'É uma volta da segregação do carnaval do passado, só que pior', diz Pedro Tourinho

Para o publicitário, diversão em Salvador foi privatizada não só devido à pandemia; leia entrevista completa

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  • Fernanda Santana

Publicado em 26 de fevereiro de 2022 às 16:00

- Atualizado há um ano

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Pela primeira vez na vida, o empresário, consultor e escritor Pedro Tourinho, 40 anos, não passará o carnaval em Salvador - estará em Jaguaripe, no Recôncavo Baiano. Fosse este um carnaval como qualquer outro do passado, ele talvez nem tivesse tempo para conversar com a reportagem. "É uma experiência bem diferente. A gente vê que estão ocorrendo diversos eventos na cidade. Mas, que eventos são esses ocorrendo na Bahia, hoje?", pergunta Tourinho.

É uma pergunta que ele tem feito constantemente e o leva a uma conclusão: "É uma volta da segregação do carnaval do passado, só que pior".

Em março de 2020, início da pandemia no país, Tourinho arrumou as malas e partiu de São Paulo, onde morava, para Salvador. Instalou-se no Santo Antônio Além do Carmo, onde já tinha um imóvel. Desde então, diz ter se sentido "seguro aqui", por ver o "cuidado, inclusive de explicar os porquês das coisas". Nos últimos meses, nas discussões relacionadas ao carnaval, percebeu o contrário."Talvez o grande problema agora tenha sido a falta de explicar o porquê de as decisões terem sido tomadas nesse sentido [...] Fica em mim uma sensação de que não foi colocado energia para se buscar soluções", opina Tourinho, sobre a privatização das festas de carnaval neste ano, sem espaço para eventos públicos que cumpram a legislação vigente.O empresário é, hoje, um dos maiores nomes da comunicação baiana: agenciou artistas, produziu festivais de músicas e eventos no Carnaval de Salvador - como o Camarote Expresso 2222 -, dirigiu programas e participou do lançamento da carreira internacional de Anitta. No ano passado, ele decidiu se dedicar à função de consultor de executivos.

Em entrevista ao CORREIO, Tourinho falou sobre os caminhos que se desenham para o Carnaval de Salvador e a música baiana, a segregação expressa em novas formas e a privatização do direito de se divertir. "Mais uma vez, se há um problema de saúde publica, ok, todo mundo pode abrir mão. Mas se há uma forma privada de fazer e não há uma forma pública, temos que pensar, esse é meu ponto", critica. Confira na íntegra:

CORREIO: Pelo menos 20 festas que estão ocorrendo desde ontem. É difícil dizer que o Carnaval não está acontecendo. Que Carnaval é este, o de 2022?

Pedro Tourinho: A gente vê que estão ocorrendo diversos eventos na cidade, seguindo regras colocadas pelo Governo do Estado. Mas, que eventos são esses e qual é o perfil deles? No ano passado, Igor Kannário fez um questionamento sobre o carnaval público e privado. Naquela época, até havia previsão que grandes eventos ocorressem em Salvador.

Se há uma solução dada para eventos fechados acontecerem, por que não há para os eventos abertos? É claro, para todos, que o carnaval, nos moldes que ocorreu nos últimos anos, é impossível. Isso é claro para todo mundo, ninguém questiona isso.

