Estudante é hostilizado em residência: 'Vamos ver com quantos paus se mata um racista'

Caso ocorreu na residência universitária onde morava o estudante que se recusou a receber prova de professora negra

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  • Gabriel Amorim

Publicado em 11 de dezembro de 2019 às 13:25

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Reprodução

O caso de racismo envolvendo a professora Isabel Reis e o aluno Danilo de Araújo Góis segue deixando tenso o clima na comunidade acadêmica. Em um vídeo que circula nas redes sociais é possível ver uma tentativa da invasão ao quarto do estudante na residência universitária em que ele vivia, na cidade de São Félix, no Recôncavo baiano.

No vídeo, um homem negro tenta abrir à força a porta de um quarto e, bastante nervoso, diz frases como: “Vamos ver com quantos paus se mata um racista”, “eu estou consciente do que estou fazendo” e “pode chamar a polícia, o papa. Você não é contra viado? Negro? Você não é macho?”, dizia, chamando o estudante para fora do quarto. 

Segundo informações de Gabriel Ávila, vice diretor do Centro de Artes, Humanidades e Letras (CAHL), onde o caso ocorreu, o aluno já foi oficialmente desligado da residência universitária. “Tomamos conhecimento do vídeo de forma informal, pelas redes sociais, mas mesmo assim estamos apurando, para agir no que nos cabe. O aluno já saiu do quarto, que não tem mais nenhum pertence dele”, detalha. Danilo morava na Casa de Estudantes Maria do Paraguaçu.

Ainda segundo Gabriel, o aluno já havia sido transferido de residência quando se recusou a dividir o quarto da unidade com um estudante homossexual. Agora, a postura do estudante será alvo de uma investigação interna, através de um inquérito. O pedido para início do procedimento já foi enviado e deve ser apreciado pelo reitor da universidade ainda nesta quarta-feira (11). “É atribuição do reitor abrir o inquérito. Feito isso, uma comissão vai se debruçar sobre as documentações que temos”, conta. A solicitação é pelo desligamento do estudante da universidade.

“A gente compreende que racismo, homofobia e intolerância de qualquer natureza não condiz com o ambiente acadêmico e devem ser combatidos”, destaca Gabriel. Segundo ele, com a abertura do inquérito, o estudante acusado terá 15 dias para apresentar sua defesa.

Na manhã desta quarta-feira (11), membros da comunidade acadêmica, que já prestaram depoimento na Polícia Civil, foram ao Ministério Público em busca de orientações. “Estamos sendo orientados sobre como proceder e ver em que tipo penal ele será enquadrado, no processo externo à universidade”, finaliza.   

Oficialmente, a Universidade Federal do Roconcâvo Baiano (UFRB) informou as penalidades em que o processo administrativo interno pode resultar. "O primeiro passo é a abertura de um processo administrativo, que tramitará de acordo com as normas previstas no regimento da UFRB, podendo levar às seguintes penalidades: advertência verbal, repreensão escrita, suspensão de 30 dias, suspensão de 90 dias e desligamento da Universidade", diz em nota.

Entenda o caso Um estudante da Universidade Federal do Recôncavo (UFRB) é acusado pelos colegas de racismo após se negar a receber um documento das mãos da professora. Em um vídeo que circula nas redes sociais, a docente diz: “Não estou entendendo?”. E o estudante, estático em frente à mesa, indica com o dedo para que ela deixe o papel sobre a mesa, numa suposta recusa em pegar o documento das mãos da professora. Segundo alunos do curso de Ciências Sociais da UFRB, o colega de sala agiu dessa forma porque a docente é negra. 

O vídeo foi gravado na noite de segunda-feira (9) no Centro de Artes, Humanidades e Letras (CAHL) da UFRB, na cidade de Cachoeira, Recôncavo baiano, e postado numa página do Instagram. A UFRB publicou uma nota afirmando que uma comissão foi criada para apurar as denúncias (confira abaixo). 

A imagem, que circula nas redes sociais, mostra o aluno Danilo Araújo de Góis, de camisa amarela, de costas, em pé, conversando com a professora Isabel Cristina Ferreira dos Reis. Na gravação, a reação da professora é de espanto. “Não estou entendendo?”, diz ela e o aluno argumenta em seguida - mas o conteúdo é inaudível.

Logo depois, a  professora estende o braço e diz: “Tome o papel”. E o aluno responde: “Papel na mesa”. A situação causou alvoroço na sala por parte do restante da turma, que reprovava a atitude do colega de classe. 

Turma mais negra de Medicina Em setembro, a UFRB foi destaque no CORREIO como a instituição que formou mais médicos negros numa só turma. Berço da medicina no Brasil e estado com população majoritariamente preta e parda, a Bahia nunca havia formado tantos médicos negros juntos. A colação de grau dos veteranos de Medicina da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), no dia 29 de agosto, é inédita, não só para a instituição, como também na história do ensino superior brasileiro.

