Desprotegidos pela fé: uso de máscara é tido como decisão pessoal em algumas igrejas

Em alguns templos religiosos, coronavírus chega a ser compreendido como "castigo divino" e vacinação é desincentivada por lideranças

  • Foto do(a) author(a) Fernanda Santana
  • Fernanda Santana

Publicado em 27 de março de 2021 às 11:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Shutterstock

Quando os ventos são contrários, o melhor é se resguardar, sem confrontar o furacão, ensina a bíblia, para quem crê nela. Quem briga com a natureza perde. Não se arrisque sob o pretexto da fé. Isso não é fé, como mostra o quarto capítulo do livro sagrado. Em alguns templos religiosos, no entanto, o negócio é afrontar a ventania, à espera da proteção espiritual. Na pandemia, esse vento é o coronavírus, e qualquer escudo contra ele é divino. 

Dentro das igrejas, usar máscara pode ser “questão de foro íntimo” e, dispensar medidas de segurança, idem. Há quem veja, por exemplo, o coronavírus como castigo divino, contra o qual não há remédio, exceto orar. O Código Penal trata como crime contra a saúde pública descumprimento de medida sanitária, como aquelas para conter o avanço do coronavirus ou expor algo a risco direto ou iminente.

O pastor Eliel Marins, 62 anos, lideranças de duas igrejas batistas em Salvador, uma no bairro de Dom Avelar e outra em Amaralina, costuma chamar - em gravações para as redes sociais, por exemplo - os fiéis de "os imunizados pelo sangue de Jesus". “Na igreja, quem quiser, usa máscara”, conta o líder religioso. Ele próprio, no entanto, não usa, só quando o obrigam. “Fomos feitos para respirar oxigênio", justifica.

Nas últimas semanas, a Bahia vive um colapso no sistema de saúde. Enquanto isso, parte das lideranças religiosas vão em outra direção. Os eventos religiosos estão permitidos no estado, com 30% da lotação permitida, e podem servir de palco para replicação de comportamentos indesejados durante a pandemia, como o não uso de proteção individual. 

A Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano, que fiscaliza o cumprimento das restrições em Salvador,  não  autuou nenhum templo religioso. Isso não significa que não tenham ocorrido irregularidades, pois as fiscalizações ocorrem  espontaneamente ou motivadas por denúncias.

Seja no templo batista da Rua Visconde de Itaborahy, em Amaralina, onde há 662 casos confirmados de covid-19, ou da Rua das Mercedárias, em Dom Avelar, com 555, mal se vê rostos mascarados. Os cultos  respeitam o toque de recolher vigente, conta o pastor Eliel. 

“Se Jesus estivesse [aqui], qual seria a ordem? Jesus [nos] deu autoridade para curar enfermos”, defende elel, que acredita em “terror” criado sobre o vírus. Nenhum fiel de nenhuma das duas igrejas morreu vítima de Covid-19, acrescenta. Na Bahia, já morreram mais de 14 mil pessoas. 

Uma influência invisível 

A Ordem dos Ministros Evangélicos no Brasil e Exterior e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil responderam que cada igreja tem liberdade para adotar suas medidas de seguranças, obedecendo às determinações sanitárias."Não temos ingerência. A nossa mensagem tem sido de precaução, prudência e o respeito às medidas sanitarias", diz pastor Henrique Avelino, diretor da Omebe.Na Bahia, 65,3% da população é católica, 17,4% evangélica e 12% não segue nenhuma religião - o restante  adota religiões de matrizes afro-brasileiras, espíritas e orientais. Não existe central de denúncias relacionadas especificamente às ações de lideranças religiosas, no que diz respeito à pandemia. Os templos religiosos ficaram fechados duas vezes, desde o início da pandemia - em março até julho e por uma semana em fevereiro. A abertura e fechamento de igrejas e outros espações religiosos é questionada em todo o país. Missa na Igreja do Bonfim, durante a pandemia (Foto: Arquivo CORREIO) Em São Paulo, depois da pressão de igrejas, que apresentam cada vez mais expressividade na política, o estado voltou a permitir cultos, missas e outras celebrações. Imerso no caos, as liturgias voltaram a ser proibidas. Na última semana, os templos religiosos passaram a ser considerados "essenciais". 

A discussão em torno do tema acontece, do ponto de vista epidemiológico, explica o epidemiologista e professor da Universidade Federal da Bahia, Eduardo Netto, porque esses locais apresentam, como qualquer outro que reúna aglomerações, riscos maiores de contaminação. A exposição pode ser ainda maior pelos ritos litúrgicos, como abraços, apertos de mão e o cantar. Nas igrejas católicas, a distribuição das hóstias continuam. Agora, são distribuídas nas mãos, não mais na boca dos fiéis. “O cantar… Quando você fala alto, existe um espalhamento maior do vírus”, exemplifica Netto. Mas, há uma parte não vista, tão invisível quanto o vírus: o poder que um líder religioso pode ter na coletividade, alerta a pesquisadora e autora de livros  sobre grupos religiosos no Brasil, a pós-doutora em História Elizete Silva.  “Tal autoridade religiosa pode  se transformar em relação de poder para os leigos”, explica a professora da Universidade Estadual de Feira de Santana.     "Castigo divino" 

“Decidi começar a ir em outra igreja, com protocolo mais rigoroso”, conta um fiel, que trocou o templo religioso que costumava frequentar, em Salvador, por desavenças com as pregações do pastor. Discordava de quase tudo, principalmente ao ver fiéis sem máscara, crendo que a pandemia é um "castigo divino".  “Somos homens, a covid existe e precisamos ter cuidado”, defende. 