Mas, que outra solução pode ser dada para que essa indústria do entretenimento consiga operar? Porque todos os mercados estão funcionando. A gente consegue pegar avião, ir para jogo de futebol, para restaurante, porque [eles] têm protocolo. Por que não investir em encontrar um protocolo que torne possível que a indústria do entretenimento opere de forma democrática, pensando também no consumidor? "As pessoas vão se encontrar, as praias estarão cheias. Por que um paredão é proibido, reprimido, e outra festa não é? Porque foram dadas condições para que essa outra festa ocorra. Minha grande crítica a esse momento em Salvador, e talvez seja uma questão de todo o Brasil, é que as soluções estão sendo tomadas apenas para uma parte [das pessoas] e nem todos os públicos estão tendo o direito à possibilidade de se divertir no Carnaval, com segurança".Então, que protocolo poderia ser criado para democratizar a possibilidade da diversão? A pandemia privatizou a diversão em Salvador, deixando mais clara ainda a questão social. No Santo Antônio, pessoas aguardam em fila carnaval privado (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) Você tem eventos pequenos que acabam tendo que cobrar preços mais caros para serem viáveis, porque têm que pegar 50% da capacidade do lugar e ter um máximo de 1,5 mil pessoas. Outro aspecto é como manter a possibilidade de uma diversão democrática, que de certa forma o carnaval oferece.

Por que essa pergunta não foi feita?

Acho que são duas coisas. Primeiro, uma falta de intenção política de se pensar nisso. Ou seja, não acho que o Governo do Estado tenha interesse nem em festas públicas, nem privadas. O que ocorre de festa privada foi resultado de uma grande pressão para que houvesse o mínimo possível. O Carnaval de Salvador é uma grande festa público-privada, com uma estrutura também montada para o povo, mas virou privado deficitária.

Um dos motivos, obviamente, é a pandemia, mas a falta de desejo político de encontrar soluções é clara. Segundo, a falta de segurança, também, porque a cada 15 dias as coisas mudavam a partir da decisões do governo e o carnaval leva tempo para ser feito. 

Se depois do trabalho feito, alguém dissesse que não poderia [ter o carnaval], por questão de segurança, tudo bem. Mas a sensação que eu tenho é que não se chegou a esse ponto de discutir, aprofundar totalmente, e trabalhar para pensar formas."Também há uma discussão um pouco mais filosófica-tropicalista da coisa é o entendimento do direito de se divertir, de ser feliz, de viver esses dias de festas, é também um direito fundamental das pessoas".É uma questão cultural. Mais uma vez, se há um problema de saúde publica, ok, todo mundo pode abrir mão. Mas se há uma forma privada de fazer e não há uma forma pública, temos que pensar, esse é meu ponto.

Você chegou a ser procurado por alguém - político ou empresa - sobre isso? Havia alguma ideia sendo discutida?

Eu acompanhei as discussões pela imprensa. Neste ano eu já não teria negócios no Carnaval de Salvador, porque já sabia que aconteceria essa instabilidade. Acompanhei o desenrolar das coisas como cidadão baiano interessado em como as coisas se desdobrariam, muito preocupado com a classe artística, porque sabemos o quanto essa indústria sazonal do carnaval é importante para centenas de milhares de famílias. 

Não fui procurado, também nem procurei saber a profundidade do que estava sendo desenvolvido. Fica em mim uma sensação de que não foi colocado energia para se buscar soluções. Como, por exemplo, vimos no Rio de Janeiro, que aprofundou a discussão sobre o carnaval na Sapucaí.

Eles sabiam que era importante, discutiram, aprofundaram e concluíram em um momento que não era possível fazer. Me pareceu um diálogo mais coletivo. 

Acompanhando as notícias na Bahia, me pareceu uma conversa meio perdida. Os empresários falavam uma coisa, as comunidades suplicavam outras, o governo soberano marcava datas para demarcar suas decisões. Foi um processo um pouco confuso. Imagino que tenham tido estudos para definir se essa foi a melhor decisão. Se houve, o processo de divulgação da construção desse consenso foi muito ruim.

É bom dizer que tenho muito orgulho de ter estado na Bahia durante a pandemia porque fez uma grande diferença o trabalho de Rui Costa com ACM Neto [ex-prefeito], nos primeiros anos de pandemia. Eu voltei de São Paulo para cá para Salvador em março de 2020, primeiro mês da pandemia.

Me senti seguro e orgulho de estar aqui, porque eu via um cuidado maior, inclusive de explicar os porquês das coisas. Talvez o grande problema agora tenha sido a falta de comunicação, explicar os porquês das decisões terem sido tomadas nessa direção agora.

