Elas estão prontas para ser o novo normal

Diversidade ganha espaço, mas caminho para mulheres negras ainda é longo

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  • Donaldson Gomes

Publicado em 4 de outubro de 2021 às 07:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Raul Spinassé/Divulgação

Juliana Sampaio, 28 anos, formada em ciências contábeis. A analista sênior na PwC está sendo preparada para ocupar uma função de liderança na empresa. Em 2021, isso ainda é notícia em jornal. Assim como a experiência profissional de Geize Santana, 33 anos, gerente de unidade de negócios na rede MC Donald’s há sete anos, com duas premiações no currículo. São duas mulheres negras ocupando espaços de destaque em grandes organizações, algo que está se tornando cada vez menos raro, apesar de ainda distante de se tornar regra. 

Hoje, a realidade é que as mulheres são maioria na população, ganharam mais espaço no mercado de trabalho – aqui na Bahia, a presença delas aumentou de 42% para 44% entre 2012 e 2020. Porém ainda estão distantes do que se poderia chamar de igualdade. E quando a questão racial é acrescentada na análise, a desigualdade amplia-se.  Fundadora e CEO da EmpregueAfro, Patrícia Santos diz que ainda existe uma grande diferença no espaço ocupado pelo negro no mercado de trabalho brasileiro.

Acesse o CORREIO AFRO aqui Destaque na rede onde trabalha, Geize Santana conta que só precisava encontrar um local que lhe desse oportunidade para crescer (Foto: Paula Fróes) Ela cita como exemplo um levantamento do Instituto Ethos sobre raça e cor nas 500 maiores empresas do país. “Somos 0,4% das executivas, enquanto homens negros representam 4,2%, obviamente muito distante dos 90% de brancos”, compara. “Os números comprovam as desigualdades e a importância das ações afirmativas no mercado de trabalho. Em 16 anos de atuação, ainda vejo poucas mulheres negras como eu em posições de liderança”, diz. 

Para ela, a maioria das ações implementadas atualmente tem pouco impacto, apesar da importância no processo de conscientização. Patrícia defende ações afirmativas, focadas em práticas de gestão de pessoas, com treinamentos de conscientização, recrutamento e seleção especializados e ações de desenvolvimento e ascensão profissional. 

Yuri Silva, coordenador de Direitos Humanos do Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresas (Iree), diz que a ausência de dados dificulta dar visibilidade ao assunto, mas garante: “mulheres negras infelizmente estão na base da pirâmide do mercado de trabalho”. 

“De maneira geral, até a capacidade de metrificar essa situação, ter dados sobre isso, é um grande desafio. O Brasil é um país que precisa do STF (Supremo Tribunal Federal) para fazer um censo”, lamenta Silva. “Em diversos setores há um apagão de dados, mas os que a gente acessa mostra que elas estão subrepresentadas, principalmente nos altos cargos”. 

Como exemplo, ele cita um dado do Instituto Ethos, de que a participação de mulheres corresponde a 11% nos conselhos de administração das principais empresas do país. E lembra ainda que, mesmo nos cargos operacionais, a participação feminina costuma ser sempre a mais afetada em momentos de dificuldades econômicas. 

“As mulheres perderam 17% da renda no terceiro trimestre de 2020, 8 milhões delas saíram do mercado de trabalho. A proporção de mulheres com carteira assinada encolhe em qualquer crise”, destaca, citando dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad). “Entre o terceiro e o quarto trimestre do ano passado, a presença feminina no mercado de trabalho caiu 3,87%. A masculina também diminuiu, mas 1,62%”. 

Para ele, os dados mostram que a questão de gênero ainda é um desafio dentro da discussão sobre os direitos humanos. Yuri Silva acredita que houve avanços com as discussões sobre diversidade, impulsionadas pela agenda ESG – que pode ser traduzida como a busca por sustentabilidade ambiental, social e no ambiente corporativo. Mas “ainda tímidos”. 

“As empresas só falam nisso, querem discutir este tema e isso é um avanço, mas precisam evoluir em estabelecer metrificação para sabermos o tamanho do abismo da desigualdade, mas principalmente em políticas que incorporem de fato a diversidade”, acredita.  

Segundo ele, o Brasil caminha em passos lentos neste sentido, na comparação com outros lugares do mundo, como a Europa, onde já se discute como mensurar o impacto das políticas aplicadas tanto social quanto financeiramente.  “Aqui ainda se discute o convencimento do empresariado de que a pauta é importante”. 

“As empresas precisam se convencer de que se trata de um investimento, que gera lucro, diversifica o ambiente, faz com que o cliente se enxergue. E é importante ressaltar a capacidade que essas pessoas tem de oxigenar o ambiente empresarial, trazer novidades, ser criativas e trazer as suas vivências”, explica. 

A criação de um ambiente inclusivo, acrescenta Silva passa pelo investimento em educação corporativa, criação de programas permanentes de inclusão e facilitar a ascensão de colaboradores em situação de vulnerabilidade. Além disso, ele ressalta a importância de mapeamento dos resultados e a vinculação das ações ao comando das empresas. “Não adianta a empresa promover representatividade no seu ambiente corporativo, se ela também não interage socialmente com essas pautas”, destaca. 

