Das periferias urbanas para as roças: os novos agricultores baianos

Famílias se mudam para zonas rurais para tentar garantir subsistência

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  • Fernanda Santana

Publicado em 10 de julho de 2022 às 16:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: CAR/SDR/Isaac couto

Depois da segunda fábrica de papel em Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo Baiano, a primeira entrada à esquerda leva ao assentamento Bela Vista, que reverencia, no nome, a beleza do entorno da Baía de Todos-os-Santos. Por lá, 13 agricultores recém-chegados acabaram de fazer a sua primeira grande colheita> o milho que compôs os pratos típicos das festas juninas.

Pela necessidade imediata da sobrevivência que só a terra pode garantir, pessoas como as instaladas neste ano em Bela Vista abandonam periferias urbanas e se tornam agricultoras. A Bahia reúne 15% (2 milhões) de todos os agricultores familiares do Brasil, segundo a Secretaria de Desenvolvimento Rural (SDR). É o maior número do país. 

Neste novo fluxo da cidade para as zonas agrícolas, existe gente que só agora aprenda os tempos da agricultura e quem, no passado, deixou zonas rurais rumo à cidade e precisou retornar, por necessidade. Espalhadas pelo país, há pelo menos 33 milhões de pessoas com fome, segundo a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan).

As estatísticas também assombram, principalmente aqui no estado, que lidera o ranking do desemprego no Brasil, com 1,25 milhão de pessoas em busca de trabalho. Em janeiro, a falta de emprego levou Luiz Alberto Barreto, 40, a esposa, Maria, e os dois filhos para Bela Vista. A família vivia no Cabula 6, onde mantinha uma mercearia, que faliu durante a pandemia.  

 O coordenador do assentamento, que já conhecia Luiz Alberto, ligou para ele há um ano para avisar que uma casa na região tinha vagado e perguntar se ele gostaria de ir. Apesar da dúvida pela dimensão da mudança, o ex-comerciante aceitou o convite, porque as perspectivas na metrópole não eram das melhores. 

Depois da safra do milho, que durou 40 dias entre o plantio e a colheita, ele e outros 12 novatos se preparam para plantar mandioca em agosto. A perda dos milharais foi mínima, mas a terra precisa de um momento de descanso para nutrir as próximas sementes. “Estamos felizes em ver o trabalho resultado nisso”.

Seis meses depois da mudança, os migrantes ainda se adaptam e aprendem a viver uma vida que nunca tiveram. Diariamente, Luiz vai às plantações, enquanto a esposa Maria Regina dedica três dias às atividades agrícolas. O sindicato de produtores locais ofereceu um curso de formação e o casal também consegue plantar, no quintal, hortaliças que semanalmente são colhidas. “Uma perspectiva que passei a ter é que a terra pode dar o que a gente quiser”, diz o agricultor, natural de Salvador, que antes só ia às zonas rurais em visitas a parentes.Foi um senhor, veterano no assentamento, quem o ajudou a ter essa visão. Longe de dominar a lida com o solo, Luiz acreditava que o melhor era despejar o máximo de sementes que pudesse na terra. “Ele disse que eu não podia fazer assim”. Daquele jeito, com tanta semente, nada brotava, mas o novato insistia.

“Aí ele veio e disse que já tinha me avisado e que se eu quisesse ter algo, não podia fazer daquele jeito”. A lição assimilada foi que “a natureza não aceita excesso”. Nem muita água, nem muito sol, nem muita semente, apenas o suficiente, nada além ou aquém. 

A busca por terras

Às 4h30, no máximo, Sinho – apelido de Luiz Alberto - já está acordado, exceto quando dormiu mais tarde na noite anterior para assistir algum jogo de futebol. Geralmente, deita-se entre 19h e 20h. “Quanto mais cedo a gente chega na roça, melhor. É uma grande mudança. Mas agora queremos realizar sonhos através da terra”, justifica.

Existem 37.652 mil famílias em 565 assentamentos distribuídos por 183 municípios baianos, mas o número não foi atualizado, oficialmente, pelo Incra, já que desde 2018 duas recomendações do Tribunal de Contas da União (TCU) determinaram a reformulação do processo de seleção de beneficiários de reforma agrária. Existe um edital em andamento, que selecionará 44 famílias para um assentamento em Uruçuca. 

Para quem não é dono de uma terra, existem três destinos: assentamentos, áreas rurais que foram desapropriadas pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra); em propriedade de parentes ou em uma associação com os donos de um latifúndio, a parceria agrícola que pressupõe a partilha da produção entre as partes (o que é considerado desvantajoso por trabalhadores).

A agricultura familiar abrange, no estado, 593 mil estabelecimentos rurais espalhados por todo o mapa. Há dois anos, quando saiu a última pesquisa especializada realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a Bahia teve a maior produtividade desse segmento da agricultura em 26 anos, com destaque para os grãos, leguminosas, oleaginosas e soja. Plantio de hortaliças (Foto: Manuela Cavadas/CAR/SDR) O estudo do IBGE traz os dez municípios baianos com maior valor de produção agrícola em 2020. Por ordem, são eles: São Desidério, Formosa do Rio Preto, Barreiras, Correntina, Luís Eduardo Magalhães, Riachão das Neves, Jaborandi, Mucugê, Juazeiro e Ibicoara. 