Bruno Reis disse que dava para organizar o carnaval em um mês. Rio e São Paulo vão fazer no feriado de Tiradentes. Por que aqui não se cogitou fazer depois?

São estruturas de carnaval muito diferentes, no Rio de Janeiro e São Paulo. O Rio tem um protagonista, que é a Sapucaí. Os blocos de rua acontecem ao redor dessa dinâmica. São Paulo tem escola de samba e blocos. Mas os grandes protagonistas são as escolas de samba.

A gente, em Salvador, não tem um protagonista, um evento fechado, não temos o carnaval estruturado dessa forma. Nosso carnaval é essencialmente de rua e os camarotes ocorrem ao redor das ruas. "Entendo a questão de não simplesmente transferir o carnaval para abril, porque depende de muitas outras coisas. São blocos que tradicionalmente desfilam em fevereiro. Aqui temos uma manifestação cultural de rua, tradicional, é uma conversa muito mais complexa do que mover a data para abril. No fim, tem outra questão: você vai mover o carnaval para Semana Santa? É uma questão maravilhosa, acho incrível [risos]. Mas, aqui a conversa é mais complexa".Aqui, o investimento da festa, na maior parte, é feito pelos próprios empreendedores. O Ilê Aiyê, por exemplo, promove o próprio desfile e vende as próprias fantasias. Acredito que a não definição em abril tem a ver com essa complexidade diferente. 

Os empresários voltam às ruas, em 2023, quando perceberem que podem lucrar com menos trabalho em festas privadas?

Essa é uma questão antiga sobre o Carnaval. Há alguns anos, Durval Lélys puxou essa conversa: ‘vamos fazer um carnaval nosso, fechado, já que é tão difícil desfilar na rua, vamos fazer um carnaval privado’. Os camarotes se transformaram em metaversos do Carnaval, não relacionados com a rua. É uma discussão que os grandes empresários de eventos privados têm puxado há muito tempo.

Fazer um carnaval que dependa do poder público e que tenha muita gente pode fazer sentido para uns empresários. Mas, para outros, fazer no Centro de Convenções, ganhando mais ainda, é outra história."É uma lógica que, para o empresário, pura e simplesmente empresário, que não entende ou não valoriza a dinâmica do carnaval de rua, pode fazer sentido. Eles podem fazer essa conta. Para mim, é uma conta errada, o protagonismo está na rua, não no camarote. Camarotes estão ao redor da rua, não o contrário. Se for assim, talvez dê certo dois, três anos, mas não será mais a experiência coletiva que é o Carnaval".É uma discussão que os empresários teriam sido obrigados a fazer agora, se houvesse os eventos grandes: será que eles voltariam para a rua? 

O que eu me pergunto é, será que eles fariam falta na rua? Será que não seria até melhor que eles ficassem mesmo longe e na rua tivesse mais espaço para doisas novas surgirem? 

O espaço físico sempre foi uma discussão relacionada ao Carnaval. Ela tende a ganhar mais força?

O espaço é uma grande discussão. Quando as cordas ocupavam a maior parte dos espaços públicos - todos com seus direitos, pagando impostos e fazendo tudo legalmente - era assim: uma privatização de uma festa originalmente democrática. O carnaval surgiu, há 200 anos, democraticamente, na Bahia. As pessoas se encontravam nas ruas. Esse encontro nas ruas sempre foi fundamental.

Tanto que as classes mais ricas, em algum momento, passaram a se organizar em clubes. A Associação Atlética, o Bahiano de Tênis... e a rua ficava mais livre para manifestações populares.

