Assine

Há 40 anos, Bahia conquistava inédito heptacampeonato baiano


 

Campeão de 1973 a 1979, Sapatão contou sobre sua trajetória ao CORREIO

  • Vinicius Nascimento

Publicado em 28/09/2019 às 05:00:00
Atualizado em 20/04/2023 às 07:58:04
. Crédito: Foto: Betto Jr/CORREIO

Quem deseja marcar qualquer coisa com Élcio Nogueira da Silva, 71 anos, deve ficar de espírito preparado a contar com a sorte. Esta, tem nome e sobrenome: Junalva Nogueira, sua esposa (que enfatiza sua preferência em ser chamada apenas de “Dona Ju”), sempre atenta a eventuais toques de telefone pela casa localizada no bairro do Costa Azul. Às vezes é ela quem atende o celular do marido. Do outro lado da linha, escuta-se uma voz carinhosa e paciente, confirmando que o celular pertence ao dono. 

A década de 1970 é conhecida como “Década de Ouro” para o Bahia. Também pudera: em apenas dois daqueles dez anos o tricolor não levou o título estadual, perdendo para um Vitória que se mostrou poderoso ao vencer as duas finais de 1972, primeiro por 2x1, depois por 3x1; e que levantou a taça também em 1980 (tecnicamente, a década de 70 compreende o período de 1971 a 1980). 

Nos outros anos - 1971, 1973, 1974, 1975, 1976, 1977, 1978 e 1979 - a taça de campeão baiano ficou com o Bahia. Em todas as campanhas do hepta, seu Élcio, ou melhor, o zagueiro Sapatão estava no tricolor. E na derrota de 1972, ele defendia o Santa Cruz. Em Pernambuco, advinha: foi campeão estadual. Era treinado por Evaristo de Macedo (que em fim de carreira como jogador o conhecera no Flamengo, onde o jovem Sapatão era um iniciante), técnico que chegaria ao Bahia pela primeira vez no ano seguinte.

Além de Sapatão, outros três jogadores participaram de toda a campanha de sete títulos consecutivos do Campeonato Baiano: Douglas, Baiaco e Fito, este o autor do gol do sétimo título, no lance que ficou eternizado pela falha do goleiro rubro-negro Gelson após chute de fora da área. Assim como o ex-zagueiro, os três também serão personagens em perfis que o CORREIO apresenta deste sábado (28) até a próxima terça-feira (1).  Time do hepta. Em pé: Luis Antônio, Toninho, Sapatão, Zé Augusto, Baiaco e Romero. Sentados: Botelho, Douglas, Caio, Peres e Gilson (Foto: Hipolito Pereira/Arquivo CORREIO) Papa-títulos Sapatão passou quase uma década inteira sendo campeão em uma época em que os estaduais tinham tanto ou até mais valor do que o Campeonato Brasileiro, criado apenas em 1971 – os torneios Taça Brasil e Roberto Gomes Pedrosa, disputados de 1959 a 1970, foram oficializados pela CBF em 2010 como equivalentes ao Brasileirão.

Hoje, o velho zagueiro mora bem próximo do lugar onde passava boa parte dos seus dias: a Fazendinha – centro de treinamento do Bahia localizado onde foi construído o já extinto clube do Baneb - ficava a pouco menos de 100m de onde Sapatão reside há mais de 40 anos com a esposa.

Dona Ju é a fiel escudeira. Ela se intitula assessora do marido. Se o celular de Sapatão é relegado ao acaso, o dela tem toda atenção do mundo. Sabendo disso, qualquer pessoa próxima liga diretamente para a matriarca, que é professora aposentada. Filhos, amigos da época de cancha, repórteres mais experientes e colegas já conhecem o esquema, que ela conta com orgulho.

O namoro do casal já tem 50 anos e começou em Feira de Santana. Nascido na zona rural de Campos dos Goytacazes, no Rio de Janeiro, Sapatão iniciou a carreira jogando no time da escola até chamar atenção aos 15 anos e partir para o Campos - clube da cidade que fica a pouco menos de 300km da capital fluminense.

Foi campeão carioca infantil e juvenil, chamando atenção de Fadel Fadel, então presidente do Flamengo. Em 1969, o zagueiro então com 21 anos chegava ao Fluminense de Feira, onde iniciaria sua sina de ser campeão estadual. Aquele foi também o último Campeonato Baiano conquistado pelo Touro.

