Hora de encarar a cirurgia adiada pelo coronavírus

Na pandemia, 84% dos procedimentos eletivos no estado foram postergados, mas cresce a busca tempo perdido

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  • Priscila Natividade

Publicado em 16 de agosto de 2020 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Ilustração: Morgana Miranda/ CORREIO

Desde o início da pandemia, muita gente postergou festinhas, viagens, encontros com amigos, planos dos mais diversos e desejados por um, dois, três, quatro meses. Até aí, tudo bem. Mas de repente surgiu uma dor ou um problema antigo que começou a incomodar além do normal, seguidos por um mal estar em pleno isolamento social. Dá para deixar de lado a agenda de coisas a fazer pelo mesmo prazo quando o que está em jogo é a saúde? Em tempos de covid,  a resposta pode surpreender.

Segundo levantamento feito pela Cooperativa de Coloproctologia e Cirurgia Geral, Oncológica, Ginecológica e do Aparelho Digestivo da Bahia  (Coopercolo), 84% das chamadas cirurgias eletivas deixaram de ser feitas no estado durante a pandemia, o que causou um aumento dos casos de urgência que chegam com gravidade acima do comum aos hospitais. “A queda foi observada em todos os tipos de intervenções, mas também naquelas em que a espera pode tornar o quadro mais grave, como os procedimentos para tratamento de hérnias, inflamações, abcessos e fístulas”, explica o diretor científico da Coopercolo, Leonardo Landim. Na cooperativa, que conta hoje com 270 cirurgiões, a redução começou a partir de março, com queda mais significativa de abril a junho. Segundo Landim, não foi nem o medo da operação que elevou o número de adiamento das eletivas por parte dos pacientes, mas os riscos de contágio do coronavírus no ambiente hospitalar. 

“Tivemos 585 pacientes que, com procedimentos autorizados pelos planos de saúde ou orientados a fazer a cirurgia, decidiram operar apenas após a pandemia. É um receio legítimo. Estamos enfrentando uma doença  grave e que o mundo inteiro desconhecia. O problema é o efeito. Pacientes que poderiam ser operados antes, sem complicações, acabaram operados com urgência”, destaca.

A bacharel em Direito Ednália Santos, de 43 anos, adiou uma cirurgia de vesícula, marcada inicialmente para abril, por três vezes. Até que não deu mais. “Esperei quatro meses, mas o tamanho da pedra era grande e poderia ter alguma complicação. Todos os adiamentos foram por medo da covid. Estavámos em quarentena rígida em casa, porque meu esposo tem asma e faz parte do grupo de risco”, diz.   

Medo  As cirurgias eletivas são aquelas que não precisam ser feitas logo após o diagnóstico. Porém, não quer dizer que não possam evoluir para cirurgias de emergência. A orientação sobre adiar ou não é sempre do médico, no entanto, há uma probabilidade grande de que os pacientes, deliberadamente,  desistiram por conta própria, com temor de contágio.

De março a junho de 2020, foram registradas apenas 16% das cirurgias, num comparativo com o mesmo período do ano anterior. “Eu tive uma paciente idosa, hipertensa e diabética, que estava com uma cirurgia de hérnia agendada para o início de abril. Com a pandemia, postergamos, mas ela começou a ter crises de dor. Foi operada no final de maio, quando passou a ter mais chances de complicação, e a crise de covid-19 estava grande nos hospitais. Por sorte, tudo ocorreu bem e sem intercorrência. Se operasse antes, o era risco menor”, conta o diretor científico da Coopercolo. O Aliança é um dos hospitais que realizam cirurgias eletivas (Foto: Divulgação) Logo quando foi declarado o estado de pandemia, as autoridades de saúde informaram que as cirurgias consideradas menos urgentes deveriam ser postergadas, até para que os hospitais pudessem rever seus processos e se preparar para o enfrentamento do novo coronavírus.

A enfermeira Juliana Paolillo  preferiu o risco, quando descobriu uma úlcera em plena pandemia, ao apresentar um quadro recorrente de dor de estômago. “Eu estava com processo inflamatório grave. Tive muito receio de um agravamento maior caso retardasse, então, não pensei nem em adiar”, relata, depois de ter passado pelo procedimento. Para ela, a confiança no médico e no hospital foram fatores determinantes para que ela se submetesse à cirurgia. “Foi o que me deu segurança”, afirma.   

Retomada gradual Após chegarem a registrar uma redução de 50% na receita diante do medo do paciente de frequentar clínicas, hospitais e laboratórios nos últimos meses, o segmento já começa a ver o retorno gradual do movimento, como destaca o presidente da  Associação de Hospitais e Serviços de Saúde da Bahia (Ahseb), Mauro Duran Adan. “Ainda existe uma quantidade grande represada, mesmo com esse movimento importante de retomada”, pontua Adan. 