Nessa liberdade das ruas é que surgem os blocos, privados também, ocupando as ruas com sua turma. Isso, no fim, se desenvolveu num negócio extremamente segregacional. O espaço da rua passou a ser ocupado por grandes cordas."A corda não oferecia nada além da segregação. Não tem um grande serviço, apenas a segregação. Quando essa discussão vem à tona, no início dos anos 2000, já com a decadência do Axé Music, governo e prefeitura entenderam que precisariam, sim, contratar artistas para tocar sem cordas para população para que a festa existisse. Essa mudança de chave foi fundamental".Os clubes do passado e os blocos passaram a ser representados pelos camarotes, que poderiam oferecer tudo, salão de beleza, massagem, shows exclusivos. E a rua voltou a ficar livre para que coisas novas acontecessem e aí você tem a chegada da Baiana System, que não por acaso surgiu na madrugada, que era o horário que tinha livre nos circuitos. Pedro entre amigos - entre eles os atores Renato Góes e Fabrício Boliveira - na madrugada de Carnaval do Campo Grande (Foto: Acervo Pessoal) O novo se encontra com a resistência na madrugada do Carnaval da Bahia, que é um momento sem multidão, sem câmera ligada, com menos segurança. Eu sempre preferi sair na madrugada que em horários nobres, digamos assim.

Era na madrugada que as coisas aconteciam, como diz Edson Gomes [referência à musica Na sombra da noite]. Talvez essa metáfora da rua vazia favoreça o surgimento de coisas novas, que acho que é o que está ocorrendo.

É possível que o Carnaval vá se tornando ainda mais elitista?

Temos que separar a discussão da pandemia da discussão do carnaval em certo ponto. A pandemia vem, muito, para tornar as coisas mais extremas em todas as áreas, para evidenciar as diferenças. Quem tinha dinheiro para segurar a onda durante o fechamento do comércio segurou, quem não, quebrou. Quem podia trabalhar em casa, trabalhou, quem não, precisou se expor.

A pandemia radicalizou as diferenças. Com o carnaval, não é diferente: quem tem condição de pagar tem seu carnaval. Quem não, vai para uma festa, um paredão, que corre o risco de ser fechado pela polícia, porque não há estrutura ali. 

Já sobre o caminho do Carnaval de Salvador, espero, pelo menos, que a página seguinte siga no caminho que estávamos seguindo: espaços tradicionais abertos, com incentivo público e privado para um carnaval de graça, e com novos artistas de uma nova cena participando.

Um exemplo que gosto é o que ocorreu na Praça Castro Alves no último carnaval que tivemos, de 2020. Aquela praça foi esquecida, o circuito foi colocado de lado dos holofotes, o tradicional encontro de trios deixou de acontecer lá. 

No último Carnaval, aconteceram movimentos muito interessantes. O Palco Origem, por exemplo, na Barroquinha, trouxe artistas novos, que talvez não toquem no circuito Barra-Ondina, mas podem tocar no Brooklyn, em Paris, na África do Sul, em grandes festivais de música negra.

O que de mais interessante aconteceu naquele carnaval aconteceu exatamente nesse espaço renegado pela grande indústria, mas que foi brilhantemente ocupado por artistas que estão surgindo e se colocando como protagonistas da produção cultural da Bahia e que não estão no Axé Music, longe disso, em termo de relevância artística. 

Gostaria que o próximo carnaval determinasse essa reocupação dos espaços tradicionais tanto pelos próprios artistas tradicionais como pelos vanguardistas, que ficaram, ao mesmo tempo, longe e preservados desse grande acontecimento mercadológico que foi o Axé nos anos 90 e 2000. Pedro Tourinho, Fernanda Paes Leme e Helô Rocha (Foto: Acervo Pessoal) No passado, os clubes promoviam as festas e quem não tinha grana já ficava de fora. Esse momento atual te mostra o quê desse passado?

Mostra o retorno da lógica dos blocos no sentido segregacional, porque só tem carnaval quem tem clube e dinheiro. A gente não tem outra possibilidade de criar o novo se as festas só ocorrem nesses locais e só há carnaval para quem tem um clube. É uma volta da segregação do carnaval do passado, só que pior, porque hoje não existe sequer possibilidade das coisas aconteceram para além desses negócios fechados. 

