Experimento com mosquitos transgênicos criou Aedes que resiste ao ambiente, diz estudo

Transgênico deveria reduzir população de mosquito, mas falhou, afirma artigo; ministérios analisam resultados

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  • Gabriel Amorim

Publicado em 24 de setembro de 2019 às 05:30

- Atualizado há um ano

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Criado para combater epidemias de dengue, o mosquito ‘Aedes do Bem’, geneticamente modificado, tinha todas as credenciais de um herói nacional: alado, ele lutaria contra os males da doença e diminuiria a existência do transmissor, o Aedes aegypti comum. Liberado aos montes em Pedra Branca, no município baiano de Jacobina, em 2013, o Aedes do bem agora é alvo de uma investigação federal que analisa as possíveis consequências da criação de um outro mosquito - resultado do cruzamento entre o transgênico e o comum, mas que resiste ao ambiente.

A investigação começou após a publicação de um artigo científico este mês na revista internacional Scientific Reports, da Nature Research. De acordo com o estudo, uma anomalia foi identificada no experimento.

A princípio, os geneticamente modificados tinham a capacidade de transmitir aos descendentes um gene capaz de matá-los antes da idade adulta, diminuindo a população de mosquitos, sem afetar a genética do Aedes comum. No entanto, o estudo concluiu que os mosquitos transgênicos transferiram genes para a população de Aedes aegypti nativa, criando um ‘mutante’.

Por conta do artigo, o Ministério da Saúde informou que solicitará formalmente à empresa britânica Oxitec, responsável pela modificação genética, que realize o monitoramento dos insetos das populações de Aedes aegypti em todos os municípios em que a empresa realizou a soltura de espécie modificada - Jacobina, Juazeiro, Juiz de Fora (MG) e Indaiatuba (SP). A Oxitec terá que comprovar que os mosquitos híbridos são seguros para o ecossistema e para a população.  Testes com Aedes do Bem em Jacobina foram feitos entre 2013 e 2018 (Foto: Reprodução) De acordo com o artigo científico, cerca de 450 mil machos foram soltos por semana durante dois anos e três meses em Jacobina. Calcula-se que, por mês, eram liberados 1,8 milhão de Aedes do Bem (ou OX513) no ar, totalizando cerca de 48,6 milhões de insetos transgênicos lançados no bairro de Pedra Branca. Em média, cada mosquito vive um mês e a fêmea coloca entre 150 e 200 ovos. 

O documento defende que os resultados apresentados nas pesquisas dos cientistas destacam a importância de ter um programa de monitoramento genético durante esses tipos de liberações para detectar imprevisibilidades.

Procurada pelo CORREIO, a Oxitec afirmou que o experimento realizado no interior da Bahia seguiu todos os parâmetros legais (leia mais abaixo).

A empresa afirmou, ainda, que os mosquitos geneticamente modificados não resistem no ambiente e que, portanto, não criam mosquitos mais potentes.“Os mosquitos transgênicos não criam mosquitos mais resistentes – é exatamente o contrário: o próprio artigo da Scientific Reports, assim como outros publicados à época, mostraram que a linhagem OX513 desaparece do ambiente algumas semanas após a interrupção das liberações, como esperado”, diz a Oxitec.Riscos imprevisíveis Apesar da defesa da empresa responsável pelo experimento, a liberação dos mosquitos geneticamente modificados é vista com preocupação por outros cientistas, além dos envolvidos no estudo que deu início às discussões.  

É o caso do professor José Maria Ferraz, do Laboratório de Engenharia Ecológica da Unicamp. O pesquisador fez parte da comissão que avaliou a liberação ou não do experimento em Jacobina e diz que, à época, apontou irregularidades que fariam com que o experimento não devesse ser liberado.

“Fui a Jacobina para ver o local e várias irregularidades foram apontadas naquela época. O grau de risco atribuído ao experimento foi o que geralmente se atribui a experimentos com plantas, e plantas não têm o poder para se reproduzir e se espalhar no ambiente. O risco com animais é sempre maior”, explica. 

