Eleições municipais racham famílias no interior: ‘seis votos para três candidatos a prefeito’

Polarização reflete nas relações das famílias, que precisam redobrar atenção para manter a paz

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  • Daniel Aloísio

Publicado em 15 de novembro de 2020 às 08:05

- Atualizado há um ano

. Crédito: Arquivo pessoal

Dizem que família unida jamais será vencida, não é? Essa frase faz referência ao amor incondicional que deve existir entre os membros de um núcleo familiar. Mas em muitas realidades, nem sempre essa união é refletida nas urnas, sequer quando um candidato da própria família disputa a eleição. “Em casa votamos eu, meu pai, minha mãe e mais três irmãos. São seis votos para três candidatos a prefeito”, relatou a professora Niclecia Ferreira Gama. 

Ela é moradora de Salvador, mas seu domicilio eleitoral fica a 250 quilômetros de distância, em Cipó, sua terra natal, localizada no nordeste da Bahia. A cidade tem cerca de 17 mil habitantes e quatro pessoas concorrendo a prefeitura: Felipe Brito (PSDB), Marquinhos do Itapicuru (PDT), Taiane Macedo (PT) e Abel Araujo (PP). Esse último disputa a reeleição e é primo de segundo grau de Niclecia. Mesmo assim, ele não recebe o voto dela nesse domingo (15).  “Entre filhos, netos e bisnetos, a família de meus avós maternos tem mais de 70 pessoas e aqui tem gente que vota nos quatro candidatos. Geralmente, a gente se reúne em festas de aniversários, casamentos e enterros. Mas nenhum evento é interferido por causa de política. Como qualquer família grande, às vezes nós brigamos, mas nunca ficamos sem se falar uns com os outros e nunca é por causa de política”, apontou a professora.   Quem vê esse ‘racha pacífico’ da família Ferreira nas eleições de 2020 pode não imaginar que a situação nem sempre foi essa. “Até a eleição de 2004, a disputa em Cipó era concentrada em dois grupos políticos, um chamado de ‘morcego’ e outro de ‘cupim’. Historicamente, minha família materna sempre foi morcego e a paterna era cupim. Com o tempo, ampliou-se as possibilidades de candidatos, o que gerou essa diversidade de votos, naturalmente”, explicou Niclecia. 

Diversidade  Para o professor do Departamento de Ciência Política da Ufba, Cloves Oliveira, essa diversidade de votos que existem na família de Niclecia é fruto das novas formas de configuração familiar. “Aquilo da família ser algo homogênea, com pessoas com os mesmos valores, ideais e percepções não é mais real. Dentro de uma família, tem gente com personalidades distintas: um jovem progressista, um pai mais conservador ou vice-versa. Quanto maior a polarização na eleição, maior será a potencial tensão entre os familiares”, disse. 

De acordo com o mais recente cálculo do Produto Interno Bruto (PIB) dos Municípios, feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2017, 75% das cidades baianas dependem prioritariamente da administração pública municipal para sobreviver economicamente. São 311 cidades com administração, defesa, educação, saúde pública e seguridade social como as principais atividades. Isso torna a eleição municipal ainda mais importante, já que uma vitória de um candidato aliado pode significar um possível emprego.  

Isso aconteceu em Mairi, também no centro-norte baiano, a 226 quilômetros de distância de Salvador. Lá, o ‘racha’ na família do procurador municipal Arthur Borges, 29 anos, aconteceu nas eleições de 2016. A mãe Maria Isabel era empregada da prefeitura, administrada entre 2013 e 2016 por Raimundo Dentista (PSD), mas o pai e os três filhos eram oposição ao governo.  