Não me incomoda que existam eventos fechados, desde que haja possibilidade para pessoas que não querem pagar por eles, ou não tenham dinheiro, possam ter uma opção. Se eles [empresários e parte do público] querem se isolar fazendo um carnaval na Avenida Paralela, não tem problema.

Desde que exista estrutura, cuidado e protocolo para acontecerem os outros carnavais. Esse é o ponto principal. A minha crítica ao carnaval privado é essa: não ter sido possibilitado o carnaval público.

Em 2012, você escreveu no Correio* que o Carnaval se enforcou no próprio abadá. Você reviu ou atualizou o pensamento quase dez anos depois?

Acho que isso aconteceu. Na sequência desses anos, você teve o fim do Chiclete com Banana, a separação de Bell Marques, Durval saiu do Asa de Águia, o bloco diminui os dias de saída, muitos blocos fecharam porque perderam a relevância. Depois de 2015, o movimento dos blocos privados caiu muito.

Foi aí que começou uma transição de artistas contratados pelo poder público para esse movimento mais democrático, com cordas abaixando."Não foi por uma benesse do governo, mas porque os blocos quebraram mesmo. Eles se enforcaram no próprio abada, pois o negócio era tão predatório e tão sem identidade que as pessoas deixaram de ir, não se sustentava". Hoje uma Daniela, uma Ivete Sangalo, não bastam, não são mesmo suficientes. Nunca deveriam bastar. Aqui não. Voltamos ao principal: a democratização do carnaval. Se não democratiza, o novo não surge. E se o novo não surge, tudo acaba, porque os modelos antigos se sobrecarregam.

A verdade é que passa artista, vem artista, o Ilê Aiyê coloca o bloco na rua, o Olodum está saindo, os Filhos de Gandhy também, Bell Marques... Esses pilares seguram a nossa onda, na verdade. Por que não os valorizar?

Eu fiz agora o texto de apresentação para o documentário do Baiana System. Nele eu recordo a vez que eu tinha conseguido levantar uma grana da Petrobras, em 2001, para um projeto. Começou uma discussão sobre o melhor horário para a saída dos blocos afros.

Um dos fundadores de um bloco-afro perguntou quem disse que eles não queriam sair de madrugada? Eles queriam sair na madrugada. Por que ele diz isso? Em termos de propriedade de espaço e de tempo, a madrugada pertence a essa vanguarda. 

Por que não retomar a liberdade de sair quando se quer sair? A mídia tradicional não tem interesse no carnaval da Bahia, nunca teve, e agora menos ainda. A Baiana System se tornou o que é por gravações de celular que eram feitas de prédios, da madrugada.

Se não tivessem esses celulares gravando, a grande mídia não saberia, como ignorou por anos a existência de blocos afros, que passavam para as câmeras desligadas.

O que, de mais novo, te apresenta novos caminhos para a música local?

O Axé Music vai sobreviver nas festas de formatura e festas de interior. Sempre vai ter alguém querendo pagar cachê de artistas antigos, pelo que eles representaram. Eu estou completamente obcecado e orgulhoso com a história da Batekoo [festa e plataforma criada em Salvador com foco na diversidade da cultura negra, periférica e LGBTQIA+]."Para mim, há algum tempo, a Batekoo é o grande acontecimento, a grande marca que vai levar a Bahia para a próxima temporada. Porque é um grupo que surgiu de uma forma muito orgânica, composto por jovens que não viam espaço para si nas festas da cidade - mesma questão da segregação dos clubes. Nenhum problema em estar no clube, mas eles queriam o próprio evento, mais acessíveis, não só de preços, mas para diferentes identidades".Eles começaram a fazer eventos onde qualquer identidade é bem recebida. É um coletivo que já se apresentou no Brooklyn, na Europa, que faz festas no Brasil inteiro, e que dialoga com esse novo tempo de um público que não se preocupa com as fronteiras. 

