Das redes para o mundo: jovens com down encantam como influenciadoras

Canais no YouTube e perfis no Instagram viram ferramenta de desenvolvimento para eles

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  • Wendel de Novais

Publicado em 21 de março de 2021 às 06:30

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Arisson Marinho/CORREIO

Acorda, toma banho e café, escova os dentes, faz aula e consultas on-line. Essa é a rotina da pequena Alícia Dessa, 10 anos, no Instagram como @estrelinhaalicia. Ela encontra sempre um tempinho para realizar o que mais gosta: gravar vídeos para o YouTube. No seu canal, Alícia divide seu dia a dia, seus talentos, seus gostos e suas descobertas com os inscritos. E por lá, tem de tudo. Os vídeos vão de tutoriais de maquiagem e cozinha até banho de tanque com os primos no interior. É lá também que Lili, como é carinhosamente chamada, ressignifica a forma como as pessoas a enxergam. Isso porque, além do talento para blogueira, Alícia tem síndrome de Down e usa as redes para desmistificar preconceitos e mostrar que pessoas com a síndrome são tão capazes de desenvolver atividades comuns como quem não tem trissomia 21.

Alícia começou a fazer vídeos depois de muito assistir aqueles que são inspiração como Lucas Neto, Fellipe Calixto, e Camila Loures. Mais que um passatempo, o YouTube virou uma ferramenta para o desenvolvimento da fala da pequena, que ganhou a permissão dos pais.

Para sua mãe, Tatiane Dessa, 36, que é agente de atendimento e segurança líder na CCR Metrô, não há como negar o quanto os seis anos fazendo vídeo e falando com os inscritos a fizeram bem. "O canal foi muito positivo para a fala dela. De tanto assistir o YouTube e se inspirar para fazer os vídeos, Alícia ampliou o vocabulário, aprendeu palavras novas. Fez uma diferença enorme para a comunicação dela com os outros também", relatou.

O pai, Carlos Dessa, 40, que também trabalha na CCR, só que como agente de atendimento e segurança, concorda com a companheira. “Às vezes, ela chegava falando uma palavra que ela nunca tinha dito e a gente ficava se perguntando como aprendeu. Depois,  percebemos que eram os vídeos que traziam isso pra maneira dela de se comunicar”, contou.  Alícia gosta de fazer tutoriais de maquiagem no YouTube (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) Comunicando com o mundo A melhora no vocabulário só viabilizou a vontade de se comunicar com o mundo. Quando fala de quanto gosta de gravar para o YouTube, Lili mostra que, para ela, além de se divertir, é importante poder compartilhar seus momentos com os outros. “Eu gosto de gravar fazendo maquiagem, de fazer bolo, gosto muito de dançar. É bom poder gravar e compartilhar com os meus inscritos as coisas que eu me divirto fazendo”, fala Alícia, que sente falta dos coleguinhas que não vê por conta da pandemia e que encontra na produção do canal uma forma de não se distanciar de quem a acompanha. 

Tatiane acha que, mais do que comunicar com os coleguinhas, a filha cumpre uma função importante ao mostrar que, mesmo com a sua condição, é plenamente capaz, assim como todos com a síndrome, de desenvolver atividades comuns. “Acho que a intenção do canal também é mostrar que, antes da síndrome, ela é uma menina, como todas as outras, que adora ser blogueira, maquiagem e todas essas coisas. Fico realizada porque mostra que ela pode fazer tudo aquilo do jeito dela, como qualquer outra criança pode fazer. Independente da síndrome, ela vem na frente, a personalidade dela vem na frente, os gostos dela são importantes”, declara a mãe, que diz ter aprendido com Lili que a síndrome de Down não a impede de realizar nada.  Tatiane e Carlos dão força e comemoram evolução de Alícia com o canal (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) Quem também sente orgulho de ver a pimpolha ocupando as redes é Jana Bauer, 47, mãe de Cacai Bauer, 26, influenciadora que, no Instagram, tem mais de 300 mil seguidores. Jana conta que ver a filha, que também tem a síndrome, ocupando espaço de influenciadora e lidando com as redes foi difícil, mas traz muita felicidade. “Sentimos muito orgulho e temos a certeza de que fizemos o certo. Não foi fácil, mas ver Cacai hoje com essa visibilidade toda é maravilhoso. Saber que é inspirador é mais gratificante ainda.”, afirma. 

Cacai, que fez teatro e gosta muito de atuar, diz que trouxe isso para o perfil nas redes justamente com intenção de aproveitar o seu talento como um passatempo. Porém, suas postagens bombaram e as suas redes, que eram hobbies, viraram coisa séria. “Ser influenciadora aconteceu com o tempo e hoje é meu trabalho. Eu criei meu canal depois da minha irmã desistir de criar o dela. Como eu gosto muito de atuar, trouxe para as redes sociais e deu certo”, lembra. Sobre a experiência de ser famosa, Cacai não nega que gosta muito de estar nos holofotes. “Gosto muito de aparecer, timidez não me representa, sou leonina. E, quando você inspira pessoas, esse trabalho fica mais rico ainda”, declara.  Cacai tem mais de 300 mil seguidores no Instagram (Foto: Reprodução/Acervo Pessoal) Ocupando todos os espaços  Com milhares de seguidores ou não, a existência de pessoas com a síndrome nas redes sociais reforça a ideia de que não há nenhum empecilho para que Lili, Cacai ou qualquer outra pessoa na mesma condição ocupem o espaço desejado. Isso é o que garante Ídila Muniz, coordenadora técnica do Centro Especializado em Reabilitação da Apae. “Essa influência que pessoas com a síndrome têm nas redes é fundamental para desconstruir estigmas de que a pessoa que está nessa condição não pode exercer uma profissão, que não pode ter uma condição de vida normal. É importante pra mostrar que eles também têm desenvolvimento cognitivo, afetivo e devem ocupar todos espaços enquanto cidadãos são cheias de possibilidades intelectuais independente da condição de síndrome”, explica.

Diretora social da Apae há cinco anos, Roca Alencar prefere falar do lugar de mãe de Alice, uma mulher de 21 anos, que também tem a síndrome. Para ela, a presença de influenciadoras como Alícia e Cacai é fundamental para tirar as pessoas da situação de ignorância quanto às possibilidades de pessoas nessa condição. “Nós conhecemos pouco sobre as pessoas que têm trissomia 21. A gente costuma inferiorizar quem está nessa condição e, desde o momento do nascimento, a nossa escuta de profissionais de saúde é negativa, de que eles não vão poder fazer mais nada por ter a síndrome. Então, este momento é importante por ser um momento de virada, com a popularização das atividades da síndrome de Down, que nos tira desse lugar de ignorância”, opina.

*Com orientação da chefe de reportagem Perla Ribeiro