Embratur pede fim de demarcação de terra indígena para construção de resort na BA

No sul da Bahia, os portugueses querem fazer o Vila Galé Costa do Cacau

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  • Mario Bitencourt

Publicado em 29 de outubro de 2019 às 11:29

- Atualizado há um ano

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Em busca de viabilizar a construção de um hotel de luxo numa área indígena no sul do estado, a Embratur (empresa federal), em ofício à Fundação Nacional do Índio (Funai), manifestou interesse “no encerramento do processo de demarcação de terras indígenas Tupinambá de Olivença, nos municípios de Una e Ilhéus, Estado da Bahia”.

Considerado por entidades que atuam em defesa dos direitos indígenas como um caso evidente de lobby do setor público para atender a interesses privados, o documento é de 26 de julho de 2019 e se tornou público nesta segunda-feira (28) pelo site The Intercept, responsável pela série de reportagens intitulada de “vaza-jato”.

O empreendimento em questão é o do Grupo Vila Galé, sediado em Lisboa, Portugal, e considerado um dos maiores do ramo hoteleiro português. No sul da Bahia, os portugueses querem fazer o Vila Galé Costa do Cacau, “um resort all inclusive com 467 unidades habitacionais”, conforme a descrição no site do grupo.

“Com investimento de R$ 150 milhões de reais, o hotel terá infraestrutura completa de lazer, incluindo piscinas (externa e interna), Clube Nep, Spa Satsanga, quadras poliesportivas, restaurantes e bares”, anuncia o Grupo Vila Galé, que faz uma previsão otimista de conclusão das obras, para 2021.

Para que isso seja possível, contudo, é preciso que a área do hotel fique de fora da demarcação da terra indígena, realizada em 2009 e que já está pronta para publicação da portaria declaratória por parte do Ministério da Justiça desde 2016, após ter passado por todas as fases de contestações por parte de interessados.

A área demarcada pela Funai é de 47,3 mil hectares (um hectare é o equivalente a um campo de futebol profissional) e inclui territórios dos municípios de Ilhéus, Una e Buerarema. Cerca de 8 mil índios tupinambás, divididos em 23 aldeias, moram na área, com concentração maior na região da Serra do Padeiro, em Buerarema.

De acordo com indígenas, a área do Vila Galé Costa do Cacau pega cerca de 800 hectares da terra tupinambá, onde estão também praias desertas, vegetações nativas da Mata Atlântica e áreas de mangue do rio Acuípe, na divisa entre Una e Ilhéus. Na mesma área vivem cerca de 250 famílias de índios da aldeia Acuípe de Baixo.

“A intenção deles [do hotel e da Embratur] é fazer com que essa área fique de fora da demarcação e o hotel possa ser viabilizado. Mas se isso for feito, essa comunidade vai ficar sem ter acesso à praia, ao mangue e à floresta, de onde tira o seu sustento”, disse o cacique Ramon Tupinambá, que faz parte de uma delegação de caciques que foram a Brasília nesta segunda-feira (28) pedir solução para o impasse.“A solução é só uma: que a nossa terra seja logo demarcada e nossos direitos garantidos. O que estão querendo fazer é afrontar a Constituição ao sugerir que um órgão como a Funai deixe de fazer a sua obrigação que é defender os direitos dos povos indígenas”, declarou o cacique.O indígena observou que os conflitos entre indígenas e proprietários de terra da região se acirraram entre os anos de 2012 e 2014, sobretudo na área da Serra do Padeiro, onde ocorreram conflitos entre índios, fazendeiros (a maioria pequenos produtores com áreas de 10 a 15 hectares) e a polícia.

Em 2016, fazendeiros tentaram derrubar a demarcação da Funai no Superior Tribunal de Justiça (STJ), chegaram a conseguir em junho daquele anos uma liminar dada pelo ministro Napoleão Maia Filho, mas em setembro do mesmo ano a decisão foi anulada por unanimidade pelo STJ.

No mês seguinte à decisão do STJ, o MPF já enviou ofício ao Ministério de Direitos Humanos, “solicitando imediata publicação da portaria declaratória da Terra Indígena Tupinambá de Olivença”. Procurado nesta segunda-feira para comentar sobre o documento da Embratur, o MPF não se pronunciou.