Do lado da Batekoo, posso colocar o Afrobapho, Paulilo Paredão, e artistas que foram abraçados por esses palcos, como a Karol Konká, que fez o primeiro show pós-cancelamento [depois do Big Brother Brasil 2021] no Batekoo. Há também Tícia, Luna Monte, do Afrobapho, Rachel Reis, o Pirão, Digo.

Uma outra vertente que vejo como caminho é o pagotrap, que é diferente porque não traz a questão identitária como bandeira tão forte. O pagodão dialoga com o mundo por meio do trap. Ele passa a ser uma música que dialoga com o pop, o funk. E aí você tem o Rafa Dias como um grande produtor que abriu esse caminho, assim como Bruno Zambeli. O pagodão é uma coisa muito baiana sendo dita para o mundo.

Você tem o Me gusta, por exemplo, primeira músicade escala internacional gravada por Anitta: Xibatinha [do Attoxxa] está lá. Tem a frente Batekoo, Pagotrap, e há também Luedji Luna, que é um acontecimento em si e representa muito dessa nova música feita aqui.

As câmaras estarão ligadas para eles?

Acho que já não faz diferença essas câmeras, não muda mais a vida de ninguém aparecer num programa de Carnaval. Ser autor da música do carnaval não muda a vida de ninguém.

Lembro de uma vez, há muitos anos, em que eu estava conversando com o cantor da Banda Eva [Felipe Pezzoni], que na época era muito novo, nem estava na banda ainda.

Estávamos falando sobre isso de música do Carnaval. Eu disse para ele que, se eu fosse cantor, eu não gostaria de ter música do Carnaval, porque depois essas pessoas eram esquecidas.

Quem são as pessoas por trás dessas músicas do Carnaval? Conversei há muitos anos com isso sobre ele, talvez ele nem lembre, mas eu me lembro muito dessa conversa.  

Daniela Mercury foi uma artista que decidiu não participar de eventos fechados se os públicos não acontecessem. Como você avalia o posicionamento dos artistas do Axé neste Carnaval?

Eu acho Daniela Mercury foda. Ela foi a primeira artista a seguir de forma independente do eixo Rio-São Paulo. Foi a primeira artista a dar espaço ao samba reggae - as questões de apropriação devem ser debatidas, claro, mas a importância dela como a primeira a dar esse espaço.

Foi a primeira [cantora] a ter um camarote no Carnaval de Salvador e foi a primeira a não fazer mais camarote, quando viu que não fazia mais sentido.

Ela foi a primeira a abaixar as cordas, a primeira a colocar um DJ em cima do trio elétrico, a primeira a trazer discursos políticos, inclusive para cima do trio elétrico, e a primeira a dizer que se o carnaval não fosse democrático, ela não iria. Sou fã desses posicionamentos dela, que demonstram uma reflexão sobre o que se faz, o senso de importância de se posicionar em certos momentos.

Entendo se outros artistas não tiverem a mesma maturidade, independência, formação e disposição que ela tem. Se você me pergunta: o que você acha de artistas que não se posicionam? Eu prefiro artistas que se posicionam. A gente não sabe os motivos que os outros têm para não se posicionar, mas eu prefiro os que se posicionam. 

Os artistas do axé são, inclusive, cobrados a se posicionar. Você é um defensor de que os posicionamentos se alicercem na verdade. Sendo assim, esse não posicionamento é positivo?

Eu não acho positivo quem não é capaz de se posicionar, na verdade. Eu acho que quem não se aprofundou na própria verdade ou não banca os próprios pensamentos não pode evoluir.

As pessoas têm todo direito de estarem erradas, mas quando não colocam suas opiniões em discussão perdem a chance de evoluir no debate. Se determinado artista nunca colocou sua opinião na mesa, ele nunca foi confrontado. Se nunca foi confrontado, talvez não tenha evoluído internamente.

Não só o artista, qualquer pessoa que se preserva muito perde a chance de evoluir e crescer como indivíduo ao não se posicionar. Eu acho bem ruim quem não se posiciona. Não se posicionar é até pior que quem mente. Quem mente, pelo menos, vai ser confrontado [risos].

