Dá pra ensinar a ser feliz? Historiador mostra que o caminho é pelo exemplo

Fernando Leão conversa sobre uma metodologia inovadora inspirada no budismo e habilidades emocionais, defendendo que há vida na escola muito além do conteúdo

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  • Priscila Natividade

Publicado em 19 de setembro de 2020 às 11:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Divulgação

Imagine uma escola sem muros ou cercas, com o maior pátio do mundo, bem no meio do cerrado, ao lado de um Parque Ecológico Nacional. Lá, é possível escolher 100% do conteúdo que se deseja estudar em turmas com até 16 estudantes. No currículo, sabedorias do budismo tibetano como empatia, solidariedade e até felicidade se tornam competências. Sim, esta escola existe e defende uma metodologia de ensino que vai além do que se vê na educação tradicional focada em provas, gabaritos, notas e boletins.

O Instituto Caminho do Meio (ICM)  tem muito a compartilhar, sobretudo agora, em um  momento tão crítico para a educação. Mais do que um desafio, inovar se tornou uma necessidade. O ICM é responsável pela gestão das escolas Caminho do Meio, em Viamão, no Rio Grande do Sul (RS) e Vila Verde, em Alto Paraíso,  Goiás (GO). Esta última, reconhecida pelo Ministério da Educação (MEC) como um centro de referência de inovação e criatividade na educação.  'O método  busca desenvolver  um olhar voltado para os valores humanos,  a sustentabilidade e  as relações positivas', explica Leão (Foto: Divulgação) Historiador,  Fernando Leão, que já foi vice-presidente do ICM, bateu um papo sobre como essa metodologia está transformando a maneira de educar, ao colocar a felicidade no centro do processo de aprendizagem. Hoje, Leão atua  na área de divulgação pedagógica da instituição. “A principal forma de ensinar a ser feliz é pelo exemplo”, diz.

As duas escolas ainda integram o Programa Escolas Transformadoras, uma iniciativa da Ashoka, uma rede de empreendedores sociais que reúne 270 escolas pelo mundo, sendo 19 delas brasileiras. Outras duas escolas baianas também fazem parte do grupo: a Escola Comunitária Luiza Mahin, em Salvador, e a Escola Rural Dendê da Serra, em Itacaré. 

De que maneira é possível educar para a felicidade?  Questionando sobre o que é felicidade, pensando sobre que fatores geram uma felicidade verdadeira e não uma felicidade efêmera, assim como os valores éticos.No entanto, essa aprendizagem não acontece com uma aula ou uma disciplina do tipo Felicidade I, Felicidade II. A principal forma de ensinar a ser feliz é pelo exemplo.Como a metodologia foi criada? Que habilidades podem ser desenvolvidas dentro da perspectiva de ser feliz?  

Nas escolas geridas pelo ICM este conceito vem a partir dos ensinamentos budistas. Com a  metodologia de projetos,  o método  busca desenvolver  um olhar voltado para os valores humanos,  a sustentabilidade e  o desenvolvimento de relações positivas consigo mesmo, com os outros, com a sociedade e com a natureza. Desde março, as aulas presenciais estão suspensas nas escolas sob gestão do ICM e só devem retornar no ano que vem (Foto: Divulgação)

Ensino remoto, adequação à tecnologia, educação sem interação física. De que maneira esta modalidade de educação se encaixa em um contexto de pandemia? Adotamos as aulas remotas desde março e não pretendemos voltar mais às aulas presenciais esse ano. Olha, eu poderia dizer que as escolas que trabalham pela metodologia de projetos são as que menos sofreram com estes novos desafios que se apresentaram na pandemia.Quando na metodologia de projetos, o professor passa a assumir  o papel de tutor, de curador de conhecimento, essa relação pode se expressar de forma presencial ou não, fazendo com que o processo de ensino-aprendizagem sofra muito pouco.E a tradição do budismo tibetano, como se faz presente no processo? Dentro da perspectiva budista, são cinco inteligências:  Inteligência do Espelho, que é a capacidade de acolher o outro; Inteligência da Igualdade, que é a capacidade de se reconhecer no outro;  Inteligência Discriminativa, ou seja, a capacidade de oferecer estratégias para que o outro atinja seus objetivos;  Inteligência da Causalidade, quando explicamos que as ações têm consequências e Inteligência da Liberdade, que é liberar o outro dos rótulos que eu mesmo impus a ele.

Por incrível que pareça, os conteúdos determinados pelo MEC são totalmente cumpridos. Não mudamos o conteúdo, mudamos a forma.

Como você enxerga o papel da escola no desenvolvimento da criança também como um agente de transformação? 

A empatia inviabiliza a intolerância e o afastamento em tempos tão polarizados. A criatividade é a chave para as soluções de problemas.

Primeiro tenho que pensar: de que escola estamos falando? Se for da escola convencional, conteudista, de estruturas hierarquizadas de poder e obediência, vejo muito pouco a contribuir.Se for da escola que tem o foco no estudante e não no conteúdo,  nas relações horizontais e não na hierarquia, na felicidade e não o sucesso, bem, aí a gente pode ter um pouco de esperança.O que uma criança feliz é capaz de promover, assim como esse adulto que ela será lá na frente? 

Uma criança feliz é uma criança autoconfiante, que aprendeu que o erro não significa uma condenação, mas um ajuste. Então, uma criança feliz é capaz de ser um adulto feliz. E pessoas felizes podem efetivamente mudar o mundo. Os pais também precisam ensinar isso através do seu exemplo e se perguntar: ‘essa vida que eu levo  me deixa feliz de verdade’? 

A metodologia está sendo replicada para outras escolas do Brasil? Como inovar?

Com coragem, com verdade, com paciência e com perseverança. Essa inovação não será do dia para a noite. Existem várias escolas que olham na mesma direção. Cada uma com caminhos próprios, o que é muito bom. 

Que formação os professores precisam ter para ensinar felicidade?Eu costumo dizer que ninguém ensina o que não sabe. A principal coisa que eu busco em um professor é se ele compreende que a felicidade plena é algo pelo qual vale a pena viver. Se existe isso nele, tudo mais é técnica, se aprende.  

QUEM É

Fernando Leão  é historiador e foi vice-presidente do Instituto Caminho do Meio (ICM), onde atua agora como voluntário na área de divulgação pedagógica. Ele faz parte da Comunidade Ativadora do Programa Escolas Transformadoras  e é embaixador da Comunidade Reinventando a Educação (CORE). Leão também é  co-autor de coletâneas sobre educação, empatia e criatividade.