Feira de São Joaquim tem três mortes ligadas ao coronavírus e uma feirante na UTI

Outros três comerciantes se afastaram depois da Semana Santa, considerada o estopim das contaminações, e feirantes falam em até oito óbitos

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  • Fernanda Santana

Publicado em 23 de maio de 2020 às 06:30

- Atualizado há um ano

. Crédito: Tiago Caldas/ARQUIVO CORREIO

Às escondidas, os feirantes comentam um só assunto: os casos de coronavírus na Feira de São Joaquim, a maior de Salvador. Em apenas uma semana, foram quatro mortes associadas à covid-19 - duas comprovadas por documentos acessados pelo CORREIO. Hoje, uma vendedora de galinhas está internada na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) de um hospital público. Outro comerciante ficou em estado grave por duas semanas, depois de contato com outro feirante contaminado. O espaço está aberto e todos acreditam que a Semana Santa tenha sido o estopim das contaminações. 

Durante oito dias, a reportagem colheu relatos, buscou documentos e conversou com feirantes. Eles falam em oito mortes desde o início da epidemia, mas não conseguimos provas dos óbitos. Dos mortos, dois eram comerciantes vítimas da covid-19; um ex-comerciante da feira e pai do dono de uma loja de tecido que frequentava quase diariamente o local e morreu com infecção respiratória aguda, suspeita de coronavírus; e outro infartou na feira - uma das possíveis complicações da doença, mas sem confirmação de familiares, nem amigos, de que tenha sido este o caso dele. 

Nenhum comerciante aceitou falar publicamente com a reportagem, com receio de represálias dos colegas e do próprio futuro da feira, da qual dependem diretamente. Alguns deles desconversaram. Outros desligaram a ligação. Os decretos restritivos não incluem a feira, que presta serviços considerados essenciais e está aberta. Diferentemente de mercados, no entanto, não há nenhuma medida de controle de entrada de consumidores na Feira. 

A morte mais recente - pelo menos, oficialmente notificada - foi a de Nestor Lessa de Souza, 62 anos, fornecedor de frutas que, há três décadas, trabalhava na Rua do Quiabo, em São Joaquim. Nestor morreu às 0h45 do dia 9 de maio, no Hospital do Subúrbio, segundo atestado de óbito acessado pela reportagem. “Não vou mentir para você não, aqui na Feira são muitas situações [de coronavírus]”, disse o dono de um bar. Atestado de óbito confirma morte de feirante por coronavírus (Foto: Reprodução de atestado de óbito) A cada pessoa contaminada, existem outras três fora das estatísticas e assim por diante, numa escala geométrica, diz a Fiocruz. As suspeitas de casos de coronavírus ganharam a feira depois da Páscoa. Dos dias 6 a 11 de abril, os boxes - principalmente os que vendem  produtos para comida baiana - ficaram lotados. A reportagem localizou três pessoas que contraíram o vírus logo depois. 

Uma delas é o dono de um dos principais quiosques de venda de camarão. Ele ficou internado em estado crítico no Hospital Aliança, por duas semanas. Enquanto esteve afastado, sua loja, onde trabalham entre 15 a 20 funcionários, permaneceu aberta. Se algum deles se contaminou, teste não houve para comprovar. 

Os feirantes calculam, de cabeça, uma média de 15 casos de coronavírus no perímetro onde atuam. É bom lembrar que cada um deles ocupa uma porção dos 38 mil metros da Feira - o equivalente a quase quatro campos de futebol - e o que sabem refere-se apenas à área onde trabalham. O espaço é dividido por ruas, com os respectivos nomes dos produtos mais vendidos. Uma cidade dentro de outra, brincam os comerciantes.

A Feira de São Joaquim é um pólo de abastecimento de Salvador, Região Metropolitana e Recôncavo Baiano. De lá, saem também materiais artesanais e religiosos. O povo de santo, por exemplo, é frequentador da Feira, onde são encontrados artigos fundamentais para obrigações. O local é considerado um símbolo da cultura baiana, retratada em filmes, livros e pinturas.