Mas quem não se posiciona fica no limbo, numa pseudo proteção, mas acaba sendo levado a uma total indiferença com os outros e perde a relevância.

Essa falta de posicionamento reflete em enfraquecimento para o axé hoje?

Se reflete na falta de relevância de muito desses artistas [do Axé]. Pessoas que não têm opinião podem ser relevantes? Quem é relevante na Bahia? As pessoas falam que depois de Gil e Caetano, não houve ninguém.

Dizem isso porque eles se posicionaram, falam o que pensam, erram e acertam, não falam nem cantam apenas para agradar um público, apenas. "Falei lá atrás do direito de se divertir e o estímulo intelectual faz parte desse pacote do carnaval. Veja o carnaval das escolas de samba, existe o samba enredo: é samba e é enredo, conta alguma coisa. Nos anos 2000, as músicas que eram feitas para carnaval não contavam muita coisa, era música de coreografia. A dança da manivela, para mim, é percussora do Tiktok. São coisas que você faz para engajar, mas não levam a lugar nenhum".Tudo bem, mas não é só isso, não pode se resumir a isso. Acho que muitos desses artistas [do Axé], que são pessoas superinteligentes, perderam a chance de serem relevantes ao não expor seu lado mais crítico. 

A Bahia, segundo você próprio já disse, exterminou muita coisa na busca pelo lucro. A relevância foi uma das coisas exterminadas?

O lucro, o sucesso, são bons e fundamentais, mas são consequências. Se você passa a querer seguir receitas de bolos, a receita de bolo não serve para todo mundo. A receita do bolo serve para quem a criou. Quem vem depois vai executar fórmulas de sucesso.

Por muito tempo, ocorreu isso. Então vira geração e outra e as coisas permanecem iguais. Cadê o que vem depois disso? Para não ser totalmente jogar metralhadora, eu respeito profundamente as pessoas que fizeram esse negócio.

Enquanto você vive o frison do sucesso e vê o dinheiro entrando, são poucos os que param para pensar o que estão fazendo. 

Não vou julgar quem viveu aquele momento, porque a profissionalização técnica, o fortalecimento do turismo, o dinheiro que entrou, foi muito positivo. O que não pode é não ter pensamento crítico ao olhar para traz e pensar que as coisas não poderiam ser feitas de formas diferentes e podem ser remediadas agora.

Você falou da necessidade de contar novas histórias. Muito se fala da dependência econômica que Salvador tem da indústria do entretenimento. Agora é um momento que forçará novos caminhos e histórias?

A gente tem que deixar de ser dependente das coisas. Acho que a Prefeitura e o Governo da Bahia têm feito algumas ações para levar a economia criativa a direções diferentes. Alguns esforços para ocupar outros espaços ou pelo menos promover uma mudança de direção. Eu ainda acho que eles [esforços] são poucos.

É legal que seja feito,  mas acho que a grande direção de transformação está nas periferias e não tudo centralizado no centro da cidade. Há grandes oportunidades se os aparelhos de produção e de história estiverem descentralizados.

Acho que há muito mais possibilidades se decentralizamos esse valor e essas histórias do que se continuarmos centralizando tudo no centro. Mas, bem ou mal, já há um caminho para pensar a cidade além da sazonalidade do verão ou do carnaval. Isso é muito importante.

O verão, inclusive, tem atraído cada vez mais pessoas. A cidade muitas vezes é colocada no lugar do místico. Como baiano e produtor cultural, isso te incomoda ou você acha necessário?

Eu acho que faz parte da história de Salvador, de alguma forma, esses elementos simbólicos de todos os povos que chegaram até aqui. Lembro que há uns anos houve muita crítica sobre a festa de Iemanjá, que estaria descaracterizada. Já foi muito pior, na verdade [risos].

