'Efeitos das cinzas das queimadas na água duram até um ano', diz toxicologista

Pesquisa mostra que cinzas de queimadas desequilibram e contaminam ambientes aquáticos; Bahia apresentou grandes extensões de incêndios em 2020

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  • Fernanda Santana

Publicado em 17 de janeiro de 2021 às 11:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Dimitri Argolo Cerqueira

Depois das queimadas que acinzentam o verde, matam animais e agonizam pessoas, restam as cinzas, remanescentes da vegetação morta onde os compostos químicos das antigas plantas apresentam uma concentração acima do usual. “Os efeitos das cinzas das queimadas na água duram até um ano”, diz o toxicologista ambiental e pesquisador da Embrapa, Eduardo Cyrino, que estuda os impactos - ainda pouco debatidos, segundo ele - das cinzas nos ambientes aquáticos. 

Na Embrapa Cerrados, braço da estatal que estuda o segundo maior bioma do Brasil, atrás da Amazônia, e onde nascem três das principais bacias hidrográficas sul-americanas - entre elas o São Francisco -, Cyrino atua nas áreas de Qualidade de Água e Ecotoxicologia. O pesquisador é doutor em Saúde Público na área de Toxicologia e Saúde pela Fundação Oswaldo Cruz e também professor e orientador do Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais da Universidade de Brasília (UnB). 

A principal fonte de dispersão das cinzas é a chuva, que lava os compostos químicos para fontes subterrâneas, como lençóis freáticos cuja água será consumido por humanos, e para lagos e rios, onde desequilibram o pH, diminuem a oxigenação - o que prejudica espécie que dependem de oxigênio - e a pureza da água. Um dos derivados das cinzas pode ser o nitrito, substância comprovadamente cancerígena.

As alterações foram comprovados durante uma pesquisa que analisou mostras de água de locais queimados, na região de Planaltina, no estado de Goiá, entre 2010 e 2015. Os resultados começaram a ser divulgados em 2016 e são apresentados até hoje. 

O Brasil registrou, no ano passado, uma série histórica de queimadas. O número de focos de incêndio cresceu 12,7% em relação a 2019 e foi o maior desde 2010. O Pantanal apresentou o maior número de incêndios da história, 120% maior que em 2019. Na Bahia, incêndios na Chapada Diamantina e no Oeste baiano, região do Cerrado, também acenderam o alerta da população e dos pesquisadores.“O Cerrado, e aqui estamos bem no centro do Brasil, é uma região de muitos nascentes, que contribuem para muitas áreas do Brasil. O que acontecem com a água aqui influencia a área de vários estados, inclusive a Bahia”, diz Eduardo, sobre os incêndios no oeste brasileiro. Incêndio no Pantanal foi o maior da história (Foto: AFP) Durante entrevista ao CORREIO, Eduardo explica como as cinzas agem no ambiente aquático, quais são suas características e ações, de que forma a água ingerida por nós pode ser contaminada, quais os riscos e como, por exemplo, as pesquisas ainda não tem monitorado, tanto quanto necessário, os impactos. Confira na íntegra:

CORREIO: Depois que o fogo é apagado, como as cinzas começam a agir no meio ambiente?

Eduardo Cyrino:  A cinza, na verdade, é um resultado do concentrado da planta queimada. As plantas são formadas por uma série de compostos químicos, e quando são queimadas, os compostos ficam ali, concentrados. No solo, os compostos ficarão durante um tempo. Quando bater um vento, pode causar alguns problemas de respiração [nos humanos], mas mais para quem está próximo. Mas as cinzas permanecerão praticamente inócuas, sem ações no sistema hídrico, até chegar a chuva e arrastar elas para os lagos, rios ou fontes subterrâneas. Então, se não chover, em princípio, não teria tanto impacto a cinza em si. O problema maior será quando a chuva cair, porque essa cinza será transportada para o rio, ou para o subterrâneo. O movimento dessas cinzas para a água depende principalmente dessa precipitação. Existem alguns elementos químicos presentes nas cinzas - o fósforo, o potássio, compostos nitrogenados, principalmente o nitrato - que podem ser tóxico para algumas espécies.

Um dos produtos que podem surgir dessa degradação é o nitrito, que vocês apontam ser muito tóxico. O que vocês analisaram em relação ao potencial de toxicidade? 

