‘É como se ficássemos anestesiados’: Entenda o que move as aglomerações políticas na pandemia

Segundo IBGE, 75% das cidades baianas dependem da prefeitura para sobreviver economicamente; paixão política e tradição também explicam a campanha acirrada

  • Foto do(a) author(a) Daniel Aloísio
  • Daniel Aloísio

Publicado em 21 de outubro de 2020 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Divulgação/Edivaldinho de Nenca

Por causa de um político, você teria coragem de sair de casa, ignorar o distanciamento social, esquecer que a pandemia existe e, sem máscara, se aglomerar com uma multidão? No interior do estado, muita gente não só tem coragem, como põe em prática e compartilha nas redes sociais. A cada final de semana, surgem vídeos e imagens de aglomerações durante a campanha eleitoral, mesmo que a covid-19 ainda mate na Bahia.  

“A alegria do momento faz com que a gente esqueça da dor, da consequência do vírus. É como se ficássemos anestesiados”, tenta explicar Rafaela*, que participou de um desses eventos em sua cidade natal, Ribeira do Pombal, localizada no nordeste baiano. “A gente perde o medo e depois, quando o sangue esfria, começa a raciocinar. Dá uma sensação de vergonha, pois fica a preocupação em pegar o vírus ou transmitir para pessoas indefesas”, completa. 

Na cidade de Rafaela, todo final de semana acontece pelo menos dois eventos políticos com aglomerações: carreatas, passeatas, paredões ou pequenos comícios. “É assim: um candidato faz um ato hoje e o outro responde amanhã. Ficar sem fazer algo é dizer que está politicamente fraco”, explica a jovem. Numa dessas ações, ela até levou máscara, mas logo depois retirou devido ao calor que fazia no momento. “Eu também me sentia estranha em ver todos sem máscara e só eu usando”, conta.  

Rafaela tem consciência de que a pandemia não acabou. Ela não tem nenhum parente candidato e é concursada pública, ou seja, não depende economicamente do candidato que apoia. Afinal, o que faz com que ela saia de casa por causa de uma campanha eleitoral? “É a paixão. Eu gosto tanto de política que vou para os atos que ocorrem em outras cidades da região. Eu acredito tanto e confio que ele vai melhorar a vida do povo, que esqueço o resto”.   

Por esse mesmo caminho pensa Rodrigo*, morador de Ribeira do Amparo, também no nordeste baiano. “A política faz o sangue ferver. É pior do que futebol e religião. A disputa é muito grande, o povo fica numa alegria, se mobiliza para participar, não tem jeito”, diz. No entanto, o rapaz reconhece que existem razões econômicas ligadas a essas aglomerações. “Alguns candidatos pegam pessoas mais carentes e pagam combustível para eles participarem dos atos. A gente percebe que isso é uma realidade”, opina. “Eu sempre fui mais pelo fanatismo, a paixão de torcer pelo candidato. Mas eu percebo que muitos vão é pensando numa vantagem, em um futuro emprego na prefeitura. E isso é um problema para quem se elege, pois ele não vai conseguir empregar todo mundo. Por isso, muitas vezes os eleitores se frustram”, completa o rapaz Dinheiro 

Segundo a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), uma cidade não pode ultrapassar os gastos com folha de pagamento de servidores em 54% da Receita Corrente Líquida. Ou seja, mesmo se o prefeito quisesse, ele dificilmente conseguiria “dar emprego” para muitas pessoas de uma cidade sem ferir a LRF e correr risco de ter suas contas rejeitadas pelo Tribunal de Contas.  

Ao mesmo tempo, o mais recente cálculo do Produto Interno Bruto (PIB) dos Municípios, feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2017 mostra que 75% das cidades baianas dependem prioritariamente da administração pública municipal para sobreviver economicamente. São 311 municípios com administração, defesa, educação, saúde pública e seguridade social como as principais atividades.  