Presença no mercado As mulheres são a maioria da população baiana, indica o estudo Condições de vida das mulheres baianas, produzido pela Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais (SEI). Pelo menos 18,1% dos lares tem uma mulher como principal responsável pelo sustento em 2020. Em 2017, esse dado era de 17%. 

O percentual de mulheres negras que estudaram entre 12 e 15 anos passou de 24,6% em 2012 para 32,5% em 2020. Entre as mulheres brancas, no mesmo período, a mudança foi de 25,6% para 30,8% do total.  Quando se compara a escolaridade acima dos 16 anos, mulheres brancas passaram de 10% do total em 2012 para 16,5%, enquanto as negras eram 4,9% e alcançaram 9,2%. 

A crise sanitária prejudicou mais a presença das mulheres no mercado de trabalho baiano. O nível de ocupação para as pessoas do sexo feminino atingiu 30,5%, enquanto a masculina chegou a 50,2%.

Há sete anos, Juliana trabalha na PwC. Foi seu primeiro emprego em escritório e é onde diz ter aprendido tudo o que sabe. Antes de lá, trabalhou com telemarketing, mas fez outros processos seletivos. Em nenhum deles ouviu ou soube que estava sendo preterida por ser mulher ou negra. “Encontrava outras candidatas mais capacitadas que eu na entrevista, mas nunca ouvi diretamente que estava sendo preterida por ser uma mulher negra, não”, lembra. Racismo estrutural? “Sim”, reconhece. 

A virada na carreira aconteceu quando encontrou um espaço que lhe deu oportunidade para crescer, diz Juliana. “Estou há sete anos aqui e sempre fui desafiada a crescer. Tive ótimos gestores que me ensinaram tudo o que eu sei”, conta. Atualmente, ela participa de um projeto da empresa chamado Black as Manager, criado para fomentar o desenvolvimento de gestores negros. “Não vejo como um programa de inclusão, mas como um espaço que nos molda a ter uma outra perspectiva de vida”, acredita a futura gestora. 

Com o espaço que a empresa abriu para a diversidade, Juliana não apenas encontra referências dentro da PwC, como já se tornou uma para quem está começando a carreira. “Como mulher negra, tive oportunidade de fazer entrevistas e vi que muitas candidatas que passaram por mim se identificavam, conseguiam se ver em minha posição”, lembra. 

“Eu quero estar numa posição de ascensão, aproveitar esse momento para ajudar a transformar a sociedade, mudar o comportamento das empresas. Se houver mais mulheres, mais negros, o racismo estrutural vai se reduzir”, acredita. 

Inspiração para outras Para Geize Santana, o céu é o limite. Hoje, a menina que ingressou no MC Donald’s aos 16 anos como menor aprendiz chegou ao cargo máximo na estrutura da loja, mas ainda quer mais. “Apesar de já estar no último cargo de liderança dentro do restaurante, quando a gente sai desta visão, percebe que a empresa tem uma pirâmide grande. Minha ideia é continuar a crescer”, projeta. 

A caminhada até a situação atual foi árdua e exigiu garra para aproveitar as oportunidades que surgiam, lembra. Em 17 anos de casa, passou por diversos cargos, como gerente de plantão, já tomou conta de duas lojas ao mesmo tempo. “Em 2011 e 2012, ganhei dois prêmios, tive a oportunidade de viajar para o exterior representando a empresa”, lembra.  “Nós trabalhamos numa empresa que graças a Deus não tem nenhum tipo de discriminação com nada”, destaca, mas isso não quer dizer que não existem desafios. “Tem homens que não vêem com bons olhos ser liderados por uma mulher”. 

Geize conta ainda que a história dela tem inspirado outras meninas na empresa. “O fato de ser mulher, negra, não pode impossibilitar a gente de chegar onde queremos. Eu demonstro sempre que é possível”, ressalta. “Eu cito muito a minha trajetória, tem outras gerentes junto comigo e a gente conta sempre para os nossos funcionários o que passamos para que eles acreditem que também podem chegar”. 

Visão empreendedora Fundadora da Diver.Ssa e cofundafora da aceleradora baiana Vale do Dendê, a consultora e empreendedora social Itala Herta é membro do Comitê da Diversidade Racial na Ambev e Alumni IVLP. Ela diz que a agenda da inclusão e da diversidade está avançando numa velocidade menor do que o desejável. “Tem muita coisa a se fazer. De maneira geral, tem muito discurso para pouca decisão”. 

Itala destaca como um exemplo positivo o comitê do qual participa na Ambev, criado a partir de um compromisso público que foi assumido pela empresa com a agenda da diversidade. “Há um caminho transparente, com a definição de etapas a serem cumpridas. É o exemplo de um modelo que sai da intenção para o processo de decisão”, ressalta. 