As mortes e o silêncio Os óbitos e casos, como relataram os vendedores, aconteceram em diferentes pontos da Feira, dividida em ala velha e ala nova, reformada pelo governo do estado - ruas do Quiabo, do Limão, da Verdura e da Bomboniere. O presidente do Sindicato dos Feirantes da Feira de São Joaquim, responsável pela administração da feira, Nilton Ávila disse desconhecer os casos. O Governo respondeu que não intervém na gestão do local. “Não nego que esteja acontecendo [os casos], mas oficialmente desconhecemos”, afirmou. O CORREIO questionou "Gago", como Nilton é conhecido, sobre a discrepância entre o quem dizem os comerciantes e o Sindicato, mas não houve nenhuma resposta conclusiva. Ouvimos, na produção desta reportagem, mais de 20 pessoas. O administrador afirmou, ainda, desconhecer o caso do feirante infartado dentro da Feira e não saber os nomes dos outros mortos. 

A reportagem, então, empreendeu uma busca entre os próprios feirantes, que, na maioria das vezes, chamam-se apenas pelo primeiro nome ou apelido. A morte de Isaias Santana dos Santos, 60, ocorreu dois dias antes da de Nestor, como descobrimos. Ele faleceu à 14h do dia 7 de maio, também no Hospital do Subúrbio, segundo atestado de óbito solicitado pela reportagem ao cartório de registro - os documentos são públicos. Morte de ex-comerciante, pai de dono de loja de tecidos e frequentador da feira, é caso suspeito de covid-19 (Foto: Reprodução de atestado de óbito) O filho do ex-comerciante, dono de uma loja na Rua da Bomboniere, disse estar afastado. Vizinhos de box contaram que o senhor, dono de uma antiga bomboniere, era frequentador da feira, onde se tornou conhecido. 

Um feirante em atuação na Rua do Limão também morreu vítima de complicações ligadas à covid-19, no dia 8, no Hospital Couto Maia. Contatamos a viúva, que preferiu o silêncio. A confirmação foi dada à reportagem por pessoas próximas ao falecido, pois o atestado de óbito ainda não está disponível. O comerciante que apresentou insuficiência cardíaca morreu, dentro da feira, na Rua da Verdura, na semana anterior. 

Num ponto mais à direita de São Joaquim, na ala nova, onde ocorria o Samba da Feira, uma vendedora de galinhas também sumiu. Está internada na UTI do Hospital do Subúrbio, com suspeita covid-19. O pulmão dela está inflamado, disse uma fonte. Seu filho, também atuante na feira, afirmou que retornaria à reportagem, depois de acionado por ligação e mensagem, mas não o fez.  

Nas vielas do espaço, o assunto é debatido sob sigilo. Como o movimento caiu, em média, 70% desde as medidas restritivas, muitos querem evitar espantar o restante dos consumidores. A entrega delivery, pela natureza do próprio negócio, é raramente identificada entre os comerciantes. “Agora mesmo a gente [feirantes] estava tendo uma conversa séria sobre isso. Muita gente está levando a sério, mas muita gente não está. É uma questão de saúde”, falou um feirante que conhecida três dos falecidos. Pipoco de casos   Tradicionalmente, entre quatro e cinco mil pessoas circulam pela feira em busca de produtos como quiabo e azeite de dendê para preparo durante a Semana Santa. Fora datas  comemorativas, os dias mais movimentados da Feira de São Joaquim eram as sextas-feiras e os sábados, quando passava por lá a mesma  média de consumidores. 

A reportagem apurou que, nos sete dias anteriores à Sexta-Feira Santa deste ano, os box ficaram lotados. Coincidentemente, pelo menos três pessoas caíram doente passado o feriado católico.  Feira de São Joaquim na última Semana Santa: aglomerações e pessoas sem máscara (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) Todas trabalham com venda de produtos como camarão e óleo de dendê - os mais procurados durante o período. O dono de um dos box apresentou febre e tosse no dia 1º de maio. Ficou 16 dias afastado. O teste de sangue confirmou a suspeita, disse o senhor por telefone. A pedido dele, seu nome não será divulgado. 

Uma semana depois, o dono de um dos principais quiosques de venda de camarão, com quem o feirante contaminado tem contato próximo, testou positivo para coronavírus. Foi ele quem ficou em estado grave no hospital e teve alta no último dia 15.  A Organização Mundial de Saúde estima que o período de incubação da covid-19 - tempo entre a infecção e o início dos sintomas - varia de um a 14 dias. A transmissão pode acontecer mesmo antes dos sintomas. O caso dos dois ilustra o potencial de transmissão local dentro da feira. 