A procura tem crescido em centros de saúde como o Hospital da Bahia. De acordo com o médico e superintendente-executivo da unidade, Marcelo Zollinger, o retorno é evidente, sobretudo, dos pacientes com câncer e obesos.“Eles precisaram, primeiro, entender que o hospital é seguro, perceber que não dá para adiar procedimentos eletivos em um lugar que se preparou para enfrentar a covid da forma mais correta possível”, acrescenta Zollinger.Desde o pico da pandemia para cá, a média era de 25 a 28 cirurgias, quando o normal eram 40 intervenções. O número de eletivas agora está em 35. “Já é uma média que sustenta o nosso projeto de eletivas. Estamos testando todos os pacientes antes de entrarem no centro médico, o que é mais uma medida para reforçar o nosso comprometimento com esta blindagem contra vírus”, ressalta. 

Era justamente a questão da segurança que preocupava o empresário Pedro Santos, de 44 anos. Obeso, ele postergou a cirurgia bariátrica agendada para março. Paciente do grupo de risco, durante o isolamento social Pedro ganhou mais peso, chegando a 155 quilos. “Vi que era necessário fazer a cirurgia, justamente, para ganhar mais saúde. Fiz no início do mês, quando a equipe médica me deu a segurança que eu precisava”, salienta.

No caso do aposentado Osvaldo Martins, ele só teve 15 dias para decidir se iria se submeter a um transplante de fígado, depois de aguardar quase dois meses na fila de espera pelo órgão. “Fiquei muito assustado por causa do coronavírus e com medo também do transplante. Meu maior medo foi morrer na cirurgia ou pegar a covid. Tenho vários conhecidos e amigos que pegaram o vírus, e um deles veio a óbito. Mas meu caso era muito grave. E em maio, me submeti ao transplante. Graças a Deus, nem eu nem minha família pegamos o tal vírus”, afirma o aposentado. 

Cuidados  No Hospital Português, nenhum paciente pegou covid  após passar por uma cirurgia eletiva. É o que garante o coordenador do centro cirúrgico da unidade, Gustavo França. Pacientes e funcionários são submetidos a um teste bem simples, além de todos os protocolos de segurança adotados pelo hospital: em um pedaço de papel, álcool; no outro, perfume. Só segue para o centro cirúrgico quem identifica corretamente a fragância.“Quem não difere, não entra. Esse bloqueio impediu que oito pessoas que perderam o olfato e não tinham percebido entrassem no centro. Claro que o risco existe, mas a instituição precisa estar muito bem preparada”, argumenta.O diretor superintendente do Itaigara Memorial, Fábio Brinço, concorda. Lá funciona o Hospital Dia, especializado em procedimentos eletivos. “A recomendação para as pessoas que ainda estão receosas é que não adiem sua ida ao médico. Tudo é cuidadosamente pensado para que esse paciente se sinta seguro, confortável, acolhido”. 

No Hospital Santa Izabel, as internações por covid foram reduzidas em um terço, o que levou à retomada  das cirurgias eletivas. Cerca de 20 pacientes estão sendo operados por dia desde o mês de julho, metade da média anterior à pandemia. “Diminuímos os procedimentos, mas não paramos, e gradativamente a volta está acontecendo, o que deixa o hospital muito confiante”, argumenta o diretor técnico assistencial da unidade,  Ricardo Madureira.

O Hospital Aliança também começou a perceber a normalização. “É importante que os pacientes mantenham o contato com seus médicos, procurando orientação quanto ao momento certo de resolverem as indicações cirúrgicas. Outra orientação fundamental é que, no caso de queixas agudas, como dor torácica, dor de cabeça persistente, dor abdominal, entre tantas outras, os pacientes procurem as emergências e não retardem a avaliação médica. A maioria das emergências está bem preparada para atender com segurança. Isso pode ajudar a evitar muitos agravamentos, sobretudo, de casos eletivos”, orienta.  

Rede Pública Nos hospitais do governo do estado, as cirurgias eletivas ficaram suspensas durante os últimos meses, mas começaram a retornar agora em agosto, com 50% da capacidade. As informações são da Secretaria de Saúde do Estado da Bahia (Sesab). Na rede municipal, no entanto, as eletivas não pararam mesmo na pandemia. Com base nos dados da Secretaria Municipal de Saúde (SMS), ainda assim, as cirurgias caíram pela metade, devido ao isolamento social, se comparado com os meses anteriores. O que aumentou a oferta de vagas atualmente.  

