conto Elzira, uma evidente releitura da história de Elzira, a morta virgem, agora transformada em uma tia-avó da autora. Há, ainda, A Quermesse, Eu Voltarei, Era uma Noite Fria, exemplos suficientes para concluir que é um livro mais de ficção do que de memória.

A Disciplina do Amor, editado primeiro com a etiqueta de Fragmentos, também ganhou o rótulo memória e ficção. Deste livro, basta citar Iracema, a gata, para justificar a inclusão no rol das ficções.

 Relação ambígua 

A editora poderá dizer que esses livros, porque contaminados pela memória, deveriam estar excluídos do rol dos contos, mas Invenção e Memória desmente a lógica. O texto Rua Sabará, 400 é o melhor exemplo de memória pura. Trata-se de um relato sobre o período em que Lygia e seu marido Paulo Emilio Salles Gomes escreviam o roteiro para o filme Capitu, de Paulo Cezar Saraceni. O dia a dia do casal, a convivência com os gatos e o filho ainda adolescente é mostrado sem filtros ficcionais.  O texto já havia sido publicado, com variações, como apresentação do roteiro, o que ratificaria, se fosse necessário, sua natureza memorialística. 

Vendo esses exemplos, não há como não se perguntar por que a editora não incluiu os livros citados na antologia. É certo que a ambiguidade entre ficção e memória em Lygia exige muita reflexão, se quisermos separa uma coisa da outra. O objetivo dela é mesmo borrar os limites. Mas, ainda assim, deveria ter havido uma tentativa de esclarecer ou deveria ter-se assumido que tudo em Lygia é ficção. Quando a editora optou por lançar uma antologia de contos incompleta, tinha a obrigação de estabelecer um critério e expressá-lo em uma apresentação e na divulgação do livro. Não o fez e o leitor desavisado continuará sem conhecer esse aspecto tão importante da obra de Lygia. Não vai ter a experiência de se perguntar “isso é verdade ou invenção?”. Ao leitor iniciado resta a frustração de não ver o retrato completo de sua escritora.

FICHA

Livro: Os Contos

Autora: Lygia Fagunsdes Telles

Editora: Companhia das Letras

Preço: R$ 99 e R$ 44,90 (ebook), 750 páginas  

* Marcus Vinícius Rodrigues é escritor