Firma que vendeu ferries funciona em salão de beleza em Lisboa

A reportagem do CORREIO conversou por telefone com o advogado da Happyfrontier, António Borges Pires, mas ele disse que a empresa não se manifestaria

Publicado em 4 de novembro de 2014 às 07:29

- Atualizado há um ano

A Freguesia da Reboleira é uma região da cidade de Amadora, na Grande Lisboa, em Portugal. No edifício de número 10 da Rua Dom Afonso de Noronha, funciona um salão de cabeleireiro. A proprietária, Maria de Lurdes Pereira Lobo Nóbrega, conhecida na vizinhança como Dona Milu, corta cabelos algumas vezes na semana.

No mesmo endereço, funciona a sede da Happyfrontier que, até abril deste ano, vendia eletrodomésticos, mobiliário e equipamentos para o lar. Um mês depois, a empresa, com um capital social de apenas 15 mil euros (R$ 46 mil), passou a vender navios.Empresa que vendeu os ferries gregos ao governo do estado funciona neste prédio, no 1º andar, balcão à esquerda (Fotos: Paula Cosme Pinto)Entre eles, os ferries gregos que hoje cruzam a Baía de Todos os Santos, comprados pelo Governo do Estado da Bahia por 18 milhões de euros (R$ 55,8 milhões). A denúncia foi realizada inicialmente pelo jornalista Fernando Conceição, professor da Universidade Federal da Bahia (Ufba), em seu blog. Em novembro de 2013, o governo do estado, através da Secretaria de Infraestrutura da Bahia (Seinfra), comprou os ferries gregos Theologos V e Panagiotis D, por 9.734.694,44 de euros (R$ 30,2 milhões) e 8.265.305,56 (R$ 25,6 milhões), respectivamente, num total de exatos 18 milhões de euros, em licitação vencida pela Happyfrontier.

As embarcações chegaram em Salvador em agosto, receberam os nomes de Dorival Caymmi e Zumbi dos Palmares e começaram a operar em outubro. Identificada por uma pequena placa de metal ao lado do alvará de funcionamento do “Cabeleireiro de senhoras”, a Happyfrontier Importação e Exportação Lda. tem três sócios. Um deles é João Carlos Palmeirão de Melo, genro de Dona Milu.“Os negócios dele não têm nada a ver com cabeleireiro, mas não sei bem o que são. Só sei que recebe muita gente aqui. E que o escritório dele é aqui, também tenho a certeza porque já lá fui cortar o cabelo e vi-o a trabalhar na sala dele”, disse um vizinho ao CORREIO. A reportagem foi quatro vezes ao salão, na semana passada, mas não encontrou a estabelecimento funcionando – nem a Happyfrontier. Apenas em uma das visitas, a cortina da janela estava aberta, mas ninguém atendeu à campainha. O mesmo vizinho, que informou que é comum Dona Milu fechar o salão durante a semana, disse ter visto João Carlos no prédio na semana anterior.Na ocasião da compra, a Seinfra era chefiada pelo vice-governador e também titular da pasta, Otto Alencar (PSD). O atual secretário, Marcus Cavalcanti, disse desconhecer que a Happyfrontier funcione em um salão de cabeleireiros, mas destacou que a legislação brasileira não obriga que o governo vá até a sede da empresa.

