Escória viva: obra da prefeitura de Santo Amaro desenterra resíduo tóxico de chumbo

Parte das 500 mil toneladas de escória deixada por antiga fábrica e usada para pavimentar cidade veio à tona

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  • Alexandre Lyrio

  • Yasmin Garrido

Publicado em 22 de setembro de 2019 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Yuri Rosat/CORREIO

Os malditos foram embora em 1993. Finalmente, o clamor feito pelo mais ilustre filho da terra na música Purificar o Subaé, de 1981, parecia estar sendo atendido. O que Caetano Veloso não sabia era que eles deixariam para trás nada menos que quase 500 mil toneladas de escória de chumbo e cádmio, tornando o município que tem “purificação” no nome a cidade mais contaminada por esses metais no mundo.

Só agora, 26 anos depois de a Companhia Brasileira de Chumbo (Cobrac) ser desativada na cidade, uma decisão judicial promete dar início a um processo de reparação dos danos causados ao meio ambiente e à saúde de cerca de 3 mil pessoas. Em ação aberta em 2002, a Justiça Federal decidiu, em janeiro passado, que compete à fábrica, que hoje se chama Plumbum e atua no Paraná, o pagamento de 10% do faturamento bruto da empresa ao tratamento das vítimas. (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) Além disso, a União e a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) terão de construir em Santo Amaro um centro de referência para tratamento de pacientes expostos e contaminados por metais pesados. Elaborado pelas esferas municipal, estadual e federal, o Protocolo de Vigilância e Atenção à Saúde da População Exposta a Chumbo, Cádmio, Cobre e Zinco em Santo Amaro estima que 3 mil pessoas chegaram a ser contaminadas por metais pesados em Santo Amaro.

A Associação das Vítimas por Contaminação por Chumbo e Mercúrio do Estado da Bahia (Avicca) também calcula que outras 1 mil pessoas morreram vítimas de doenças causadas pelo chumbo. Quando se imaginava, porém, que Santo Amaro pudesse voltar a fazer jus a sua padroeira (Nossa Senhora da Purificação) e pôr um fim à poluição histórica, o CORREIO descobriu que a prefeitura desenterrou o “defunto de chumbo”. 

Uma obra de infra-estrutura para escoamento de água das chuvas abriu diversas crateras nas ruas do Centro e trouxe à tona parte da escória utilizada por gestões anteriores para calçamento das vias, o que na época contaminou todo o solo da cidade. A prática, que teve início nos anos 1980, é considerada por especialistas o maior crime ambiental com metais pesados no país, uma vez que expôs e colocou em risco a saúde de cerca de 60 mil pessoas (atual população do município).  Escória de chumbo desencavado em obra no Centro de Santo Amaro (Foto: Yuri Rosat/CORREIO) A reportagem esteve em Santo Amaro nos meses de maio, junho e julho, coletou material do solo em um dos canteiros de obra e submeteu a amostra à análise do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), por meio do Centro de Tecnologia Industrial Pedro Ribeiro (Cetind), localizado em Lauro de Freitas, na Região Metropolitana de Salvador (RMS).

O relatório, expedido em 3 de julho de 2019, detectou a presença de 16.700 mg/kg de chumbo no material da zona urbana, o que supera em 5.566% o Valor Orientador de Qualidade do Solo, que é de 300 mg/kg, baseado na resolução 420/2009 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), que estabelece os valores de prevenção dos contaminantes do solo. Para cádmio, a situação foi mais branda, com a presença de 33,9 mg/kg na amostra analisada, quando o limite permitido é de 8 mg/kg. Foto: Reprodução “Essa é uma grande obra no sistema de abastecimento de águas pluviais, o que desenterra a escória, que é tóxica para o ser humano. Como diz Caetano Veloso, boa parte vai parar no Rio Subaé e outra parte é absorvida pela população por diversos meios, desde a alimentação, inalação e contato físico”, explica o professor da Faculdade de Medicina da Ufba, Fernando Carvalho, PHD em Saúde Ambiental, Poluição por Metais Pesados e Contaminação Hídrica-aérea, que realiza estudos sobre o caso de Santo Amaro há mais de 30 anos.

Como se não bastasse, no período em que estivemos na cidade, flagramos funcionários trabalhando na obra sem Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) como luvas, máscaras e capacetes. “Fazer o quê? Todo mundo sabe que tem essa escória aí, mas preciso ganhar meu dinheiro honesto”, disse Juraci Brito, que se recusava a usar a máscara. “Sufoca demais!”. As obras também não tinham nenhum tipo de sinalização de alerta ou fitas de isolamento da área. Adultos, crianças e animais domésticos circulavam normalmente em meio à escória. Moradores varriam a poeira acumulada nas entradas das casas sem imaginar os riscos.  Obra para escoamento de água das chuvas abriu diversas crateras nas ruas da cidade e trouxe à tona parte da escória utilizada por gestões anteriores; serviço foi concluído no final de agosto  (Foto: Yasmin Garrido/CORREIO) Apesar de todo o histórico de contaminação e os diversos estudos alertando sobre os riscos, o secretário de administração e vice-prefeito Justino Oliveira dos Santos não acredita que o material desenterrado cause danos à saúde e exalta a obra como uma reivindicação da população. “Eu não sou nenhum especialista para afirmar que esse resíduo tem índices de cádmio e chumbo ou qualquer outro material pesado. E, se tiver, já foi para o lençol freático há muito tempo. Hoje não existe esse risco. Existe uma questão política envolvendo a melhoria dessa terra”, disse Justino, sem conhecer os resultados das análises encomendadas pelo CORREIO.

