Desnecessários: quatro perfis que só atrapalham a vacinação contra a covid-19

Dos fiscais de comorbidade aos 'sommeliers' de vacina, entenda por que eles são um problema

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  • Thais Borges

Publicado em 12 de junho de 2021 às 10:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Shutterstock

A criatura chega no posto e, ao ver que a vacina disponível contra a covid-19 ali é a Coronavac, vai embora. Diz que não confia na eficácia da vacina. Prefere tomar Pfizer ou AstraZeneca para assim, quem sabe, conseguir viajar mais facilmente para a Europa, onde as duas foram aprovadas. Daí vem a outra pessoa, em seguida, que não quer tomar AstraZeneca - diz que pode ser qualquer uma, menos essa, pelos efeitos colaterais. 

Cenas assim têm acontecido ao redor do estado, com gente que prefere receber um imunizante em detrimento de outro. Mas os ‘sommeliers’ de vacina não são os únicos perfis que surgem como um desafio para a campanha de imunização contra a covid. Há, ainda, algumas atitudes que podemos nomear aqui de fiscais de comorbidade, de negacionistas e, ainda, de ‘altruístas’.

Em comum, todos têm o mesmo problema: atrapalham a vacinação. Se a imunização contra a covid-19 é uma estratégia coletiva, qualquer decisão individual pode ser um problema para frear o avanço do vírus na cidade e no estado. Essa é a avaliação de quem está à frente das campanhas locais.“Qualquer tipo de pensamento que leve a pessoa a não se vacinar é muito ruim”, diz a infectologista Adielma Nizarala, da Secretaria Municipal da Saúde (SMS). Coletividade É importante que todo mundo que está apto a se vacinar receba o imunizante também para proteger quem não vai poder receber a vacina. Esse é o caso, por exemplo, de crianças e adolescentes. Por enquanto, esse público não faz parte da campanha. 

É possível que esse cenário mude, porque, na última sexta-feira (11), a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) autorizou a imunização de adolescentes a partir de 12 anos com a vacina da Pfizer. Mesmo assim, ainda existe uma população grande que vai depender da imunização geral. 

“Essas pessoas é que vão se beneficiar da chamada imunidade de rebanho, quando o vírus acha cada vez menos terreno para se multiplicar. Mas se eu, que posso, não me vacino, essa imunidade não vai chegar”, reforça. 

Quando a pessoa se protege, acaba protegendo indiretamente todas as outras que fazem parte da sua comunidade. De acordo com a coordenadora do Programa Estadual de Imunização, Vânia Rebouças, os grupos prioritários foram escolhidos com base em uma estratégia para vacinação em um momento em que ainda não há vacinas para todos. “É a vacinação em massa que vai reverter esse cenário. Mas, para isso, tem que ter uma adesão coletiva, não só da primeira dose, mas da segunda dose no momento oportuno”, diz. O CORREIO listou alguns desses perfis para explicar por quais razões eles acabam sendo um problema para a vacinação. Confira a seguir.  O fiscal de comorbidades  “Nunca vi tanta gente com comorbidade antes”, diziam algumas postagens em redes sociais. “Comorbidade nutella”, sentenciou a escritora Tati Bernardi, em sua coluna na Folha de S. Paulo, na semana passada. E os episódios não pararam: de uma hora para outra, quem se encaixava em uma das condições listadas como elegíveis para a vacinação teve que lidar com eles - os fiscais de comorbidade.  O fiscal de comorbidade começou a aparecer assim que a vacinação foi autorizada (Foto: Shutterstock) Só que nem sempre essas pessoas têm em mente que ter uma comorbidade não significa que alguém deve sair contando ao mundo que tem essa condição, ou que seja algo tão incapacitador que a pessoa precise ficar em uma cama. Na maioria dos casos, esses pacientes levam suas vidas normalmente, com acompanhamento médico. 

E isso acaba fazendo com que quem tem uma dessas comorbidades até se sinta envergonhado de ir ao posto de saúde. Alguns acabam também ficando em dúvida: será que sua condição justificaria a vacinação? O advogado Gabriel Mattos, 31 anos, passou por esse dilema. Por ter nascido prematuro, ele tem asma crônica. Na infância e adolescência, conviveu com seguidas internações por crises. 