A Lavagem do Bonfim é ocupada por políticos, marcas, pessoas que vão fazer maratona, desde sempre. A cidade tem essa característica de explorar ou de ser vista por esses lado do místico e do folclore. Acho que isso ocorreu de uma forma histórica, não planejada, por conta de Jorge Amado, Dorival Caymmi, essas figuras que contaram a Bahia a partir desse viés. 

O que acho é que temos que evoluir para que esses enredos não sejam os únicos. Mais a frente você tem o grupo de Teatro Olodum e O Paí, Ó trazendo outras histórias muito diferentes das que eram apresentadas e que representam nossa cultura para além disso. Eu acredito em outras narrativas, outras histórias que possam ser contadas sobre a cidade. 

Mas não há como negar, para o bem e para o mal, que aquelas histórias [menção à frase anterior sobre Amado e Caymmi] foram importantes e nos trouxeram em parte até aqui. Só que quando você vê Afropunk [o maior festival de cultura negra do mundo que fez sua primeira edição no Brasil em Salvador, em dezembro de 2021] se colocar aqui, ao invés de São Paulo e Rio, é porque eles entenderam que outras histórias são importantes. Essa transformação está ocorrendo.

Não precisamos mais que Jorge Amado conte a história do povo negro. Então, outras pessoas estão contando outras histórias que, acho, colocarão Salvador como a Rainha do Atlântico Sul, no lugar que ela pode estar, como pilar da cultura contemporânea.

O Santo Antônio é um dos lugares mais requisitados nesse novo contexto. Há moradores mais antigos que criticam tamanho fervor. Você, como morador novo, se posiciona como? 

Eu estou com eles [moradores antigos], totalmente.  O grande ponto de morar aqui, onde moro, é a comunidade, as pessoas se conhecerem. E se respeitarem. Desde os profissionais empreendedores, os antigos e os novos... quem mora aqui, novos ou antigos, tem um senso de comunidade muito forte.

Claro que os negócios daqui precisam prosperar. É muito bonito ver o Poró mudar o restaurante do lugar e ser muito próspero nisso. Isso alimenta a economia do bairro. A grande questão é como fazer isso de forma sustentável. Esses acontecimentos mais recentes têm a ver com a ideia de pessoas de fora de que isso aqui é terra de ninguém.

Colocaram bloco na rua numa época proibida, não havia licença para se fazer aquilo. É muito desrespeito. 

Eu não coloquei nem minha cara na porta quando isso aconteceu, porque realmente estou com os moradores antigos, respeito e faço da minha presença parte dessa frente [de críticas] no que eu puder. Há alguns anos, quando eu nem morava, queriam fazer o bloco Harém, um bloco de fora, aqui, e eu me posicionei contra. Sigo me posicionando, o que não quer dizer, como eu disse, que os negócios daqui não podem. Podem e precisam prosperar, mas do jeito certo. 

Você é uma pessoa que incentiva as pessoas a virem para Salvador. Você se vê num papel de uma espécie de embaixador?

Pelo meu trabalho e características pessoais, sempre trouxe muitas pessoas aqui. Eu sou um apaixonado por Salvador e faço movimentações para que as pessoas venham não só visitar, mas fazer negócios. Até o próprio Mauricio [Maurício Sacramento, produtor da Batekoo], eu incentivei ele para que ele se mudasse de São Paulo de volta para Bahia. Podemos ser prósperos aqui.

Não me vejo como embaixador, não [risos], mas como uma pessoa que gosta de receber e gosto que as pessoas estejam aqui. Uma das coisas que mais gosto de fazer é apresentar minha cidade às pessoas.

Sempre fui essa pessoa, desde que eu não trabalhava no entretenimento. De uma forma muito natural, pela minha atuação, acabou se estendendo para pessoas conhecidas do entretenimento. Faço isso com com muita responsabilidade e amor de um apaixonado pela terra.

*O Correio Folia tem patrocínio da Goob e apoio da AJL, Jotagê Engenharia e Comdados.