Os discursos religiosos que tratam a pandemia - ou qualquer outra questão - de forma alheia à realidade costumam surgir em momentos de crise. São considerados discursos extremistas, explica a pesquisadora Elizete Silva. “A religião é o suspiro do oprimido, dizia o velho Marx”, relembra ela. Por isso mesmo, a preocupação. 

As populações mais pobres e menos escolarizadas costumam estar mais susceptíveis à influência desses extremismos. Geralmente, eles surgem, completa Silva, de uma leitura literal e descontextualizada  dos textos sagrados.

Nessa perspectiva, considerar a covid-19 um castigo dos céus, de onde também viria a cura, como uma benção, é até esperado. Assim como se torna plausível o oferecimento de curas milagrosas, abençoadas pelo poder divino. 

Um pastor da Igreja Mundial do Poder de Deus, Valdemiro Santiago, chegou a vender remédios milagrosos e feijões que, supostamente, curariam a covid-19, por valores entre R$ 100 e R$ 1 mil, em São Paulo. Ele é investigado por estelionato. O Ministério Público do Estado tem um canal voltado para atender denúncias contra fake news. O número de denúncias contra líderes religiosos não foi informado. A desinformação corre solta. 

Recentemente, Ednara Maciel, 29, uma missionária cristã que atua no sertão da Bahia, participou de um culto e se assustou ao ouvir o pastor. Era hora do sermão, na comunidade de Lapinha, distrito de Bom Jesus da Lapa, onde a população vive da agricultura, quando o pastor, sem máscara, pediu que as pessoas não tivessem medo de nada. “Ouvi  ele falar que a vacina era sinal do anticristo, que não era para tomar, que as pessoas não precisavam nem usar máscara”, lembra. As pessoas  saudavam com “glória a Deus” cada pregação. A Secretaria de Saúde  da Bahia respondeu que não podia estimar o impacto da desinformação nos 417 município, pois cada um deles  é responsável por operacionalizar as própria medidas.   Saúde e religião, uma união possível 

Há dois caminhos a ser analisados para entender a influência das lideranças religiosas: o alinhamento com ideias políticas negacionistas na religião e outra da organização dos templos em si, com suas crenças e maneira de professar a fé, explica Ronaldo de Almeida, cientista social que estuda religiosidade desde os anos 80.

Ele conta que tem visto, durante a pandemia, “uma ideia de apocalipse, fim do mundo, que está nessa cosmologia evangélica”. “Mas é sempre bom dizer que não é bom generalizar”, frisa.

Quando chega os anos 80, o pentecostalismo passa por profundas mudanças, e o discurso do fim do mundo, de um planeta que não teria volta, senão com a volta de Jesus, é deixado de escanteio. Daí o estranhamento dele pelo retorno de alguns discursos.  “É uma rede complexa”, define. 

E como qualquer outra instância  social, complexa,  a religião não deixa de influenciar e ser influenciada. Por isso, a saúde é uma questão a ser considerada. Uma doença pode ser compreendida individualmente pelo lado da religiosidade, pontua Clarice Mota, professora do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (Ufba). 

O grau dessa interferência também muda conforme a matriz religiosa. Algumas costumam usar mais o poder de convencimento, forjando uma relação de poder em torno de si, diferencia Clarice. O discurso pode ser assimilado como prática, conclui, por uma “questão de precariedade”.  “Nas religiões protestantes, assim como a do poder carismático católico, podemos ver uma maior narrativa assim, mas as vertentes variam entre si”, explica. A pesquisadora faz parte de um Comitê de Enfrentamento ao Coronavírus formado por ela e 40 candomblecistas, que tenta adaptar para a realidade das populações de terreiro a realidade da pandemia. A "maioria maciça" dos dois mil terreiros de Salvador está fechada, segundo Leonel Monteiro, presidente da Associação Brasileira de Preservação da Cultura Afro Ameríndia.

Ao longo da história, a religião também - e sempre - tem um papel central: o de acalento. Há figuras que, inclusive, alinham a religiosidade a ações humanitárias. O pastor Henrique Vieira, da Aliança Batista  e o Padre Júlio Lancelotti têm se destacado nisso. 

Em Salvador, ha uma marca física dessa integração entre a ciencia e o religioso. No fim do século 19, época de epidemia da Febre Amarela, o médico e sacerdote anglicano J. Paterson passou a ser conhecido como “médico dos pobres”, conta Elizete Silva.  Um busto de metal em homenagem a ele está fincado numa praça que também leva seu nome, no bairro da Graça, como uma lembrança permanente da união possível entre religião e saúde.