Fabricação de rapadura no sertão segue antigo modo de produção e mantem tradição

Com a ajuda de animais para puxar a moenda e utensílios rudimentares, pequenos produtores continuam a produzir rapadura, guloseima que chegou à mesa dos chefs

  • Foto do(a) author(a) Ronaldo Jacobina
  • Ronaldo Jacobina

Publicado em 27 de fevereiro de 2021 às 10:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: (Fotos: Ronaldo Jacobina/Correio)

Final de tarde de segunda-feira. Numa pequena propriedade rural do município de Ribeira do Amparo, a 257 quilômetros da capital, é hora de descarregar o carro de boi que chega do brejo com uma carrada de cana-de-açúcar. 

Pouco antes da meia-noite, os mesmos animais que transportaram o fardo de cana, depois de um pequeno descanso, voltarão à labuta. Desta vez, correndo em círculo, por horas a fio, movimentando a moenda que produzirá o caldo que inaugura o processo artesanal da produção do mais tradicional dos doces nordestinos: a rapadura.  Moenda puxada por bois inicia o processo de moagem da cana de açúcar Antes do nascer do sol do dia seguinte, José Leandro, 34, orienta os afazeres da reduzida equipe que conta com o braço forte da mãe, Galdina Ferreira dos Santos, 51. Mãe e filho, mantêm viva uma tradição cultivada há cinco gerações. 

No pequeno galpão de telhado baixo, Umberto Filho, 75, coloca mais lenha no braseiro para atiçar o fogo do enorme fogão e manter a fervura dos tachos que recebem os ingredientes (caldo de cana e açúcar) que vão dar origem a guloseima.  Engenho produz dois tipos de rapadura: normal (dura) e cerenta (macia) Sentada num tronco de árvore que faz de banco, Galdina prepara as formas de madeira e a enorme colher de pau que, durante os próximos 30 minutos, será seu instrumento de trabalho para bater o doce até atingir o ponto da rapadura. 

Entre uma tachada e outra, ela cuida dos preparativos do café da manhã da turma que passou a noite na labuta. Numa grande panela, quilos e quilos de aipim, extraídos da própria roça, estão quase prontos para serem devorados pelos trabalhadores de apetite voraz.  Há 45 anos, Umberto Filho cuida dos tachos no rústico fogão A pausa é também a hora da prosa. “O trabalho é duro, por isso a gente tem que tá com o bucho cheio”, brinca Mikael Macedo, 20, responsável por conduzir o gado na puxada da moenda. 

Mikael não gosta muito do ofício, sonha com dias melhores. Ele, e a maioria dos jovens da região.  A escassez de mão-de-obra ameaça a tradição. “Meu filho tá pensando em acabar com a rapadura porque não acha mais quem queira trabalhar”, lamenta Galdina. 

Perto dali, um outro pequeno engenho substituiu os bois por um trator para não depender da mão-de-obra. É uma alternativa. Mas assim como Galdina, seu outro vizinho, Francisco Macedo, 85, que herdou o engenho do pai, produz a rapadura até hoje nos moldes do passado.  Conhecido como Nego da Veia Ana, acha que o problema não é o uso do trator ou do boi. “O negócio é que ninguém mais quer trabalhar”, reclama.  Rapaduras normal (dura) e macia (cerenta) saídas da forma Na sua roça, o processo é ainda mais rudimentar. Consequentemente, a produção é menor. São cerca de 250 unidades por semana contra os quase 500 do engenho de Leandro e Galdina.

A pequena produção de ambos segue para as feiras de cidades vizinhas como Cipó, Ribeira do Pombal e até do estado de Sergipe. “A gente tem cliente que vem buscar aqui pra levar pra Poço Verde, Tobias Barreto”, conta Galdina.

A unidade do produto custa, no atacado, R$ 4,50, enquanto no varejo, o valor é de R$ 6,00. Parte da produção é vendida no próprio engenho, o excedente é comercializado pelos próprios donos nas feiras livres das cidades vizinhas. Daí só trabalharem na produção uma vez por semana. No restante dos dias, percorrem as feiras para mercar o produto.

À moda antiga A produção também sofre com a sazonalidade. “Quando não tem chuva, a cana é mais dura e, além de render menos, a rapadura fica mais seca, mais dura. Quando chove, a cana fica mais mole e não só rende mais como a rapadura fica mais macia, mais mole, que a gente chama de “cerenta” e que é a mais procurada”, explica Galdina. 

Desconsiderando o trabalho duro de corte da cana e da moagem, o tempo gasto no preparo da rapadura é relativamente pouco. O caldo vai pro fogo onde permanece cerca de 30 minutos, onde recebe o açúcar e depois reduzido até se transformar numa cocada puxa.  Utensílios rústicos usados no processo de fabricação Daí o tacho é retirado do fogo e, após outros 30 minutos misturando o conteúdo em movimentos circulares com a ajuda de uma colher de pau, até atingir a consistência desejada, está pronto para ser enformada. O trabalho exige um enorme esforço físico de Galdina, responsável também por esta etapa do processo.