POR QUE DECIDIU ADIAR? CONFIRA O QUE CONTAM OS PACIENTES

‘Adiei a cirurgia por três vezes’

Agonia e espera  “Eu descobri uma pedra na vesícula no final do ano passado, quando fazia  exames de rotina. Em minha casa, estamos cumprindo a quarentena  com rigor, principalmente porque meu marido é asmático, está no grupo de risco. A cirurgia foi agendada para início de abril, porém, adiei o procedimento três vezes, por receio de contaminação.  O tamanho da pedra era grande e poderia ter alguma complicação. Por isso, acabei fazendo a cirurgia há uma semana. A equipe trabalha completamente paramentada, com viseiras, máscaras e luvas. Ninguém tocava em nada sem antes higienizar as mãos. Eu usei máscara o tempo todo. Só retirei para comer e tomar banho ou já dentro do centro cirúrgico.  Agora eu me sinto bem”. (Ednália Santos, bacharel em Direito, 43 anos)

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‘Não me sentia muito seguro’

Risco do peso “A obesidade vinha afetando demais minha saúde em vários aspectos. A bariátrica estava marcada para março, logo no início da pandemia, e então decidi adiar para agosto. Não me sentia muito seguro. E a consequência disso foi que, nesse tempo, eu acabei ganhando mais peso. Foram cinco quilos, além dos 150 quilos que pesava antes. Obesidade é grupo de risco, e por mais que eu tivesse adiado, vi que era necessário fazer, justamente, para ganhar mais saúde. O isolamento nos causa angústia. Na verdade, não é o fato de não poder sair, e sim o fato de não saber quando isso vai acabar. A equipe me passou a segurança que eu precisava. Fiz a cirurgia no início do mês. Tinha a certeza da permissão de Deus e deu tudo certo”. (Pedro Santos, empresário, 44 anos)  

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‘Eu já estava com autorização do plano, mas cancelei’

Retomada recente “Tenho um lipoma. É um caroço nas costas, mas não é nocivo. Contudo, é importante fazer a biópsia, já que na minha família tem vários casos de câncer. Antes da pandemia, eu fui ao oncologista, fiz todos os exames pré-operatórios, e aí minha cirurgia foi marcada para o dia 29 de março, que foi exatamente a semana seguinte em que tudo parou. Tinha autorização do plano e consulta pré-anestésica. Mas cancelei. O médico também me disse que eu poderia esperar. Essa semana decidi retomar o processo para remarcar a cirurgia. O caroço nas costas é muito grande e, em raríssimos casos, um lipoma pode ser maligno. De fato, eu fui uma pessoa que adiei o procedimento por causa da pandemia”. (Daniela*, que  a reportagem pediu para usar um nome fictício)

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‘Descobri uma úlcera em plena pandemia’

E se agravar?  “Durante a pandemia, eu senti um mal estar, dor de estômago, e precisei fazer uma endoscopia. O resultado é que eu estava com um processo inflamatório grave. Meu medo maior era que o problema piorasse, então, eu não pensei nem em adiar. Era uma úlcera.  A escolha da instituição para fazer um procedimento, principalmente em um momento como esse que nós todos estamos passando, é primordial e fez toda a diferença. Quando você percebe que a instituição tem credibilidade e medidas que vão proteger o paciente e a equipe, sem dúvidas, ficamos mais seguros em fazer o procedimento. Deixei de fazer algumas coisas por conta do isolamento social. Porém, um problema de saúde não dá para adiar”. (Juliana Paolillo, enfermeira)

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‘Meu maior medo foi morrer na cirurgia ou pegar covid’

Por  sobrevivência “Eu descobri no dia 7 de fevereiro deste ano que tinha necessidade urgente de fazer transplante de fígado. Um mês depois, nove dias antes do começo da quarentena, eu entrei na fila de espera pelo órgão. Após cerca de duas semanas, a equipe médica me ligou informando que os transplantes iriam continuar e me deram um prazo de 15 dias para eu decidir se passaria pelo procedimento mesmo na pandemia.  Conversei com minha família,  e a maioria concordou que eu deveria fazer. Tenho vários conhecidos e amigos que pegaram o vírus e um deles veio a óbito. Meu caso era muito grave e, em maio, me submeti ao transplante. Meu maior medo foi morrer na cirurgia ou pegar  covid”. (Osvaldo Martins, aposentado, 65 anos)

SAIBA MAIS SOBRE AS CIRURGIAS ELETIVAS

O que é O  presidente da Associação Bahiana de Medicina (ABM) e 2º vice-presidente nacional da Associação Médica Brasileira (AMB), Robson Moura, explica que as cirurgias eletivas são aquelas que não precisam ser feitas de imediato. “São doenças em que o tratamento é um procedimento cirúrgico, porém, ela não é de urgência e nem de emergência, como por exemplo uma hérnia ou um nódulo benigno da tireoide”. 

Quanto tempo leva para um plano de saúde autorizar uma cirurgia?  Em média, de 15 a 30 dias.