Galeria Entre, no Rio Vermelho, propõe alquimias estéticas

Roupa feita com temperos inspira espaço da cozinha idealizada por filha de santo de Mãe Menininha do Gantois

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  • Laura Fernades

Publicado em 14 de abril de 2017 às 06:01

- Atualizado há um ano

A ebomi Regina de Iemanjá, 79, assina o ambiente Cozinha  da Galeria Entre (Foto: Arisson Marinho/CORREIO)No chão, o farfalhar do tapete de folhas secas anuncia a atmosfera diferenciada da Cozinha, um dos cinco espaços da Galeria Entre, mostra gratuita em formato de galeria que funciona no casarão 190 na Rua Odilon Santos, no Rio Vermelho. Pendurada no teto, como num altar ritualístico, uma roupa chama a atenção: um tule de malha nude feito com 6kg de capim-santo desidratado, 2kg de erva-cidreira, 2kg de cravo-da-índia, 2kg de erva-doce e 4kg de anis-estrelado.

A roupa, criada pelo designer de moda baiano Alexandre Guimarães, 32 anos, curador do projeto, emana o aroma que toma conta do espaço Cozinha, idealizado por Regina de Iemanjá, 79 anos, filha de santo de Mãe Menininha (1894-1986) e uma das ebomis (iniciadas mais velhas) do Terreiro do Gantois. “Esses temperos, muito usados na nossa cozinha, me trouxeram a memória da minha infância, da convivência com meu povo”, conta dona Regina, que cresceu numa roça de candomblé com a mãe biológica.

Nascida no Tororó e iniciada no candomblé há 40 anos, dona Regina recebeu a perfumada roupa de Alexandre para que se inspirasse e criasse um espaço dentro da Galeria Entre, projeto que dura um mês, até 7 de maio, e reúne cinco instalações: Sala, Quarto, Cozinha, Banheiro e Área de Convivência.

Se arriscando na arte pela primeira vez, dona Regina aceitou participar do projeto por dois motivos. Um diz respeito à sua aproximação com a cozinha, já que gosta de preparar comidas com azeite - não só para os orixás - e gosta de fazer doces tradicionais sob encomenda. O segundo motivo tem relação com o fato de ser pesquisadora da religião afro-brasileira e defensora do registro e da divulgação das manifestações do candomblé, como estratégia para perpetuar a cultura além da oralidade. Tudo isso já a levou para Angola, Nova York e Havana, onde participou de eventos sobre o tema.

“Vivemos para dar continuidade a essa cultura”, justifica dona Regina, cuja mãe é negra, de família africana, e o pai branco, filho de português. Por isso, a Cozinha idealizada por ela reúne panelas de barro, colheres de pau, peneiras de palha decorando o teto, cabaças nas paredes, potes cheios de cebola, gengibre, dendê e outros quitutes típicos da cozinha baiana. Sem falar nos temperos da roupa, que dão o intenso aroma ao ambiente.

“As pessoas esqueceram esses temperos, essas essências. As pessoas estão americanizadas”, critica a ebomi. “A população não aprendeu a querer bem a ancestralidade. Busca cada vez mais coisas de fora e os órgãos que educam não estão preocupados com a preservação. Essa é uma maneira de divulgar e mostrar esses temperos que quase ninguém usa mais”, justifica.  Idealizada por dona Regina, valoriza a cozinha tradicional afro-baiana com potes de barro, cabaças e colheres de pau (Foto: Arisson Marinho/CORREIO)Ambientes - O fato de dona Regina não ser uma  artista visual pode ser questionado, a princípio, mas Alexandre Guimarães garante que “há uma potência ali, dentro do universo de performances ritualísticas que são esteticamente muito interessantes”, destaca o curador. Ele destaca que os temperos presentes na roupa estão diretamente ligados aos aromas, combinações e alquimias, que são coisas próximas da realidade da cozinha e do candomblé, dos banhos e dos rituais da religião.

A partir das roupas idealizadas por Alexandre, dona Regina e mais quatro artistas de diferentes áreas foram convidados a pensar um ambiente da galeria: o compositor e produtor musical Gilberto Monte (Banheiro); os artistas visuais Pablo Cordier e João Oliveira (Quarto); o multimída Orlando Pinho (Área de Convivência); e a atriz, diretora e dramaturga Paula Lice (Sala).

Além do mergulho na cultura afro-baiana, a Galeria Entre proporciona outras experiências ao visitante. Além das instalações, que exibem - ou não - as roupas que as inspiraram, o projeto criado em 2014 reúne uma programação de shows, performances e encontros.

Inspirada no universo de Elke Maravilha, a Sala de Paula Lice serve de palco, amanhã, às 17h, para o bate-papo Santa Maravilha Recebe, no qual articuladores da Revista Barril falam sobre arte e crítica. Já o Quarto, de João Oliveira e Pablo Cordier, instalação batizada de E Toda Obscuridade Fugirá de Ti, revela metáforas dos relacionamentos.

O Banheiro de Gilberto Monte surpreende o público com seu piso de grama que segue até o chuveiro, onde está a roupa que inspirou o ambiente: feita com 96 metros de fio, 64 tomadas machos e fêmeas e 256 lacres.

Enquanto isso, na Área de Convivência de Orlando Pinho, a indumentária é composta por 11 bolsos-caqueiros, confeccionados em um sobretudo de vinil preto que abriga flores plantadas com terra e argila expandida.

“A primeira edição do projeto, em 2014, veio de um desejo de construir uma coleção que não estivesse dentro do âmbito da indústria de moda. Não é uma roupa para ser colocada em uma arara e ser comprada”, explica Alexandre Guimarães. Ele acrescenta que poderia apresentar todo esse conteúdo dentro de um desfile, mas que não seria tão enriquecedor quanto trabalhar com multilinguagens, como é a proposta da Entre.