Depois, com a ajuda de uma tigela com cabo, feita de cabaça – colhida na própria roça – o doce é transportado para as formas de madeira onde permanece mais meia hora até serem desenformadas. 

Antes de atingir o ponto do doce, o caldo também pode ser vendido como melaço, mas como a demanda é pequena, só costumam fazer quando tem encomenda. “Por aqui as pessoas não procuram muito, as vezes vem gente de Salvador e encomenda, aí a gente faz”, explica Galdina.

Nas cidades praianas o melaço, segunda ela, é mais consumido do que a própria rapadura. “As pessoas usam como acompanhamento do queijo coalho”.  (Divulgação) Carne de sol com molho de rapadura do chef Guto Lago Resgate Para quem pensa que a rapadura está com os dias contados, pode tirar seu cavalinho da chuva. O chef Guto Lago, que durante oito anos comandou o restaurante Villa Bahia e que se prepara para assumir a cozinha de um novo espaço no próximo mês de abril, no Rio Vermelho, defende o uso de produtos regionais nas suas criações.

A rapadura, por exemplo, já é sua velha conhecida. Um dos pratos de maior sucesso no menu que ele criou é uma carne de sol ao molho de rapadura. “Além de saborosa, a mistura do doce da cana com o salgado da carne de sol, enobrece e dar um sabor equilibrado ao prato”, explica.  (Divulgação) Pancetta com chutney de rapadura: entrada do Vini Figueira Gastronomia Quem também é adepto da rapadura é o chef Vinicius Figueira. No menu do Vini Figueira Gastronomia, o doce criado nos Açores no século XVI, é o ingrediente de um dos seus pratos de sucesso: o chutney de pancetta. “Este prato é servido como entrada e fica agridoce graças a rapadura”, conta. 

Se depender dos adeptos da alta gastronomia, esta tradição está longe de acabar. O chef Fabricio Lemos, que comanda os restaurantes Ori e Origem, ainda não fez uso da rapadura nas suas criações, mas gosta da ideia. “Nosso papel é manter viva as tradições, vou incluir a rapadura no meu radar”, promete. 

RECEITA  DE SOBREMESA COM RAPADURA (Divulgação) Receita de sobremesa com Rapadura criada pela chef Lisiane Arouca Meu sertão - por Chef Lisiane Arouca - Restaurantes Ori e Origem @lisianearouca @orisalvador @restauranteorigem

Para Rabanada:Ingredientes: 3 pães franceses dormidos / 2 xícaras de leite/ 1 xícara de leite condensado /3 gotas de essência de baunilha/ 3 ovos ligeiramente batidos/ Farinha de panko para empanar/ Óleo para fritar

Preparo: Corte os pães em fatias médias. Reserve. Numa tigela, coloque o leite e o leite condensado e a baunilha e misture com uma colher. Reserve. Em outra tigela, bata os ovos com um garfo até ficar uma mistura homogênea. Leve uma panela com óleo ao fogo para aquecer. Na tigela com o leite, coloque algumas fatias de pão e deixe de molho por 1 minuto. Transfira para uma peneira e escorra o excesso do leite. Passe as fatias pelos ovos batidos depois passe no panko e coloque imediatamente na panela. Deixe cada lado dourar por 2 minutos. Retire as rabanadas com uma escumadeira e transfira para um prato forrado com papel-toalha. Se o óleo ficar muito sujo, passe-o por uma peneira forrada com papel-toalha. 

Brigadeiro de Rapadura Ingredientes: 1 colher (sopa) de Manteiga/ 40g de rapadura ralada/ 395g de leite condensado/ 200ml de creme de leite / 50g de castanha de caju triturada/ 100g de chocolate branco ralado/ 10g de Farinha de Trigo  (sem fermento).

Preparo: Coloque a manteiga, leite condensado, rapadura e chocolate ,o creme de leite e a farinha de trigo em uma panela. Mexa bem. Leve ao fogo baixo e continue mexendo até que a mistura se desprenda da panela.

Creme de cajáIngredientes: 400 g de leite condensado/ 250 g de polpa de cajá/ 200 ml de creme de leite fresco batido em ponto de chantilly 

Preparo: Bata no liquidificador o leite condensado com a polpa. Depois misture com o chantily. Reserve na geladeira.

Montagem: Em uma tigela coloque um pouco do creme de cajá, em cima coloque a rabanada frita. Adicione por cima o brigadeiro de rapadura e finalize com uma bola de sorvete de coco e sirva.