Um dos derivados da queimada é o nitrogênio, que, na sua forma de gás, é muito volátil. Quando ele sofre transformações químicas, surgem outros compostos. O nitrogênio, por exemplo, é composto por nitrato. Há também o nitrito. Esses produtos de degradação do nitrogênio têm, cada um, sua própria toxicidade, sendo o nitrito, considerado para o seres humanos, o mais problemático. Não chegamos a identificar nitrito no nosso trabalho. Mas se tem nitrato pode ter nitrito, por causa dessas transformações químicas. Como não achamos o nitrito, fica a possibilidade [de existir a conversão].Existe muito material científico sobre o nitrito, que fala das propriedades cancerígenas. É considerado uma substância carcinogênica. Quanto de nitrito seria necessário para que isso acontecesse é outra questão. Inclusive eu nem colocamos essa questão do câncer para não causar alarde, porque não dá para dizer que cinza vai causar câncer. Até porque o câncer é decorrente de uma continuidade da exposição, é preciso está continuamente exposto. Quanto tempo o ambiente ainda fica sujeito à ação dessas cinzas?

Em geral, como a cinza é carregada pela água da chuva, enquanto houver chuva, solo será lavados e as cinzas carregadas. Em rios que têm movimentação maior, ou seja, o fluxo de água é mais intenso, isso pode não ter um impacto tão grande, porque geralmente o fluxo dilui os compostos. Em ambientes de águas mais paradas, como lago, açudes, o impacto pode ser maior. Em quanto tempo ficaria nesses ambientes, em água de lago ou rio? Não há pesquisa que mostre isso. Mas, quando a cinza chega na água, muda alguns parâmetros dela: o PH da água vai aumentar, por exemplo. No Cerrado, fica mais alcalino. 

A pureza da água também será afetada. Um outro aspecto: a presença da cinza na água diminuirá o oxigênio dissolvido na água o que pode causar prejuízos a espécies que dependem de oxigênio, como alguns peixes e plânctons. Claro que os peixes têm uma facilidade, que é a de nadar. Então, assim, em locais que têm problemas para eles, eles vão para outro espaço. Mas os bichinhos bem pequenininhos não conseguem sair tão rapidamente desses locais. A gente viu, durante a pesquisa, que os efeitos de alterações provocadas pelas cinzas na água permanecem durante até um ano, um ano em meio. Então, é isso, a temperatura [da água] não muda muito, mas sim o PH, o oxigênio e a pureza da água.

E no caso de uma pessoa que vive ali exposta à cinza? 

Na verdade, eu diria que o problema principal para quem está exposto é a fumaça. Existem algumas variações. O principal problema é a fumaça, do ponto de vista da saúde das pessoas, é a poluição. Não encontramos animais mortos na água, porque a maioria das análise foi feita em laboratório, não estivemos no campo para analisar isso. Mas também a gente não se voltou [nas pesquisas] para entender o impacto no ser-humano, sim no ambiente aquático.

A temperatura pode ficar mais quente - no verão, por exemplo - devido a essas cinzas?  No período que há o fogo, nas regiões próximas, a temperatura pode subir. Agora depois que o fogo acaba, é difícil saber como isso permanece. O nível que isso permanece. É claro que quando você destruiu vegetação, teoricamente, você destrói uma condição de resfriamento, e deixa o solo mais exposto, e muda sistemas de resfriamentos e trocas. Queimadas são, reconhecidamente, prejudiciais às temperaturas. Mas [o impacto] as cinzas, não mensuramos.

O estudo também observou a contaminação de águas subterrâneas pelas cinzas. Como isso chega até lá? 

Essa água de poço atingida por cinza pode ser a mesma água que o camarada vai tomar na casa dele. Uma das lições que a gente deixa é que: se você tocar fogo naquela área ali, seu poço pode ser contaminado. Você está tirando água do poço e bebe, é natural. Se teve chuva e foi transportada para baixo, você vai ter uma diferença na condição. Isso ocorre através do transporte da chuva. Essa chuva vai lavar e, dependendo da porosidade do solo, e dependendo da facilidade de penetrar, essa água pode levar esses compostos diluídos da cinza. Isso pode, naturalmente, causar pelo menos não um efeito tóxico imediato nas pessoas, mas causar um gosto ruim na água, no mínimo.

Corremos riscos de beber água contaminada por cinzas, então? 

Quando a gente começou esse trabalho, a gente entendeu que quando observamos a questão das queimadas, pouco se fala da água. Fala-se que se matou animais, mas não havia muitos comentários sobre os recursos hídricos. Nosso objeto foi deslocar isso. O que a queimada pode trazer de problema para o recurso hídrico? A gente entende que os problemas das queimadas não só atacam o solo, mas também causam problemas nas espécies aquáticas. É claro que isso vai dependender muito da proximidade de um local queimado de um rio.Se a distância for considerável, não é possível mensurar exatamente, e se não houver declividade também, dificilmente também vai haver esse transporte. A água pode ir correndo por ali e descer para o rio. Agora, é claro que quando você queima, você diminui o atrito do solo com a água. Terá menos planta, então a água entrará mais fácil. Se for numa região mais acidentada, não sei precisar a distância, pode chegar ao lençol freático, e chegar ao consumo.O quanto se fiscaliza e estuda esse impacto das cinzas na água?

