É tudo branca? Saiba porque a sereia de pele clara não representa Iemanjá

Culto do orixá foi trazido para o Brasil com negros escravizados

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  • Da Redação

Publicado em 31 de janeiro de 2021 às 07:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Nara Gentil/CORREIO

Na Nigéria, especificamente em Ibará, Iemanjá é a padroeira oficial do lugar e cultuada todo ano. Lá, existe um templo em que se encontra uma tradicional imagem da divindade. O francês Pierre Verger registrou a figura, uma senhora de corpo robusto, negra e de "seios volumosos, símbolo de maternidade fecunda e nutritiva", como narrou Verger no livro ‘Orixás’. Ah, e sem rabo de sereia. Alguns mares distantes dali, no templo de Iemanjá na Bahia, na colônia de pescadores do Rio Vermelho, a Rainha do Mar tem um aspecto bem diferente daquele conhecido na África, o berço dos orixás. Das 115 imagens coladas no chão da casa de Iemanjá, apenas quatro são negras. O que se vê é uma mulher branca, jovial, com seios cobertos pelo pudor, traços europeus  e cabelos lisos. Isto sem contar as três barbies sereia que estão no local; e uma Nossa Senhora Aparecida. 

"Eu tenho 54 anos e 46 anos de axé e não sei como ela virou branca. No Candomblé, todos os orixás são pretos e africanos. Lá fora, cada um escolhe a imagem que quiser. É como as imagens da bíblia que cada um interpreta como quer", disse Pai Ducho D’Ogum, responsável pelo presente de Iemanjá na festa do 2 de Fevereiro deste ano. O presente será uma imagem da orixá branca. "Todas as divindades africanas são pretas. Não existe este perfil de entidade branca. Apenas Oxalá é albino. Esta imagem branca não existe no candomblé", reforça o babalorixá e presidente da Federação Nacional do Culto Afro-Brasileiro, Pai Ari de Ajagunã.

Sincretismo  Desde que os negros escravizados trouxeram seu culto para o Brasil, Iemanjá mudou na sua fisionomia, recebendo aspectos de diversas etnias e crenças, como o próprio Pierre Verger descreveu sobre os aspectos da divindade cultuada no Brasil e em Cuba. A Umbanda também teve papel fundamental neste branqueamento da Rainha do Mar. A religião genuinamente brasileira abraçou doutrinas do catolicismo, espiritismo e Candomblé, o que contribuiu para que Iemanjá absorvesse o sincretismo relacionado a fisionomias de imagens sacras católicas.

"Ela é representada como uma espécie de fada, com pele cor de alabastro vestida numa longa túnica (...). Iemanjá aparece magra e esbelta, com pequenos seios e o corpo encurvado. Estamos bem longe da Iemanjá matrona de seios volumosos", descreveu Pierre Verger, ao mencionar o culto da orixá na Umbanda, em 1980.

O presidente da Associação Brasileira de Preservação da Cultura Afro-Ameríndia (AFA), Leonel Monteiro, também atribui uma aproximação de Iemanjá com imagens católicas. "Esta influência a gente pode notar em alguns terreiros de Umbanda, onde a vertente católica é muito presente. Acabam absorvendo esta forma simbólica de Iemanjá de pele clara, numa posição santificada vista em Nossa Senhora. A figura branca também foi amplamente comercializada, ajudando a disseminar esta figura deturpada de Iemanjá", explica.

Esta imagem esteriotipada de uma sereia branca e de traços europeus banalizou a figura da orixá, o que também explica a presença de três barbies sereia no Rio Vermelho. "As pessoas pegam a ideia de que toda sereia é uma representação de Iemanjá. Totalmente errado. Uma boneca da Barbie loira ou a imagem branca europeia é a tradução da nossa sociedade, carregada de sincretismo e preconceito. Nem rabo de peixe Iemanjá tem", completa Lionel Monteiro. Vale lembrar que sereias fazem parte de diversas mitologias européias. 

Mestra em Relações Étnico-raciais, a pedagoga do Instituto Federal da Bahia (Ifba), Celiana Maria dos Santos transformou o questionamento sobre a cor de Iemanjá no seu livro-dissertação de mestrado ‘A Rainha do Mar – Quem é Yemanjá no imaginário dos pescadores do Rio Vermelho?’."Sempre me causou estranhamento quando visitava a casa de Iemanjá do Rio Vermelho. Como podemos ter uma imagem branca representando uma Orixá que veio com negros escravizados? A negritude de sua origem continua relegada a segundo plano no país. A representação de uma Iemanjá branca e em forma de sereia destoa da imagem extraída por Pierre Verger nos antigos templos iorubás. Ou seja: o predomínio da cultura europeia segue fazendo escola, inclusive, sobre as religiões de matriz africana", disse a pesquisadora. Há 60 anos como pescador do Rio Vermelho,  Antônio Alves do Santos nunca se deu conta do número elevado de imagens brancas na casa da orixá. "Eu vi construir esta casa de Iemanjá aqui. Antigamente era uma barraca de palha e só tinha uma imagem, acho de cimento, não lembro direito. Não tinha tantas imagens brancas assim na minha época. Como a casa é aberta para os devotos, colocam de tudo aqui. A maioria  assim, branquinha. Não sei explicar o motivo, mas posso dizer que vem mais gente de pele branca do que preta prestar homenagem à Iemanjá. Deve ser por isso", conta Antônio. 

No Candomblé, segundo Pierre Verger, há sete Iemanjás, todas filhas de Olokum, um deus dos mares. Elas até possuem idades, funções, moradas e temperamentos diferentes. Mas todas são pretas. E com os seios fartos.