O secretário de administração insiste que a obra é um desejo antigo da população. “Eu gostaria que vocês fizessem uma enquete com os moradores para saber se eles são favoráveis ao serviço de drenagem que está sendo feito. Todos querem. Os risco a gente vem correndo há muito tempo. Essa obra de hoje nenhum governo quis fazer, porque é de quebrar o chão. Essa intervenção era necessária para evitar os alagamentos na cidade”, justificou.   

Se a gestão atual acredita que a escória é inofensiva, ainda que especialistas e laboratórios digam o contrário, outras gestões do município do Recôncavo baiano já demonstraram alguma preocupação com a herança deixada pela antiga Cobrac, principalmente na hora de realizarem obras em que seja necessário a perfuração do solo.“Há alguns anos, existia um grupo formado por membros das diversas secretarias e que cuidava de questões que pudessem colocar em risco a saúde da população. Esse grupo poderia ser acionado por qualquer pessoa da cidade como uma ouvidoria que recebia denúncias de locais com escória de chumbo aparente. No entanto, isso se perdeu”, contou uma funcionária da Secretaria Municipal de Saúde, que não quis se identificar e foi uma das responsáveis pela elaboração, em 2010, do Protocolo de Vigilância e Atenção à Saúde da População Exposta a Chumbo, Cádmio, Cobre e Zinco em Santo Amaro.Ainda segundo a funcionária, que é médica, o que se observa atualmente é a total falta de cooperação entre as pastas do município. “Um TAC [Termo de Ajustamento de Conduta] firmado com o Ministério Público e a prefeitura determinava que, toda vez que fossem feitas obras de abertura do solo, este deveria ser molhado, como forma de evitar a subida de poeira, ou seja, da escória de chumbo, já que a exposição se dá também por inalação. Além disso, a obra deveria ser cercada. Eu não sei o que houve com o TAC, isso se perdeu”, explicou.

Três décadas Os problemas causados pela exposição a metais pesados soma quase três décadas e surgiu como uma tentativa de industrializar a região. A Cobrac, antiga Companhia Brasileira de Chumbo, chegou ao Brasil como subsidiária da empresa francesa Penarroya Oxide S.A e se instalou em Santo Amaro na década de 60, com a produção de lingotes de chumbo. O metal era extraído de uma mina em Boquira, município da Chapada Diamantina, e encaminhado à cidade do Recôncavo. Cerca de 2,5 mil funcionários passaram pela fábrica, que em 1989, passou a ter capital 100% nacional e mudou o nome para Plumbum Mineradora.

O CORREIO conversou com ex-funcionários que relataram como era a situação na fábrica. Eles contaram que, desde o início, toda a população santamarense reclamava de mal estar relacionado à fumaça, sendo mais intensos os casos dentro da própria empresa e no entorno.“Muita gente morreu e, a cada ano que passa, morre mais. Mecânico, soldador, caldeireiro, encarregado, todos morreram. E são todos novos, na faixa dos 50/60 anos”, revelou José Gomes Ribeiro, conhecido como Seu Zeca, de 77 anos dos quais 15 foram dedicados a Plumbum. “Os que sobreviveram sofrem com muitos problemas de saúde e falta de dinheiro para tratamentos médicos”. Foto: Yasmin Garrido/CORREIO A empresa encerrou as atividades no município em 1993, deixando para trás quase 500 mil toneladas de escória de chumbo. Segundo o médico e professor da Ufba Fernando Carvalho, cerca de ⅔ deste material ainda estão no pátio da fábrica. O restante está no subsolo da cidade.

Além do material contaminado, na época do fechamento, a Plumbum também deixou 1,2 mil funcionários desempregados, boa parte deles doente. “Além de ser um mal para os ex-funcionários até hoje, o chumbo ainda está na cidade, no meio ambiente e continua destruindo vidas”, disse Seu Zeca.

Escória: A escória de chumbo é um material granulado em formato de gotícula d’água. É o subproduto da fundição do minério. Removidas as impurezas do chumbo durante a fundição, a escória é descartada e amontoada. No caso da antiga Cobrac (atual Plumbum), cerca de ⅔ das 500 mil toneladas de escória deixadas para trás ainda estão no pátio da antiga fábrica, em um terreno cercado e com seguranças. O restante do material está no subsolo da cidade e foi utilizado por antigas gestões do município para pavimentação.

O CORREIO publica a partir deste domingo (22) um especial sobre o chumbo de Santo Amaro, um problema que há décadas atinge a cidade do Recôncavo. Neste e nos dois próximos domingos (29 de setembro e 6 de outubro), vamos denunciar a mais recente exposição ao metal pesado sofrida pela população e mostraremos como viveram e morreram os mais de 3 mil santamarenses com sequelas causadas por chumbo, cádmio e outros metais pesados.