As questões dos níveis de consumo de água precisa ser analisado. Se a queima for próxima, a água tem condições de ser consumida? A depender da carga, a água vai ficar mais feia, mais suja. O indivíduo consegue observar visualmente o impacto. Do ponto de vista de toxicologia, a gente não tem esse dado. Eu posso te adiantar que o gosto vai ficar diferente, o PH vai ficar mais alcalino, e, em termos de oxigênio, não influencia o sabor da água, mas vai causar danos às espécies aquáticas. 

Esse monitoramento em relação as cinzas das queimadas é muito pouco realizado. Já se fazia muito isso nos Estados Unidos e Europa por conta dos incêndios florestais que acontecem lá. O Cerrado têm queimadas anuais e decidimos estudar essa aqui. Mas entendo que o monitoramento é pouco feito. Mas dependendo da região, fica próximo do rio? Vale a pena ir lá ver, para ver se houve ou não mudança. 

Essa contaminação também chega ao mar? 

O impacto na água no mar seria diferente. Porque a água salgada tem uma composição totalmente diferente, não dá nem para a gente tentar extrapolar, porque a gente sabe que é muito diferente. Não é possível dizer dos danos dos organismos aquáticos marinhos, se baixaria o oxigênio. Agora, chegar à água do mar pode, se tiver uma queimada próxima da costa, e na chuva, de alguma maneira, isso escoar superficialmente até a praia. Acho mais difícil, porque você não tem esse tipo de situação à beira do mar. Existem trabalhos científicos, principalmente no pessoal da Europa, e Portugal estuda muito isso, que trazem esse impacto no ambiente marinho.

As cinzas também são o produto final de um problema intencional: as queimadas ateadas. De que forma isso tem impacto, por exemplo, no animal e, ao fim, no alimento?

Com relação a agricultura, a gente acredita que existe uma parte desse fogo que pode ser derivado da agricultura e nem sempre é somente para limpar. Muita gente pode fazer para queimar lixo, tem essa mania, e o vento pode carregar esses materiais [da decomposição]. O que a gente tem visto também é queimada na beira de estrada e tem aquela polêmica: “foi causada por cinza de cigarro?”. Não se tem informação. As causas das queimadas podem ser as mais variadas possíveis. Causas naturais são muito difíceis. A maioria é o ser-humano que causa. Não sei se de agricultura ou exatamente o que causa. Não se tem uma precisão. O impacto das cinzas diretamente nesses animais terrestres, no leite, não foi algo que analisamos. 

Existem pontos de queimadas em diferentes pontos do país. Os efeitos das cinzas de queimadas do Pantanal chegam à Bahia? 

O que a gente pode dizer baseado no que já se existe de informação é que fumaça vai na direção do vento, que pode ser transportado até de um estado para o outro, em função da água. O Cerrado, e aqui estamos bem no centro do Brasil, é uma região de muitos nascentes, que contribuem para muitas áreas do Brasil. O que acontecem com a água aqui influencia a área de vários estados, inclusive a Bahia. Claro que a contaminação por cinza dificilmente vai chegar em outros estados, pela capacidade de renovação da água do rio. Nossas nascentes, aqui, não avaliamos. Claro que a gente sabe que se você destrói a vegetação, a nascente fica comprometida, mas não existe esse dado. Chapada Diamantina também registrou incêndios de grandes proporções (Foto: Dimitri Argôlo) Existem diferença do potencial destrutivo das cinzas de bioma para bioma?  Isso aí foi uma das perguntas que fizemos e decidimos coletar as cinzas com diferentes tipos de vegetação. A gente coletou de áreas diferentes no cerrado e, quando envolvemos áreas de presença de capim, matas de áreas mais próximas a lagos, uma área de cerrado um pouco mais próximas de ambientes mais próximas, com cerradão maior.. O que a gente viu quando comparamos a composição química dessas áreas diferentes é não tem muita diferença da presença dos elementos. Os elementos que existem nessas áreas são basicamente os mesmos, o que variou mais foram as quantidades encontradas. Agora, se você muda a paisagem, pega regiões diferentes, a gente não consegue dizer diferença.

No nosso estudo, no Cerrado, a diferença quantitativa dos compostos encontrados é maior. Quando a gente fala de Cerrado, Cerrado é Cerrado, e nossa vegetação de Cerrado aqui é bastante próxima da Bahia, sim. Mas não podemos estender muito para o semi-árido e dizer que serão os mesmos compostos. Nosso cerrado é normalmente uma mata mais arbustiva, com plantas mais espaçadas, e estudamos algumas áreas que tinham muito capim.