O professor afirma, ainda, que o experimento, como foi feito, envolveu risco à população. “Não foi feito nenhum estudo em laboratório antes de liberar no campo, eles jogaram em cima da população, de pessoas. Qualquer experimento com pessoas precisa de consentimento, o que não ocorreu. A população de Jacobina foi a primeira população brasileira que foi exposta a esses mosquitos”, diz o professor.

A Oxitec nega que a liberação dos mosquitos teria ocorrido prematuramente e afirma que, antes de chegar a Jacobina, já realizava estudos há 14 anos. “No local, foram 36 semanas de estudos antes da liberação dos mosquitos. É um equívoco afirmar que a liberação foi precipitada”, diz nota.

O professor ainda questiona o local escolhido para o experimento: “Na época, os casos de dengue no Rio, por exemplo, eram maiores. Por que não fazer isso no Rio, e sim numa cidade do interior da Bahia, onde qualquer problema seria mais fácil de encobrir?”.

Os riscos, segundo o cientista, ainda não podem ser mensurados.“Existe um risco, não sabemos ainda qual, se esse mosquito consegue sobreviver em ambientes que outros não sobrevivem, se ele é mais eficiente na cópula. O que sabemos é que, ao contrário do que prometia o estudo, o mosquito geneticamente modificado sobreviveu no ambiente e consegue se reproduzir”, detalhou Ferraz.[[galeria]]

José Maria Ferraz chama atenção, também, para uma alteração no comportamento da população: “Quando você divulga que tem um mosquito que vai controlar o problema da dengue, as pessoas relaxam com outras formas de controle”. 

Conforme o artigo científico publicado recentemente, não foi possível avaliar “como o inseto híbrido pode afetar a transmissão da dengue ou outros esforços para controlar esses vetores perigosos”, aponta o documento.

Alerta Segundo a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), ligada ao Ministério da Ciência e Tecnologia, o artigo está sendo avaliado pela presidência da comissão e, a princípio, não ficou comprovado que este inseto é mais resistente à estratégias de controle ou que seja capaz de causar qualquer  dano às pessoas e ao ambiente.

A CNTBio foi a responsável por dar o parecer favorável à comercialização do Aedes do Bem no Brasil. Em nota, a comissão disse que já está na sua pauta o Relatório Final de Monitoramento Pós-Liberação Comercial do Mosquito, que será examinado em caráter de urgência numa reunião nos dias 2 e 3 de outubro.

Por fim, o CTNBio reiterou que é o órgão competente para a avaliação dos potenciais impactos da tecnologia e que, em caso da verificação de possíveis riscos, possui atribuições para garantir que sejam tomadas ações eficazes no controle de possíveis impactos negativos. Além disso, o MCTI anunciou que está acompanhando o assunto e que possui pessoal técnico destacado para obter novos estudos e análises sobre o tema.

Empresa questiona intenções do artigo A empresa Oxitec, responsável pela liberação do OX513 - chamado Aedes do Bem, disse que o artigo que contesta os resultados do experimento está sendo revisado. A empresa nega que o objetivo fosse reduzir a população do Aedes aegypti. “O estudo de Jacobina, em 2013, teve como objetivo gerar dados sobre a segurança e a eficácia do OX513A e obter dados para a aprovação comercial junto à CTNBio. O foco não era o controle populacional dos mosquitos selvagens”, diz nota.

Apesar da afirmação, o site da Oxitec destaca o que empresa visava a supressão do Aedes aegypti: “Nossa prioridade é a supressão do Aedes aegypti, mosquito transmissor da dengue, Zika e chikungunya e responsável pela infecção de milhões de pessoas ao redor do mundo”, diz a página. A Oxitec afirma que a população dos selvagens reduziu em 94%.    

A Oxitec questiona a veracidade do artigo científico, afirma que há interesses econômicos por trás da publicação do material e diz ainda que o grupo Nature eimitiu uma nota afirmando que os editores estão revendo o artigo. 