Isso torna a eleição municipal ainda mais importante, já que uma vitória de um candidato aliado pode significar um possível emprego, ao mesmo tempo que uma derrota pode representar quatro anos de dificuldade para o cidadão.“O que acontece na Bahia é o que ocorre em todo o país. Quanto menor o município, geralmente, mais dependente do poder público ele é. A grande maioria das cidades baianas são pequenas e, exceto os que vivem do turismo, a economia é baseada na área rural, que agrega pouco valor de renda. E aí a prefeitura entra como um importante setor empregador. É ela que paga os salários e impulsiona a economia. Se tira a prefeitura, acaba a renda”, explica Eduardo Stranz, consultor da área de Estudos Técnicos da Confederação Nacional de Municípios (CNM).  Luana* hoje vive em Salvador, mas já morou em Santa Maria da Vitória, no oeste baiano, e sabe bem o que é depender da prefeitura para sobreviver. “Eu fazia um bico como alfabetizadora de jovens e adultos e, nas eleições, fui obrigada a colocar um quadro bem grande do candidato na frente da minha casa. Eu fiquei revoltada, tinha vontade de tirar, mas não podia. Aceitar era como se fosse uma forma de eu pagar pelo salário que recebia”, disse.  

A jovem confessa que é comum no interior as pessoas pedirem ao candidato um emprego para só depois votarem nele. “Uma vez vieram visitar minha casa e alguém da própria campanha dele soprou no meu ouvido mandando eu pedir um emprego para ele. Eles acreditam que se a gente não pedir algo é como se tivéssemos dizendo que não íamos votar. Eles precisam dessa dependência”.  

Adriana*, que também participa de um desses eventos em Anagé, cidade do centro-sul da Bahia, enxerga essa realidade econômica. “Se você apoia um candidato e quer que ele ganhe, você espera fazer parte da equipe de trabalho dele como uma certa consequência. Já quem está na situação vai com medo do prefeito ganhar e ela perder o trabalho. Tem pessoas que são ameaçadas de demissão se não forem para os eventos”, revela.   

Tradição 

Para Clovis Oliveira, cientista político e professor da Ufba, existe ainda a questão da tradição em como a política é vivida no interior, o que favorece o surgimento das aglomerações. “Tem a cultura no interior de encontros, reuniões, passeatas, carreatas... é o contato do candidato com os eleitores e potenciais eleitores. O contexto da pandemia, com as normas de isolamento social, se choca com esse modo de fazer campanha”, pontua.  

Clovis avalia que é compreensível que a população se mantenha fiel à sua tradição e tenha dificuldade em assimilar essas normas nesse contexto eleitoral. “A eleição no interior é uma guerra e uma festa ao mesmo tempo. Movimenta a economia da cidade, a rotina, tudo que se refere à dinâmica de sociabilidade dentro da cidade”, acrescenta.  

Mesmo que aglomerar na pandemia seja considerado “errado”, alguns candidatos não sentem vergonha em compartilhar imagens disso nas próprias redes sociais. Para o cientista, isso ocorre porque esses eventos são importantes atos de propaganda do candidato.  “De alguma maneira, eles percebem que as sanções não são tão rígidas. Basta observar o comportamento do presidente da República que não respeita as normas. Ao longo dos últimos tempos, as caminhadas e visitas a lugares públicos sempre se constituíram como atos de campanha para que o candidato se apresente aos eleitores e peça votos. Na carreata, quanto maior for o número de carros e motos presentes, maior a força política do candidato. Isso funciona quase como uma pesquisa eleitoral”, explica.  TRE  Em nota, o Tribunal Regional Eleitoral da Bahia (TRE) afirmou que os juízes eleitorais, no exercício do poder de polícia, deverão coibir atos de campanha que violem as regulamentações sanitárias, podendo fazer uso, inclusive, do auxílio de força policial, se necessário. Os atos de campanha que provocarem aglomeração irregular de pessoas e não respeitarem as medidas sanitárias obrigatórias serão enquadrados como crime de desobediência nos termos do artigo 347 do Código Eleitoral. 

 O eventual exercício do poder de polícia não afasta posterior apuração pela suposta prática de ato de propaganda eleitoral irregular, abuso do poder político, abuso do poder econômico e/ou crime eleitoral. Nesses casos, caberá encaminhamento ao MP eleitoral para as medidas cabíveis. 

 “Nas Eleições Municipais, o juiz eleitoral é a autoridade responsável pela presidência do pleito, e deve manter a ordem e a segurança, impedindo aglomerações em meio à pandemia. O candidato que não entender isso será responsabilizado legalmente, mas, antes disso, será cancelado pelos eleitores, como se diz hoje nas redes sociais”, explicou o presidente do TRE, desembargador Jatahy Júnior.   

* Nome original mudado a pedido dos entrevistados.

** Com a orientação da chefe de reportagem Perla Ribeiro.