Diante do cenário atual, ele fez uma consulta com a médica que o acompanha desde a infância.“Eu fiquei muito em dúvida se, por ter deixado de ter crises de vez em quando, eu entraria como prioridade. Ela disse que pelo meu histórico de internações, era claro para ela que meu caso se encaixava entre os que deveriam receber prioridade”, conta. Depois da resposta da médica, ele não pensou duas vezes e recebeu a primeira dose no dia 14 de maio. “Como um ato político em defesa do SUS e da vacina, eu fiz um post nas redes sociais com a foto do momento da imunização e esse post foi muito respondido por amigos e conhecidos. Teve uma galera muito feliz, mas teve várias pessoas que me questionaram, que perguntaram se eu não tinha vergonha na cara. Me senti bem agredido”, diz.

Foi só depois dessa reação de algumas pessoas que Gabriel percebeu que existiam mesmo os fiscais de comorbidade. “Eu não duvido que existam essas pessoas (que fraudam a fila). Mas até passar por essa situação, eu não tinha percebido esse movimento. Me senti bem mal, me questionei até. Não fui eu que me coloquei na fila, foi uma profissional que me colocou e ela me acompanha desde meses de vida”, completa. 

A coordenadora do programa estadual de imunização, Vânia Rebouças, reforça que pessoas com comorbidade precisam ser vacinadas pelos critérios estabelecidos anteriormente pelas autoridades de saúde.“Essas pessoas têm um risco maior de formas mais graves. Por isso, elas realmente devem ser incluídas nos grupos prioritários, já que a vacina previne exatamente isso. Os critérios são clínicos”, enfatiza. Isso não acontece só com quem tem alguma condição de saúde que permite essa vacinação. Até quem pertence a grupos de profissionais elegíveis para tomar a vacina tem ouvido questionamentos. “Temos vários grupos que são expostos e várias categorias, mas, nesse momento, ainda não temos doses suficientes para todas as pessoas por critério profissional. Definimos alguns pela necessidade de se pensar nos grupos coletivos”, diz.  O ‘sommelier’ de vacinas Essa pessoa é aquela que quer escolher uma vacina em detrimento de outra, seja por confiar mais em uma ou por não confiar em alguma especificamente. Às vezes, o motivo pode ser a vontade de viajar para fora do Brasil - mesmo que um dia exista um passaporte vacinal, há chances de brasileiros vacinados continuarem sendo barrados, como a Espanha fez na última semana - ou o medo de ter alguma reação após a aplicação.  O 'sommelier' de vacinas é aquela pessoa que quer tomar uma vacina em detrimento de outra (Foto: Shutterstock) Para a infectologista Adielma Nizarala, da Secretaria Municipal da Saúde, a preferência por um imunizante tem a ver com a desinformação.“Se você pensar que toda e qualquer vacina no mercado tem segurança comprovada por um órgão maior que é a Anvisa e o mundo todo está usando, não tem justificativa”, aponta.No caso das escolhas por viagens, ela é taxativa. “É algo que está muito mais voltado a um motivo menos nobre. A gente não toma vacina por isso”, reforça. 

De todos os perfis listados aqui, talvez o sommelier de vacinas seja aquele que já é mais possível identificar, de forma concreta, nas campanhas de vacinação do município e do estado, segundo ela. “A gente observa que, quando a vacina da Pfizer chega, vai logo embora. Esse é um perfil que a gente sente bastante, por absoluta ignorância”. 

