Festa, revolta e amor à Bahia: a volta do desfile da Independência às ruas

Retorno da festa popular aconteceu em 2022, véspera do bicentenário da Independência do estado

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  • Fernanda Santana

Publicado em 3 de julho de 2022 às 05:50

- Atualizado há um ano

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. por Foto: Ana Lúcia Albuquerque/CORREIO

Os dois carros que levam a cabocla e o caboclo acabam de passar pelo Barbalho, e Marise Oliveira, 63, chorou de novo. São 20 anos derramada pela mesma cena – a celebração à Independência da Bahia, no 2 de julho de 1823. “Quando você tem amor pelas coisas é assim”, diz. Quase em frente a ela, um cartaz em outro sobrado dizia: “Independência é uma ova, voltamos à escravidão”.

Depois de dois anos sem a festa popular, anos de perdas e mudanças provocadas pela pandemia da covid-19, baianos voltaram às ruas no dia em que a independência completou 199 anos. Cada um, como costuma ser, experienciou um retorno: uns se emocionaram, como Marise, alguns perguntaram “Que independência é essa?”, outros acompanharam os políticos e os mais festeiros seguiram as fanfarras.“É um dia especial, mas falta muita coisa para sermos independentes, principalmente o respeito”, disse Fabrício Gomes, 38, que iniciava o filho de dois anos, Maurício, na tradição naquela manhã de sábado. Sob chuva no início do trajeto, a cabocla e caboclo foram guiados da Lapinha à Praça Thomé de Souza por 100 funcionários da Prefeitura de Salvador, organizados no Batalhão Quebra-Ferro.

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Parte da família Alves – Iracema, Douglas e Damião – fez o percurso ao lado das cordas. Cosme, pai de Iracema e irmão de Damião, empurrava a cabocla desde os anos 70. Em março, faleceu.“Hoje seria o aniversário dele. Tive a ideia de a gente vir para cá festejar onde ele sempre festejava”, contou a filha. Em 730 dias sem o cortejo do 2 de julho, outros dois integrantes – Lourival e Geraldo -  que participavam do Batalhão por três décadas faleceram. Os antigos colegas rememoraram a dupla. Pelas ruas, havia novatos e os veteranos. “Eu nasci nesse clima de desfile, desde cedo estou aqui”, disse Lélia Marques, 92, guiada em uma cadeira de rodas pela neta, Samantha, 37.

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Na sacada de uma casa, Marina Borba, seis meses, apareceu com vestes indígenas. Os caboclos são símbolos da guerra pela independência  e não só vão em cima dos carros, na frente do cortejo, como são reverenciados em fantasias. Há 45 anos, Romilda Anunciação, 52, veste-se de Maria Quitéria, outra heroína da independência.“Para mim essa data representa também a minha liberdade. Eu, como Maria Quitéria, fugi de casa, lutei, criei minhas filhas sozinha”.Como Marise, Romilda é do grupo dos emocionados. “É por amor. Amor à liberdade, a Maria Quitéria. É uma data muito linda”.

Pela tradição, o esforço Descalço, Marcelo Rocha, 32, chegou à Lapinha 6h30. Acompanhado de outros 19 homens, faz parte dos Guaranis, grupo criado em 1939, em Itaparica. Com arco e flecha, cabaças e o atabaque, eles simbolizam o caboclo. "Um orgulho. Venho de baixo de chuva, de sol", contou ele, que tomou o ferry-boat vir a Salvador. Outros 15 integrantes foram para São Félix, no Recôncavo Baiano, outro território que lutou pela emancipação local.

Os guaranis acompanham de perto o trajeto percorrido pelo caboclo e a cabocla, que neste ano foram vestidos, respectivamente, das cores do Brasil e da Bahia. Atrás vinham os políticos e grupos sindicais e partidários. Na descida da Lapinha para o Barbalho, duas mulheres se estranharam.

Uma trazia um adesivo de Lula (PT), candidato à presidência que compareceu no cortejo, pregado na blusa. A outra era eleitora do presidente Bolsonaro (PL), que reuniu eleitores em uma motociata que seguiu do Farol da Barra para a Boca do Rio. "Gasolina tá 7,30", disse a primeira e saiu andando. Os presidenciáveis Ciro Gomes (PDT),  Simone Tebet (MDB) e Sofia Manzano (PCB) também apareceram. O clima foi de paz. Os moradores dos bairros pelos quais o desfile passa colocavam o papo em dia, entre a passagem do caboclo e da cabocla e a vinda dos políticos. Já os comerciantes aproveitavam para lucrar. Às 9h17, a tenda da "Feijoada do Chuco" estava lotada. Emanoel Farias, 42, o "Chuco" em questão, pretendia vender 70 pratos da refeição. O valor, para duas pessoas, era R$ 45. 

Os pleitos: 'A carne mais barata do mercado é a negra'

Cada um fez próprio trajeto do desfile. A Ladeira do Boqueirão, por exemplo, é tida como um ponto estratégico para quem vai em protesto. "Aqui estamos de frente para o cortejo", explicou Suely Santos, 58, funcionária pública que integra a rede Mulheres Negras da Bahia. No cartaz que levou, a frase: "A carne mais barata do mercado é a negra".

Para ela, o 2 de julho teve ainda mais significado neste ano: "É a retomada da democracia que é uma criança ainda. Estamos em um retrocesso violento. Desde criança, trazida pela família, e depois com as próprias pernas, entendi o 2 de julho como espaço de luta e insurgência". 

"Sei que não adianta em nada, mas eu ia fazer aqui um cartaz para colocar", Marcelina Brito, 81. Depois de perder o acesso a uma das aposentadorias, vive com um salário-mínimo (R$ 1,2 mil). "Vim porque gosto de me divertir e venho sempre pela tradição. Mas vim com raiva". A vizinha Edna da Encarnação, 80, que a acompanhava, "estava feliz, porque sempre vinha e por rever amigos". Depois dos 10 minutos de atraso para a saída, o caboclo e a cabocla chegaram 30 minutos antes do programado, 10h30, ao caramanchão montado na Praça Thomé de Souza, de onde seguiram para a Praça do Campo Grande. Em frente à Câmara Municipal, pessoas fizeram fila para tocar nos caboclos e, algumas delas, para rezar para eles.  Quietinha, com flores na mão, Alice dos Santos, 72, se aproximou do caramanchão. "Peço a eles que venham benções e saúde, não estou muito bem", disse. Logo em seguida, os Guaranis cantaram seu hino: “Por ele eu lutarei pela defesa do Brasil”. Em 2023, estarão de volta para celebrar os 200 anos da Independência da Bahia.