Na região do sul da Bahia, os conflitos que estavam acirrados em anos anteriores estão cessados, mas há situações de alerta: em fevereiro deste ano, o cacique Babau, líder dos tupinambás, relatou ao MPF um suposto plano para matar a ele e a pessoas de sua família. Por conta disso, o indígena e familiares estão sob proteção.

Ao analisar o caso, o antropólogo José Augusto Sampaio, o Guga, presidente da Associação Nacional Indígena (Anai), que atua no Brasil em defesa dos direitos dos povos indígenas, disse que “é preciso entender melhor o que a Embratur quis dizer com a manifestação de interesse no encerramento da demarcação”.

“Ou ela quis que a demarcação seja cancelada, o que é totalmente ilegal, sobretudo para a Funai, pois é dever dela legislar em favor dos índios, ou sugeriu que o processo de demarcação seja finalizado de modo a não interferir nos interesses econômicos do Vila Galé. Neste segundo caso, a terra teria de ser demarcada, e o presidente Jair Bolsonaro já disse que isso não ocorrerá em seu governo”, comentou.

Segundo Guga, a parte da praia que o Vila Galé Costa do Cacau quer ocupar “é pequena em relação à área indígena, mas é um pequeno que vale muito, é o filé mignon do território, com praia limpa e deserta, rio e mata virgem”. “De forma alguma, a terra indígena deve sair para dar lugar ao hotel, o que tem de ser respeitado é o direito dos índios que estão na região e suas habitações tradicionais”, disse.

Respostas A Embratur informou que não tem competência para interromper demarcação de terras indígenas. O ofício, em questão, afirmou por nota, solicita apenas a revisão do processo de maneira a garantir a segurança jurídica e estimular o desenvolvimento do turismo na região.

"Investimentos em complexos turísticos e de infraestrutura geram empregos para a população e fomentam a economia. A expectativa, neste caso específico, é a geração de 2.000 novos postos de trabalho para a região", diz em nota.

Procurado também, a Funai não respondeu.

Enquanto isso, a terra indígena tupinambá segue sem definição. Até levantamento sobre indenizações das fazendas que estão dentro da área demarcada (cerca de 600 propriedades rurais) já foi realizado pela Funai e Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Só falta o Ministério da Justiça publicar a portaria declaratória da terra.

Para o Vila Galé, 'não existem indígenas' e nem terra indígena na área em conflito   Ao comentar o caso, o Grupo Vila Galé declarou ao CORREIO que “não existem indígenas nesta área nem quaisquer vestígios dos mesmos no local”, e que “só após aprovação formal do Presidente da República é que se poderá falar em terreno indígena”.

O grupo português informou que o terreno onde se pretende construir o empreendimento fica em “propriedade privada”, e que em maio de 2018 celebrou acordo de parceria com empresa brasileira proprietária de 60 hectares para o desenvolvimento de um resort hoteleiro numa área de 20 hectares, em Una.

“Trata-se de um projeto estruturante para Una, para a Bahia e para o Brasil, constituído por um grande resort com cerca de 500 quartos, seis restaurantes, centro de convenções e eventos, piscinas, clube de crianças com parque aquático, recepção, bares, spa com piscina interior aquecida, etc, no padrão Vila Galé”, diz a nota.

Para o Vila Galé, devido ao potencial econômico, o empreendimento “merece o apoio do Município de Una, do Governo do Estado da Bahia e do Ministério do Turismo do Brasil/Embratur”. O grupo afirma que é “reconhecido pelos seus investimentos em integral respeito pelas normas ambientais e urbanísticas e de uma forma socialmente responsável”.

Ao dar mais detalhes sobre o empreendimento, o Vila Galé informou que “os estudos e projetos [do resort] foram realizados na totalidade, estando aprovados pelas entidades competentes”, e que “a licença prévia ambiental está emitida e em vigor”.

Já a licença de instalação e o alvará de construção estão prontos para emissão, “apenas aguardando o esclarecimento desta questão por parte da Funai e do Ministério da Justiça”.

O terreno em que se situa o projeto tem uma área de 20 hectares na frente de praia e preservará rigorosamente todos os valores ambientais e a vegetação relevante existente, afirma o grupo português.

“Não existe no local qualquer tipo de ocupação de pessoas e bens ou sequer vestígio da mesma num horizonte temporal muito alargado. Da parte da Vila Galé, está tudo preparado para o imediato início da obra de construção logo que se verifique o esclarecimento desta questão e munida das necessárias licenças”, diz a nota.