Da vagina de Lílian ao clitóris de Cleo Pires

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  • Malu Fontes

Publicado em 4 de março de 2019 às 13:01

- Atualizado há um ano

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O Carnaval é traduzido como o período cronológico em que as pessoas se permitem sair da normalidade de suas vidas e viverem algo de fantástico, de fora da ordem. É o intervalo de tempo em que se pode fantasiar e simular outra cara, outro corpo. Das traduções mais sofisticadas às mais banais, Carnaval é o tempo autorizado para chamar àtenção, sair dos limites, buscar o exagero, cruzar a fronteira do próprio comportamento. Mas aí, chegaram as redes sociais e, com elas, o esvaziamento de parte do extraordinário no Carnaval. 

Como o espírito do tempo dos comportamentos é, hoje, majoritariamente, o da lacração, o de “causar” e ganhar likes, curtidas e seguidores, o que as pessoas estão fazendo de si no cenário do Carnaval já merece algumas releituras e atualizações. Em tempos de redes sociais, e em um país como o Brasil, de baixíssimo grau de escolaridade formal e de níveis altíssimos de desinformação, é quase que exclusivamente por elas, as redes, que um contingente de milhões de pessoas se informam. 

Enterrados Sem informação buscada ou adquirida fora desse tipo de conexão virtual, o que se tem são tão somente as verdades sentenciadas por hashtags e com curtíssimo prazo de validade. É aquilo ali e ponto. E pronto. Autoridades das praças digitais decretam verdades e mentiras e em 24 horas todas elas prescrevem juntas. No dia seguinte, os sucessos e os fracassos da véspera já foram todos enterrados juntos, ao descerem dos feeds empurrados pelos lacres de agora.  Tudo é verdade, tudo é mentira, e, ao vencedor, apenas alguns likes pela lacração de ontem. 

O Brasil è hoje um dos países mais conectados do mundo. Os dados oficiais de 2018 ainda oscilam quanto ao percentual de usuários ativos em redes sociais no país, mas qualquer busca indica que algo em torno de 60% dos brasileiros estão em alguma delas ou em varias, simultaneamente. Quando cerca de 130 milhões de pessoas expõem ou consomem nas redes os comportamentos e os discursos da hora, o que, no final das contas, sobra para ser a tendência ou a revelação do Carnaval, que até ontem era palco privilegiado da ruptura para o extraordinário? Clitóris A geração “lacriane” e sua busca de efeitos bombásticos e imediatos nas redes esvaziou grande parte do sentido e do choque dos comportamentos nas ruas. As ruas, inclusive ou principalmente no Carnaval, nos dão uma sensação de déjà vu. Vemos as cenas a olho nu e é como se elas nos mostrassem ou contassem apenas o que já havíamos visto ou tínhamos sabido previamente nas redes. 

A atriz mediana em talento quer ter a certeza de que vai ser objeto de flashes no camarote da cervejaria que a escolheu como musa, por seu apelo sexual em tudo o que faz ou diz? Ela já não precisa esperar a entrada triunfal no espaço durante o evento. Antecipa o grande efeito ao lançar nas redes, antes do Carnaval, uma frase para lá de lacrativa: “Blocos de rua não me falam ao clitóris”. Pronto. Performance  cumprida. Alguém pergunta: “Ãnh? Seu clitóris é surdo”. E aí tudo já virou lacre e que venha a próxima performance, nas redes, de alguém estourado. 

Defeito A cultura do lacre  é uma fome insaciável de efeitos imediatos. O efeito colateral aparente disso, no indivíduo e no coletivo, é o risco de passáramos todos a sermos surfistas da efemeridade das redes e passarmos a ter uma existência meio “brilho eterno de uma mente sem lembranças”. O que dá sentido à vida e a cultura senão a tentativa de driblar a morte ao insistirmos em deixar algo nosso como marca, um pedaço de algo em construção? 

O lacre é solitário, individual, embora exija plateia, e seu efeito é um defeito: efêmero, termina em si mesmo, infértil, dissipado sem deixar marcas, numa falta de conexão com qualquer processo social. Ou se antecipa demais, como uma ejaculação precoce, ou é uma espuma que se repete apenas para manter a engrenagem oca funcionando.

Sem calcinha No Carnaval de 1994, a modelo Lilian Ramos “lacrou” na Sapucaí, no Sambódromo do Rio, ao ser fotografada ao lado do então presidente da República, Itamar Franco, sem calcinha. 25 anos depois, o lacre de Lilian ainda é destaque na edição de domingo de carnaval do maior jornal do país, a Folha, com direito a título criativo e sarcástico, sem deixar de ser absolutamente verdadeiro: “1994, o ano em que a República perdeu a calcinha”. 

Se você ainda não entendeu as mudanças provocadas pela cultura do efeito imediato, na qual tudo é espuma, se desmancha e evapora, pergunte-se: há alguma possibilidade de daqui a um, dois ou a 10 anos você ler um texto sobre uma das milhares de performances da atriz cujo clitóris não é reagente aos blocos de rua do Carnaval? Feliz Carnaval e, se este é seu desejo, meta dança na performance e na lacração, poste tudo e corra pro efeito, antes que ele desapareça. Malu Fontes é jornalista e professora de jornalismo da Facom/UFBA