Apesar disso, o artigo segue publicado no site da revista, assinado por pesquisadores da Yale University, USP, Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Entomologia Molecular e Moscamed Brasil. Até a noite desta segunda-feira (23), o artigo tinha registrado 62 mil acessos. Os autores foram procurados pelo CORREIO, mas não responderam até o fechamento desta reportagem.

Prefeitura não tem dados; MP vai apurar Ouvida pela reportagem, a Prefeitura Municipal de Jacobina, por meio da Secretaria Municipal de Saúde, disse que a atual gestão do município não foi responsável pela implantação do experimento com o Aedes do Bem e que a administração passada não deixou dados. A Secretaria de Saúde adiantou que não recebeu nenhum documento oficial de entidades de saúde do Estado ou da União sobre a questão. 

No site da Oxitec há uma página dedicada à descrição do projeto realizado em Jacobina. O conteúdo informa que o Aedes do Bem foi adquirido a partir de uma parceria entre a Secretaria de Saúde do Estado da Bahia (Sesab) e a Moscamed, com o apoio técnico da empresa britânica. As liberações aconteceram entre junho de 2013 e setembro de 2015. Em 2014, o município chegou a declarar situação de emergência pela dengue.

Procurada, a Sesab disse que não mantém vínculo contratual com a biofábrica Moscamed Brasil -  autorizada da Oxitec para produção, transporte, entrega e liberação dos mosquitos. 

O Ministério Público da Bahia na Região de Jacobina tomou conhecimento do caso no mesmo dia da publicação do artigo, em 10 de setembro. O promotor Pablo Almeida, da Promotoria Regional Ambiental, informou que já solicitou uma reunião entre a instância estadual e o Ministério Público Federal da Região de Campo Formoso para instaurar uma ação de investigação conjunta.“Entendemos que, por ser um experimento autorizado pelo CNTBio, que é federal, em algum momento surgirá uma legislação federal que necessitará que estejamos juntos”, explica o promotor.Ainda conforme Almeida, se o resultado esperado não se efetivou, a promotoria enxerga a possibilidade de a empresa ser responsabilizada no campo do direito do consumidor. 

Casos de dengue subiram 690,5% este ano na Bahia Ainda não se - e como - o mosquito criado pelo experimento modifica a propagação das doenças causadas pelo Aedes Aegypti na Bahia. Os números de casos de dengue, zika e chikungunya seguem sendo monitorados pela Secretaria de Saúde do Estado (Sesab). Segundo a pasta, desde de 2018, as ações de combate ao mosquito foram intensificadas com investimentos que ultrapassam R$ 2,6 milhões. “Entre novembro e dezembro (2018), a Sesab distribuiu 7.400 kits para serem utilizados pelos agentes de controle de endemias dos 417 municípios. Cada kit é composto de 26 itens, como pesca larva, pipetas de vidro, tubos de ensaio, álcool, esponja, lanterna de led recarregável, bacia plástica, dentre outros materiais”, diz a Sesab.

A Sesab destaca, ainda, ter realizado capacitações para gestores e agentes de saúde e solicitou mutirões de limpeza e remoção de focos. “A Sesab emitiu um alerta para os municípios ainda em janeiro de 2019, sobre o alto índice da dengue”, completa.

Segundo dados do último boletim divulgado pelo órgão, no último dia 11, de 30 de dezembro de 2018 a 10 de setembro de 2019, a Bahia registrou 60.897 casos prováveis de dengue - aumento de 690,5% em relação ao mesmo período do ano anterior. Os casos de zika, cresceram 80% saindo de 1.208 para 2.175 até setembro. Já a chikungunya cresceu 48,2% com 5.942 casos em 2019 contra 4.007 até setembro de 2018. Segundo a Sesab, o aumento dos casos está relacionado à época do ano. 

*Com supervisão da chefe de reportagem Perla Ribeiro