Para a Secretaria de Desenvolvimento Rural (SDR), responsável por políticas públicas para o desenvolvimento agrícola, somente o censo poderá confirmar a impressão de que se têm hoje do retorno de egressos do campo e da migração de novos agricultores para a roça. O último censo agropecuário foi realizado em 2017.

O secretário Geandro Ribeiro cita o exemplo de Itabuna, onde as plantações de cacau foram varridas pela praga da vassoura-de-bruxa, entre o fim da década de 1990 e início dos anos 2000, ao falar da nova ocupação de áreas rurais. “Itabuna teve uma explosão demográfica na sua zona urbana por causa da crise [desde os anos 1980, a população rural em Itabuna diminuiu 8%]. Mas hoje, com o avanço da produção de chocolate, há pessoas que vão querer voltar ou ir para cooperativas, onde possam tecer parcerias e ter muito além da subsistência”, comenta.Quando conversou com a reportagem, Ribeiro tinha acabado de retornar de uma viagem a Santana, no oeste baiano, que se destaca pela produção de leite e queijo. “Lá mesmo encontrei duas pessoas que tinham acabado de se mudar da zona urbana para a rural para começarem um negócio”.

Os novos sozinhos

Depois de cinco anos longe de Saúde, no norte da Bahia, Maécio Gonçalves, 32, retornou para a roça onde vivem os pais. O desembarque de Maécio, vindo da região metropolitana de Goiânia, aconteceu na rodoviária de Jacobina. No trajeto para casa, o sol já se punha, mas deu tempo de ver as plantações no horizonte. “Tinha muita coisa já”. 

Maécio saiu da terra natal em busca de um trabalho mais bem remunerado. Primeiro, trabalhou como encarregado do almoxarifado de uma obra da construção civil, em Salvador. Depois, partiu para Goiás, onde deveria trabalhar numa fábrica de enlatados. 

Por oito horas, fechava e etiquetava latas de ervilha. Estava cansado da rotina que, no fim do mês, lhe rendia o suficiente para pagar as contas – a mais cara, o aluguel de uma quitinete – e nada mais.

Hoje, ele acorda junto com os pais e os acompanha até as roças de mandioca. Agora, está empenhado em construir cercas, pois o inverno está próximo e o ciclo de produções será modificado. Sente saudade de passear no shopping e dos amigos que fez em Goiânia.“Estar aqui não é só falta de oportunidade, ou gastos, essas coisas, mas vontade de estar trabalhando com as demandas da terra, é muito satisfatório quando o esforço é recompensado”, conta ele, que chegou na mesma época que outros conhecidos à zona rural de Saúde. Movimento contrário

A migração de agora é o contrário do que ocorreu no passado. O movimento de industrialização nas áreas urbanas e os problemas de produtividade das lavouras impulsionaram a fuga do campo – na época sinônimo de agricultura – para as cidades. No intervalo de 30 anos, é possível ter uma dimensão da mudança da conformação territorial e os números ajudam a entender: a Bahia de 1991, por exemplo, era 65% rural; em 2010, a porcentagem dos habitantes no campo caiu para 47%.

A cidade baiana com mais moradores fora da zona urbana naqueles anos 90, Serra Preta, no centro-norte, ocupava a 162ª posição na lista dos mais rurais quando recenseadores do IBGE revisitaram a comunidade. A ausência de um novo censo, durante a pandemia, impede que exista um acompanhamento fidedigno da realidade.

“Hoje mesmo eu lancei essa pergunta na reunião de departamento: parece que estamos mais rurais, mas será que ficaremos mais agrícolas? Essas zonas rurais terão que tipo de crescimento? A gente ainda não sabe”, conta Andrea da Silva Gomes, professora da Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc) e doutora em Desenvolvimento Rural. 

E de quem serão essas zonas agrícolas? É outra pergunta que Andréa se faz. A chegada de novos habitantes para trabalharem como agricultores no campo não significa que eles serão incorporados ao território, nem que se habituarão à nova realidade.“As zonas agrícolas não são as mesmas do passado. Se a pessoa chega sem nunca ter manejado a terra, vai se deparar com uma série de limitações de plantação e escoamento”.Para ela, é mais provável que os novos agricultores recorram à terra, por ora, apenas para a subsistência, não para grandes investimentos. 

É o que Sônia Maria de Araújo, 54, tem observado. Há 15 anos, Sônia fez o movimento inverso do que era comum à época, deixou São Paulo e voltou para Saúde.  Até os últimos dois anos, os vizinhos mais próximos estavam distantes cinco quilômetros. “Agora, olho e vejo várias pessoas chegando. Quando cheguei, não era uma coisa comum, as pessoas estavam saindo”.

Entre os novos vizinhos está Maécio. Dez deles acabam de ser contempladas com projetos de plantação de palma. "Alguns filhos voltaram para ajudar. Acho que a roça está mais popular que a cidade", brinca Sonia, que tira do quintal quase tudo o que precisa para comer. Só vai ao mercado, quinzenal ou mensalmente, para comprar arroz integral e açúcar.