Corpus Christi em Salvador

Nelson Cadena é publicitário e jornalista

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  • Nelson Cadena

Publicado em 1 de junho de 2018 às 05:00

- Atualizado há um ano

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Transcorreu ontem a tradicional celebração de Corpus Christi, a mais antiga da cidade, realizada ininterruptamente desde 1549, enquanto Salvador ainda era um canteiro de obras; a primeira ocorreu em 13 de maio do ano referido e o padre Manoel de Nóbrega a descreveu como um evento de “danças e invenções”, iniciativa da recém-constituída Câmara Municipal. As sete ruas que constituíam o núcleo original foram enfeitadas com ramos, assim explicou o jesuíta, supomos que folhas de palmeiras e de pitanga, para a procissão passar. É óbvio que pelas limitações geográficas e o percurso acidentado, o roteiro restringiu-se ao trecho entre a Praça Municipal e a Praça Castro Alves, com retorno pela Rua Ruy Barbosa.

Que “danças e invenções” eram essas descritas por Nóbrega? Provavelmente as representações teatrais espetaculosas de rua, características da festa de Corpus Christi em Portugal, no século XVI. Rabelo da Silva as descreveu como “danças e folias das músicas mais desvairadas e dos instrumentos mais opostos”. As danças das festas populares eram organizadas em Portugal pelas chamadas corporações de ofício, na Bahia não foi diferente, mas, somente a partir do século XVII quando já existiam esses grupos, digamos, organizados.

Um ato da Câmara de Vereadores de 16/7/1626 nos dá uma pista a respeito.  A Câmara convocou “os homens que tem barcos de frete”, ou seja, saveiros e embarcações de maior porte, pedindo que se organizassem para fazer as suas custas “como em anos passados” danças de homens brancos na festa de Corpus Christi. E exigiu deles que na data não se cobrasse nenhum valor dos passageiros, sob pena de multa, provavelmente com o objetivo de garantir grande presença do público. Então, as Ordenações Filipinas já determinavam o comparecimento obrigatório dos habitantes da cidade e do entorno na distância de uma légua.

A convocação dos barqueiros prova que outras corporações de ofício - carpinteiros, ferreiros, ourives, alfaiates, pedreiros, chapeleiros -  também eram “convidadas” a participar e realizar às suas custas as suas performances teatrais. Em 1673, as corporações foram instadas a cederem negros para a função de carregadores, na procissão, sob pena de 6 mil reis de multa. O cronista das incursões francesas na Bahia François Froger testemunhou, em 1696,  o evento que descreveu como “uma quantidade prodigiosa de cruzes, relicários, andores, paramentos ricos, muita tropa formada, mestres, confrarias e congregações”. Julgou “ridículo” os “bandos de mascarados, músicos e dançarinos que, com posturas lúbricas, perturbavam inteiramente a ordem da santa cerimônia”.

O contrabandista inglês Thomas Lindley, na sua compulsória estada na cidade, em 1803, teve a mesma opinião de Froger. Observando a procissão, se incomodou com a passagem de São Jorge: “O santo sacudia as plumas de maneira mais majestosa, parecendo ainda maior o ridículo por ser precedido por um escudeiro de verdade e seguido de um pajem menino e ambos a cavalo”. E finalizou seu relato com a deselegante observação: “Pensei que só faltava o dragão para completar a cavalgada de Hudibras”. Referia-se ao personagem abestalhado da sátira de Samuel Buther contra os puritanos.

São Jorge, cuja imagem pertencia à Santa Casa de Misericórdia, desapareceu da festa de Corpus Christi na década de 1860 para reaparecer na festa da Conceição da Praia na década de 1940. De lá para cá, a festa de Corpus Christi sofreu grandes transformações, ampliou o percurso, diminuiu a participação popular nas janelas e varandas das residências e a própria Câmara Municipal participa de forma tímida com raros de seus representantes incorporados ao préstito. A primeira festa da cidade ainda conta com uma boa participação popular, para o bem ou para o mal, sem “as danças e invenções” de outrora.

Nelson Cadena é publicitário e jornalista, escreve às sextas-feiras