“Ela só votou nele por gratidão ao emprego que teve e ficou sem ir para a rua, pedir voto e fazer campanha como nós fazíamos. Meu pai também respeitou o posicionamento dela e isso ajudou para que não houvesse briga”, disse o advogado, que avalia o emprego dado a mãe como uma tentativa do candidato em cooptar o apoio de toda a família.   Em 2020, a família voltou a estar unida na foto e na eleição (Foto: arquivo pessoal) Na eleição de 2016, Raimundo Dentista foi derrotado por Jobope (PT), que em 2020 disputa a reeleição contra o ex-prefeito. Dessa vez, toda a família está do lado do mesmo lado político, trabalhando em prol da reeleição de Jobope. “Em 2016, minha mãe manteve a palavra e permaneceu com o ex-prefeito até o fim, mas depois disso não havia mais esse ‘compromisso’ simbólico”, explicou Arthur. 

Briga  Em Ipirá, no centro-norte baiano, a 200 quilômetros de Salvador, o estudante Iago Souza, 22 anos, viu a família rachar pela primeira vez nessa eleição. Tradicionalmente, seus pais acompanham o grupo conhecido como ‘jacu’, liderado em 2020 por Marcelo Brandão (DEM). Para desgosto da família, dois irmãos de Iago decidiram apoiar a reeleição do atual prefeito Dudy (PSD), que lidera o grupo dos ‘macacos’.  

“Para mim, não mudou muita coisa, pois penso que o voto é livre e cada um tem o seu ideal de candidato. Mas meus pais não concordaram com a decisão deles e já discutiu com minha irmã. Agora estamos mais tranquilos”, disse o rapaz, que vive em Salvador, mas votará na sua cidade natal, no candidato do Democratas, assim como seus pais e os outros três irmãos. 

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De acordo com o analista judiciário do Tribunal Regional Eleitoral da Bahia (TRE-BA) e professor da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Jaime Barreiros, não há impeditivo legal da pessoa morar em uma cidade e ter um domicilio eleitoral em outra. “Legalmente, se exige que a pessoa tenha um vínculo e não necessariamente more. É só ter propriedade, trabalhar, ter nascido ou ter alguma justificativa apresentável para votar naquela cidade”, explicou. 

Ajuda Em Campo Formoso, centro-norte baiano, cidade de pouco mais de 70 mil habitantes, a professora Silmaria Reis dos Santos não vota na mesma candidata que sua mãe, mesmo morando as duas juntas. Na cidade são dois grupos políticos: o Boca Branca, encabeçado por Elmo (DEM), irmão do deputado federal Elmar Nascimento (DEM), e o Boca Preta, cuja candidata é a atual prefeita Rose Menezes (PSD), irmã do deputado estadual Adolfo Menezes (PSD).  “A gente sempre votou no Boca Preta, mas minha mãe viu que a prefeita não a ajudou quando precisou. Ela tinha que fazer um tratamento médico caro há uns anos e quem conseguiu foi o Boca Branca, mas por meio do estado, não pelo dinheiro dele. Só que ela se sente na obrigação de votar por agradecimento. Mas eu não voto nele, pois o deputador Elmar Nascimento é aliado do presidente Jair Bolsonaro e isso me cria uma repulsa. Não dá mesmo”, disse a professora, que ainda está em dúvida se vai anular o voto ou votar na atual prefeita.  Silmaria diz que sua mãe já a tentou convencer em acompanhá-la, mas que ela mesmo entende sua opinião política e até sente orgulho dessa independência da filha. “Eu nunca precisei da política municipal para conseguir o que conquistei e sim dos programas federais. Queria mesmo que aqui tivesse uma terceira via, mas não é o caso”, afirmou.  

Para o cientista político Cloves Oliveira, essa polarização que é enxergada nas eleições municipais é diferente da vivenciada em todo o Brasil na eleição presidencial de 2018, que elegeu Jair Bolsonaro (sem partido). “Há dois anos havia polarização entra petismo e antipetismo, com a vitória desse segundo polo. Hoje temos um enfraquecimento dos partidos de esquerda, o que já diminui a tensão. Mas as características da disputa em escala municipal são por si só diferente. Não são em todas cidades que existe de fato uma tensão”, explicou.   

* Com orientação da chefe de reportagem Perla Ribeiro. 

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