A advogada Tânia Pedreira, 55, diz que pensou sobre essa possibilidade. Ela conta que, quando chegou para se vacinar, no sábado passado (5), perguntou qual era o imunizante disponível. "Eu acho que se fosse a Coronavac, ia aguardar um pouco. Além de dizer que a eficácia era menor, em determinados lugares você não entra se for vacinado com a Coronavac", diz. Tânia considera que ainda há muitas incertezas sobre a covid-19 e, por consequência, sobre as vacinas."A gente fica no meio disso, sem saber exatamente o que é bom, o que pode acontecer. Então, a gente fica com receio", explica a advogada. Quanto à entrada em outros países, ainda não há mudança quanto ao status do Brasil. Países como a Espanha, que liberaram a entrada de turistas vacinados, com exceção do Brasil, África do Sul e Índia, aceitam imunizantes aprovados tanto na União Europeia quanto pela Organização Mundial da Saúde (OMS). No início deste mês, a OMS aprovou o uso emergencial da Coronavac, que poderá até ser incluída no consórcio Covax Facility.  O negacionista  Talvez esse seja o perfil mais problemático de todos esses, porque envolve justamente as pessoas que não acreditam em vacinas - e, por isso, não querem ser vacinadas. Quanto mais pessoas com essa atitude deixarem de ser imunizadas, mais difícil fica para controlar a epidemia. 

Para a infectologista Adielma Nizarala, da SMS, se tornar alguém negacionista envolve também falta de informação. Isso, na avaliação dela, parte da gestão maior, do Ministério da Saúde.  Pessoas que não acreditam em vacinas podem tornar a imunização coletiva ainda mais difícil (Foto: Shutterstock) “Acho que a população poderia ter sido muito mais informada e participativa do processo de construção da vacinação do que foi. Apesar de termos um bom Plano Nacional de Imunização, a propaganda dele tem caído nos últimos anos. Se as pessoas não têm essa informação, elas acabam não entendendo a importância do que é ser vacinada”, diz. O pesquisador Ramon Saavedra, do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (Ufba), aponta que nenhuma desses perfis faz muito sentido. Aos negacionistas, ele explica que a aceleração para a aprovação das vacinas foi devido à situação de emergência sanitária. 

“Mas a vacina salva e há uma série de casos científicos na humanidade que comprovam. A varíola é uma doença que não existe mais por conta da vacina. Temos a esperança de um dia o coronavírus ser assim, mas a vacinação já garante que a mortalidade diminua e possamos retornar para a realidade”, pontua.  O ‘altruísta’  A atitude dessa pessoa pode até ser boa. Na semana passada, a jornalista e apresentadora Tia Má acabou trazendo o assunto à tona quando perguntada se seria imunizada como jornalista - desde o dia 3 de junho, esses profissionais com 40 anos ou mais podem se vacinar em Salvador. Em suas redes sociais, Tia Má respondeu que, ainda que fosse jornalista, não se vacinaria por não estar trabalhando na profissão. 

Na ocasião, alguns usuários parabenizaram o gesto. Outros, por outro lado, criticaram. “Não existe a possibilidade de deixar a sua vacina para alguém. O plano de imunização é coletivo e não individual. No fim do dia, ninguém atende seu desejo. A vacina que tu deixou para trás vai pro lixo porque, querendo ou não, ela foi planejada para você e você só tá atrapalhando”, postou uma usuária.  Os altruístas podem achar que estão 'deixando' suas doses para outras pessoas, mas não é bem assim (Foto: Shutterstock) Diante das respostas, Tia Má explicou que, na verdade, seria imunizada como lactante. “Amores, aquela postagem foi fundamental para que eu entendesse que mesmo discordando do plano de vacinação, é preciso seguir. Quis pedir que as pessoas não furassem filas, que aguardassem sua vez. Mas é isso. A gente erra até quando tenta acertar”, respondeu. 

O pesquisador e sanitarista Ramon Saavedra, que faz doutorado no Instituto de Saúde Coletiva da Ufba, reforçou justamente isso: os grupos de vacinação não são definidos a esmo.“Eu tenho um bordão: grupo liberado, é vacina no braço. Há toda uma cadeia de pessoas responsáveis que tomam conta disso, portanto se há a liberação, é importante que você vá”, diz. Os índices de vacinação podem não apenas reduzir taxas de ocupação em hospitais como diminuir as taxas de transmissão. “Portanto não fica nessa de deixar pro outro. Você também é importante. É um ato de solidariedade ir se vacinar”, enfatiza. 

*Colaborou Vinícius Nascimento