Numa foto que viralizou nas redes sociais, 12 estudantes – 41% dos formandos – posam imponentes de braços cruzados. Para alguns, o marco representado na imagem se confunde com um desvio na história, mas o novo capítulo é simbólico; mina uma tradição alheia à diversidade de perfis, e impacta a área da saúde, no estado, sem precedentes.“Ser da primeira turma traz o ‘peso’ de estar levando a ‘cara’ da UFRB comigo. A missão é fazer com que as pessoas conheçam a universidade e a qualidade do curso de Medicina no mercado de trabalho”, afirma Keline Carvalho, 27 anos, de Amargosa, recém-contratada na terra natal.Por dias, a imagem em questão percorreu perfis de pessoas anônimas e públicas, a exemplo da conta no Twitter do ex-presidente Lula. 

Keline, que dispensa o título de doutora, já tem mestrado e especialização e está em um grupo no WhatsApp, junto aos colegas negros. Nele, compartilham informações úteis às suas trajetórias médicas. O diálogo entre os novos médicos, inclusive, tem gerado oportunidades de trabalho. Alguns conseguiram contratos e, então, indicaram os colegas.

“Temos um grupo no WhatsApp para nos fortalecermos e trocar experiências”, escreve Lícia Reis, 29, natural de Santo Antônio de Jesus e médica em Iaçu. Aos cinco anos, ela já sonhava em ser médica. Começou a trabalhar aos 15, como manicure e, durante a faculdade, conciliava o trabalho com os estudos.

No início da graduação, conta, houve um congresso no qual um professor falou sobre o perfil racial do curso de Medicina da UFRB. A plateia que ouvia o docente teria ficado visivelmente desconfortável. “A sensação era de que nós, alunos negros, estávamos ‘sujando a medicina’. Dali por diante, teria que provar a todo momento que eu era capaz, sim, de me tornar médica”, conta.

Os episódios de racismo, velados ou explícitos, são comuns nos depoimentos dos estudantes da UFRB. Apesar disso, serviram também de força motriz para Fabíola Souza, 28, de Serrinha: “Diferente da maioria das jovens negras, sem a mesma oportunidade, ocupei esse lugar e hoje vejo que ele nos pertence, apesar de nos dizerem o contrário”.

Perfil das escolas médicas A antiga Academia Médico-Cirúrgica, hoje Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia (Ufba), é um exemplo de como determinadas exigências acentuaram as desigualdades e excluíram pessoas de classe baixa, antes da implantação de cotas étnico-raciais.“As elites colocavam seus filhos para se tornar doutores, mesmo que depois não atuassem. Há uma tradição elitista neste curso e ela foi, progressivamente, se democratizando”, explica Ronaldo Jacobina, professor aposentado da Ufba.“Ao longo da história da universidade no Brasil, uma característica marcante dos seus estudantes foi a presença maciça de indivíduos autodeclarados brancos e de alta renda, especialmente em curso de elevado prestígio social, como o curso de Medicina”, sublinha Luciana Santana, docente da UFRB.

Num livro publicado neste ano, a pesquisadora observou que o percentual de estudantes autodeclarados brancos no ensino superior brasileiro é de 38,3%, enquanto os autodeclarados negros, isto é, pretos e pardos, chegava a 30%.

No curso de Medicina da UFRB, o percentual foi de 76,7% – 40% negros; 36,7% pardos. “Acredito que não encontraremos este percentual de negros em outra universidade brasileira, em curso de Medicina”, pondera.

Em 2013, a turma aprovada era, predominantemente, do sexo feminino (76,7%); 86% eram naturais do estado da Bahia (86%); 66% haviam cursado o ensino médio em escola pública; 40% declararam ser negros e 53,3% informaram renda familiar entre um e dois salários mínimos.“Essa nação sempre foi algoz com a população negra. Para nós, ativistas e militantes da comunidade negra, estamos celebrando uma grande vitória, inclusive, que não imaginávamos que iríamos alcançar”, observa Valdecir Nascimento, coordenadora executiva do Odara Instituto da Mulher Negra.Tal cenário resulta, embora não exclusivamente, da Lei de Cotas que incide nas federais e que garante a reserva de 50% das matrículas por curso e turno nas universidades e institutos federais a alunos oriundos integralmente do ensino médio público. Os demais 50% das vagas permanecem para ampla concorrência.

De acordo com Paulo Nacif, ex-reitor da UFRB, não é uma coincidência que os cursos da instituição como um todo apresentem um percentual de alunos negros compatível com o que existe na sociedade brasileira. “A diversidade racial da primeira turma de Medicina foi um projeto. A UFRB é a única que nasce com uma pró-reitoria de políticas afirmativas e assuntos estudantis”, expõe.

*Com orientação do chefe de reportagem Jorge Gauthier