“Não tem sentido trazer essa agenda sem tomar decisão, é algo que precisa passar pelo ‘alto clero’ das empresas”, acredita. “As empresas precisam investir grana e tempo. A gente precisa lembrar sempre que esses talentos estão sempre um pouco atrás, então é preciso ter pressa”, acredita. 

A Diver.Ssa possui entre as suas iniciativas uma agenda de acolhimento. Segundo Itala, isso faz com que a empresa atenda empreendedoras e “intraempreendedoras”, com base num processo que ela chama de acolhimento estratégico. “As mulheres, além de serem mal remuneradas, costumam ser mais descartadas”, destaca Itala. Com a pandemia, quem mais perdeu empregos foram as mulheres, lembra ela. “As mulheres perderam empregos pela crise em si, mas também porque nós deixamos os nossos empregos para cuidar das pessoas da família que adoeceram”. 

Luciane Reis, do MercAfro, ressalta a necessidade de reconhecer os saberes e conhecimentos ancestrais na formatação de programas para inclusão de profissionais negros. “Esse grupo é o alvo de uma série de ações, mas pouco tem se ouvido ele a partir do conhecimento que foi desenvolvido ao longo do tempo. Não se tem respeitado a realidade e o saber que o negro desenvolveu”, acredita. 

“Ainda que as empresas estejam bem intencionadas nesta relação, falta um diálogo constante com estudiosos, com técnicos que trabalham estudando a realidade da população negra”, destaca Luciane. Ela ainda acrescenta a ausência de dados atualizados a respeito do assunto. “É importante demais termos iniciativas que buscam dar espaço ao empreendedorismo negro e a abertura de diálogos com empresas, mas não se pode pensar essas iniciativas empreendedoras sem o olhar do negro”, defende. 

Empresas apostam em diversidade Pelo segundo ano consecutivo, a Magazine Luiza, uma das gigantes do varejo brasileiro, anunciou que seu programa de trainee será voltado exclusivamente para negros. “Diversidade é um valor e é estratégico para o Magalu”, afirma Patricia Pugas, diretora executiva de Gestão de Pessoas. A iniciativa é mais um sinal de que o setor produtivo percebeu a importância da diversidade para o futuro das organizações. 

A empresa não vai exigir inglês fluente nem experiência de intercâmbio. E os candidatos podem ser formados desde 2018 em qualquer curso superior. Idade e instituição de ensino também não serão critérios levados em conta pelos recrutadores, segundo a companhia. 

“Nossa intenção é que tanto o quadro geral de colaboradores quanto o de liderança da companhia reflitam a composição racial do país, e um único programa exclusivo para negros não seria suficiente para atingirmos o objetivo”, completou Patrícia em nota sobre o assunto.   Na Braskem, diversidade, equidade e inclusão são vistas como uma questão de responsabilidade social e perenidade do seu negócio, explica Camila Fossati, diretora de desenvolvimento organizacional da empresa. “As oportunidades são para todas as pessoas. Neste sentido, a companhia promove uma série de iniciativas de empoderamento, inclusão e combate ao preconceito”, explica. 

A companhia iniciou as primeiras ações diretamente voltadas à promoção da diversidade em 2014, conta Camila. Antes disso, a companhia já se preocupava com essas questões, tendo políticas que garantiam o respeito e a integridade de todos os integrantes, mas ainda não havia uma equipe totalmente dedicada ao tema. 

Segundo ela, além das ações que são desenvolvidas de forma transversal, ou seja, abordando o tema como um todo, a Braskem tem iniciativas voltadas à inclusão e ao empoderamento de grupos historicamente minorizados: Equidade de Gênero, Raça e Etnia, LGBTQIA+, Pessoas com Deficiência e Socioeconômico (pessoas em situação de vulnerabilidade social).

Eduardo Alves, líder de Questões Raciais na PwC, acredita que as empresas devem se preocupar com a inclusão tanto em relação ao acesso, quanto à retenção de talentos, mas também na criação de mecanismos para a promoção dos mesmos. “Quando as pessoas entravam numa empresa como a PwC elas não viam representatividade, não tinha pertencimento”, conta. Segundo ele, a empresa passou a trabalhar em diversas ações para fazer os colaboradores se sentirem acolhidos e parte do processo. 

Para facilitar a retenção e a ascensão de profissionais negros, a empresa investe programas de aceleração de carreiras, como o Black as Manager. Eduardo Alves acredita que a agenda de diversidade nas empresas chegou para ficar. Ele conta inclusive que a PwC está entre as empresas que estão implantando um índice de igualdade racial dentro do programa de ESG. “Isso vai servir para que consumidores se atentem, porque isso não é só questão corporativa, isso tem efeito nas ruas”, acredita. 

Diversidade será um dos assuntos tratados no Agenda Bahia deste ano, no próximo dia 28. O Agenda Bahia 2021 é uma realização do CORREIO, com patrocínio da Unipar, apoio da Sotero Ambiental, Tronox, Jotagê Engenharia, CF Refrigeração e AJL Locadora e apoio institucional da Prefeitura Municipal de Salvador, Sistema FIEB, Sebrae, Rede Bahia e GFM 90,1.