Na casa de Sapatão a conversa era reta, contou o zagueiro, mirando o horizonte e sentado no sofá em conversa com o CORREIO. O horizonte em questão era o seu próprio rack, decorado com fotos dos mais diversos tempos: do casamento, há 42 anos; dos três filhos juntos; das duas netas apelidadas de Brigadeiro e Beijinho e dos dois netos, gêmeos de 10 anos, em um campo de futebol sintético. Sapatão e Dona Ju moram próximos a onde ficava a Fazendinha, antigo CT do Tricolor (Foto: Betto Jr/CORREIO) Memória Conversar com Sapatão é transitar entre passado, presente e futuro de uma forma tão fluida quanto o tempo. A memória do zagueiro imponente segue intacta, principalmente quanto aos próprios feitos. A infância na roça de Campos, a relação carinhosa com os pais e seus nove irmãos e o amor pela bola. Ah, a bola! Por ela o zagueiro faria tudo, até relegar o seu estilo clássico a pedido do primeiro treinador na base do Flamengo.

No primeiro dia de treinos na Gávea, Sapatão se antecipou ao atacante adversário dentro da área após um cruzamento, matou a bola no peito e saiu jogando como se nada estivesse acontecendo. De bate-pronto, o treinador soou o apito interrompendo a atividade e bradou: “Aqui não, zagueiro não faz isso! Trate de cortar a bola pra cima”. No lance seguinte ele rifou a bola. “Eu ia fazer o quê, porra?! Tinha acabado de chegar!”, conta o ex-zagueiro, aos risos.Tratamento Aposentado desde 2012 como treinador, Sapatão atualmente vai a um hospital particular em Salvador três vezes por semana para realizar hemodiálise, procedimento de filtragem e limpeza de substâncias tóxicas do sangue. O ídolo tricolor enfrenta problemas renais “já há um tempo”, como prefere dizer. Fora isso, a rotina conta com almoço pelo bairro, visita dos netos e caminhadas para sentir o vento no rosto, ver gente na rua e jogar dominó.

O tratamento, contudo, deixa marcas, literalmente. Os braços carregam os rastros deixados pelas agulhas, que ajudam no trabalho renal. Sapatão leva com tranquilidade. É assim que costuma levar a vida. Quem vê a serenidade sequer imagina que ele fazia parte da defesa que se tornou um ferrolho tão difícil de ser ultrapassado. Entre 1974 e 1976, o Bahia chegou a ficar 50 jogos invictos no estadual. Em 1975, o tricampeonato foi conquistado sem perder uma partida.

Em 1977, ano do penta, a defesa composta por Luiz Antônio, Ricardo Longui, Sapatão, Zé Augusto, Toninho e Baiaco, este último na frente de zaga, passou 12 jogos sem sofrer gol. Por pouco o feito não se repetiu em 1978, quando os hexacampeões passaram 11 jogos sem ter a defesa vazada. A única mudança em relação à defesa do penta foi a entrada de Edmílson no lugar de Ricardo Longui.

A campanha do heptacampeonato (de 1973 a 1979) teve 228 partidas, com 142 triunfos, 75 empates e apenas 11 derrotas. Sim, em sete temporadas o Bahia perdeu somente 11 jogos. Foram 419 gols marcados e 102 sofridos.

Para Sapatão, o grande diferencial daquele time era a união. Numa era ainda romântica do futebol, o ex-zagueiro afirma que todos gostavam de jogar bola e amavam o Bahia. Ir para Fonte Nova era um prazer, mesmo com os recorrentes atrasos de salário que, na época, passavam longe dos valores astronômicos atuais. Os jogadores costumavam se dar bem financeiramente nas renovações de contrato. Era esse o momento de pedir à direção uma casa para a família. 

Sapatão afirma que costumava alertar os recém-chegados, comunicando que a situação não era das mais fáceis, mas que não havia lugar para corpo mole. “A gente jogava e pronto”, diz. Aos trancos e barrancos, formou-se uma família. Jogador do Bahia não andava sozinho: “Eram oito, nove andando junto”. Esposas e filhos também se misturavam. Somando tudo isso à qualidade daquele time que tinha até jogador que veio do Santos de Pelé e voilá: eis a receita do sucesso - elevada à sétima potência.

*com supervisão do subeditor Miro Palma