“Nós estamos muito mais atentos com que eles fossem representantes legais dos proprietários dos barcos, na prova de propriedade de quem passou os documentos para eles e, depois, se as embarcações atendiam (às exigências)”, disse Cavalcanti.Outro objeto Hoje, João Carlos Palmeirão de Melo é um legítimo comerciante do ramo de navios, com atividade reconhecida em cartório. Mas, no dia 6 de novembro de 2013, quando vendeu os dois ferry-boats gregos ao governo da Bahia, a Happyfrontier tinha como objeto o “comércio por grosso de electrodomésticos e afins, mobiliário e outros bens e equipamentos para o lar”.A empresa só passou a vender navios a partir de abril deste ano — seis meses depois de vencer a licitação. Em Portugal, Conceição teve acesso, junto ao Instituto dos Registros e do Notariado do Ministério da Justiça de Portugal, à ata da assembleia-geral que alterou o objeto social da Happyfrontier. Os sócios portugueses João Carlos Palmeirão de Melo e Hélder José Veras Nunes Barata e o angolano Francisco Leonardo Chivela se reuniram no dia 15 de abril deste ano – quase seis meses após a assinatura do contrato na Bahia – e alteraram o objeto da empresa para “comércio por grosso de electrodomésticos e afins, mobiliário e outros bens e equipamentos para o lar, comércio geral por grosso para compra e venda de navios, administração de terminais marítimos, estaleiros navais, serviços de manutenção naval, comércio de equipamentos industriais, transportes marítimos, importação e exportação dos mesmos e serviços conexos.A reportagem do CORREIO conversou por telefone com o advogado da Happyfrontier, António Borges Pires, mas ele disse que a empresa não se manifestaria. “A empresa não pretende, neste momento, prestar qualquer declaração. Esta questão não é uma questão que suscite qualquer ilegalidade do ponto de vista da empresa em Portugal. Nós conduzimos o processo nos termos legais e, portanto, a empresa não vai prestar mais declarações”, afirmou.Secretaria Já o atual titular da Seinfra, Marcus Cavalcanti, disse que a documentação dos navios, dos proprietários e dos procuradores foi analisada tanto pela pasta quanto pelo Ministério Público (MP), mas eles não viram problema no fato de a empresa não ter autorização para comercializar navios à época do contrato.“Nós fizemos o processo licitatório, submetemos ao Ministério Público no ano passado, que analisou toda a documentação apresentada pelas empresas e pelos barcos e esses dois procuradores manifestaram que toda a documentação estava correta”, disse o secretário. Questionado se não havia sido notado o fato de a empresa não ser do ramo de navios, completou: “A Comissão de Licitação, os órgãos jurídicos e o procurador do Ministério Público entenderam que não era necessário”, disse.Parecer O senador eleito Otto Alencar (PSD), responsável pela licitação, disse ter se preocupado apenas com o que o MP analisou. “Eu dei atenção ao parecer do MP. A licitação foi uma licitação que foi feita dentro dos parâmetros da legalidade, a Procuradoria Geral do Estado deu um parecer favorável. Depois de concluída a licitação, eu mandei para (a promotora) Rita Tourinho, passou 60 dias na mão dela, depois que ela deu um parecer dizendo que foi tudo feito dentro da lei, eu mandei homologar a licitação”, disse. Questionada, a promotora Rita Tourinho ponderou que o parecer favorável à compra dos ferries foi dado com base nos documentos da própria licitação. “Até aquele momento, isso (da empresa ser habilitada só para comercialização de eletrodomésticos e mobiliário) não era conhecido. É importante dizer que não só o Ministério Público deu parecer favorável, mas também o próprio Tribunal de Contas e a Procuradoria (do Estado)”, afirmou Tourinho. O empresário Marcos Espinheira — que representou outras três embarcações gregas na disputa, mas não fez a proposta de preços por não concordar com as condições de pagamento — apresentou ao Tribunal de Contas do Estado (TCE) a Certidão de Propriedade de Navio dos dois ferries. Nos dois documentos, é transferida a propriedade dos armadores gregos para a Happyfrontier nos dias 2 e 22 de maio de 2014. No final do mês de setembro, o conselheiro do TCE Pedro Lino confirmou que havia recebido os documentos. “A documentação mais recente demonstra que há fortíssima suposição de crime. Quem ganhou a licitação realizada em novembro foi a empresa portuguesa Happyfrontier. Era uma licitação de compra. A documentação é da Capitania dos Portos da Grécia que diz que até 22 de maio de 2014 esses ferries eram de tomadores gregos. Quem fez a proposta de venda, vendeu o que não era proprietário, isso pelo Código Penal Brasileiro parece configurar um crime de estelionato”, disse.

O titular da Seinfra, Marcus Cavalcanti, disse não conhecer os documentos.Em abril deste ano, Happyfrontier altera objeto para inclusão de ‘compra e venda de navios’. Licitação já havia sido vencida seis meses antesMP analisa denúncia de superfaturamento dos ferriesEm janeiro deste ano, o Ministério Público (MP-BA) recebeu denúncia de superfaturamento na compra dos ferries, apresentada pelo empresário Marcos Espinheira (os ferries foram comprados por 12 milhões de euros pela Happyfrontier e vendidos por 18 milhões). O processo foi arquivado.

A Seinfra entregou à reportagem um parecer da promotora Rita Tourinho em 10 de dezembro de 2013, no qual esclarece que o MP não dispõe de suporte técnico para avaliar se houve superfaturamento. Ela diz que o representante que fez a denúncia leva em consideração só o valor da embarcação, sem contar despesas com transporte, treinamento e trâmites burocráticos. Ela compara o valor do ferry Panagiotis (R$ 25,6 milhões) com o do ferry Anna Nery (R$ 39 milhões) e conclui que “o Estado da Bahia teve economia”.

Espinheira diz que apresentou, em seguida, orçamento de R$ 290 mil euros para o transporte e, em outubro, a promotora Rita Tourinho reabriu o processo. Segundo ela, o Grupo de Atuação Especial de Defesa do Patrimônio Público e da Moralidade Administrativa (Gepam), do qual faz parte, entende que o governo não deve fazer o pagamento dos 35% restantes – 5,1 milhões de euros, a serem repassados quando as embarcações completarem 120 dias de operação na Bahia. “O Gepam deliberou pelo encaminhamento de recomendação à Seinfra para que suspenda qualquer pagamento devido em razão da compra dos ferries, diante de indícios de sobrepreço”, disse Tourinho.

Ela diz que a recomendação foi encaminhada ao procurador-geral de Justiça, Márcio Fahel, em 10 de outubro, para que encaminhe à Seinfra. Ontem, porém, a assessoria do MP informou que a Procuradoria Geral solicitou ao Gepam as cópias do inquérito, mas os documentos não foram enviados. “Por determinação do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), eles devem ser enviados em até 24 horas”, diz a nota.