No mesmo período, uma vendedora de um quiosque que também vende misturas para comidas como caruru e vatapá, próximo do portão principal da Feira, também foi testada para coronavírus. Enquanto trabalhava, ia alternadamente ao banheiro, com diarréia, um dos sintomas da doença, como contou seu pai. 

O teste de sangue confirmou o diagnóstico. A mulher ia de casa para o trabalho e do trabalho para casa, o que reforça as suspeitas de que tenha se contaminado na Feira. A rua onde a comerciante trabalha é vizinha à conhecida Rua da Bomboniere, no segundo portão da feira, sentido cidade alta. Lá, outras duas pessoas se afastaram. “Os casos são frequentes. Toda hora ficamos sabendo de um”, afirmou uma vizinha dos boxes administrados pelas pessoas com diagnóstico positivo. Elas não quiseram falar.

Os pontos de risco  A Feira de São Joaquim tem, em média, 2,5 mil boxes e 1,2 mil bancas. Se muito, os pontos de venda de frutas, hortaliças e objetos estão afastados por meio-metro. A convivência, portanto, é próxima. Sem máscaras, ou com a máscara sob o queixo ou nariz, muitos deles elevam os riscos de contaminação. São, aproximadamente, cinco mil empregados pela Feira. Seis mil máscaras e seis mil potes de álcool foram distribuídas entre os feirantes, segundo o Sindicato dos Feirantes.

Não fosse a redução de clientes, a rotina continua parecida. Os comerciantes iniciam o serviço às 5h30 e vão embora entre 12h e 14h - antes, iam embora no fim do dia.  Antes, às 3h, os caminhões de abastecimento chegam. A distribuição acontece no fundo do espaço, margeado pelo mar. Alguns carregadores pernoitam na feira à espera. Aquele é um dos pontos de contaminação, acreditam os feirantes, divididos entre os preocupados e os descrentes. Fundo da feira, onde feirantes pernoitam e os produtos são distribuídos, é um dos pontos de preocupação (Foto: Thiago Caldas/CORREIO) Quem teme o avanço do vírus ali dentro começou a estranhar o desaparecimento de colegas. A Feira chegou a fechar, por precaução. Mas só no dia 22 de abril. Na manhã seguinte, estava aberta. “Aqui está assim, as pessoas somem e a gente para [e se pergunta]: ‘Será que está de coronavírus?’", contou um feirante.O epidemiologista e professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia (Ufba) Fernando Carvalho explica que o termo “surto” é utilizado para definir a crescente de casos de uma determinada doença num determinado espaço. “É uma linguagem mais da mídia sanitária”, disse. Uma cartilha do Ministério da Saúde mostra que não há parâmetros numéricos para definição de um surto, mas procedimentos como levantamento de pessoas contaminadas, acesso a prontuários médicos, características das pessoas afetadas e tempo e distribuição da contaminação, por exemplo.  

Os riscos de se contrair coronavírus em um ambiente como a Feira de São Joaquim, na teoria, seriam os mesmos que em qualquer outro lugar, afirmou Gúbio Soares, virologista e professor da Ufba. Os vírus são expelidos pelo contaminados e tendem, pela gravidade, a se depositar em superfície - frutas, por exemplo. Ali, teriam sobrevida de, em média, quatro horas. “A diferença são duas: a aglomeração de pessoas, vendedores e consumidores e o uso de material de proteção em todas essas pessoas”, ressaltou.Somaria-se à questão do próprio armazenamento: às vezes, os produtos ficam largados no chão, misturados até apodrecer e virar uma só polpa dissolvida - e a própria ausência de medidas de restrição. No ar, o vírus sobrevive por um tempo ainda indeterminado. A Secretaria de Saúde da Bahia (Sesab) chegou a lançar uma nota conjunta com a Secretaria de Agricultura do Estado (Seagri) com orientações - nem sempre seguidas - para funcionamentos de feiras livres, como separação de dois metros entre trabalhadores e disponibilização de álcool 70% para feirantes e clientes.

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É recomendado que frutas e verduras sejam submersas numa solução de água com hipoclorito de sódio - para cada litro de água, uma colher de hipoclorito. O vírus não sobrevive depois de retirado da mistura.