Ideal de liberdade foi maior legado de Palmares para a educação, diz historiadora

Zumbi e o quilombo foram fonte de inspiração para artes e cultura brasileira pelo menos desde a década de 1960; veja músicas

Publicado em 20 de novembro de 2021 às 05:20

- Atualizado há 10 meses

. Crédito: Foto: Derly Marques/Instituto Augusto Boal

Durante mais de 100 anos, em pleno período em que o Brasil era colônia de Portugal e a escravidão era parte fundamental da estrutura colonial, se nasceu, viveu e morreu livre em Palmares. O maior quilombo da América Latina, cujos primeiros registros remontam ao final do século XVI, foi construído na região da Serra da Barriga, Capitania de Pernambuco na época, mas território do atual estado de Alagoas. 

O auge do Quilombo dos Palmares foi, na verdade, no século XVII. A República de Palmares – ou o Reino Negro de Palmares – se tornou o maior símbolo de resistência negra no período colonial contra a Coroa Portuguesa e chegou a reunir 20 mil pessoas escravizadas que fugiam dos engenhos na capitania de Pernambuco e arredores. A estruturas política e social dos quilombos eram complexas, e não seria diferente em Palmares.

O quilombo resistiu por mais de um século, e só chegou ao fim em 1694. No ano seguinte, seu último líder, Zumbi, que não havia aceitado uma oferta de paz do governador de Pernambuco e decidiu continuar a resistir contra a opressão portuguesa - foi morto numa emboscada. Nos 300 anos da morte do líder quilombola, em 1995, uma grande marcha reuniu 30 mil pessoas em Brasília num episódio marcado pela entrega de um documento ao governo federal que iniciou a discussão de políticas públicas e ações afirmativas no Brasil.

É por isso que, para a historiadora Maria Cláudia Cardoso, professora da Unilab e integrante da Rede de HistoriadorXs NegrXs, a lei 10.639/ 2003, que instituiu o ensino de história afro-brasileiras nas escolas do país e incluiu o Dia Nacional da Consciência Negra no calendário escolar, não caiu de paraquedas no Brasil – foi fruto de todo um percurso protagonizado pelo movimento negro ao longo de décadas. 

“A memória do Quilombo de Palmares, mais do que a memória de Zumbi, me parece muito forte como lugar de liberdade, porque foram 100 anos da República de Palmares, pessoas nasceram e morreram livres em Palmares, dentro de uma estrutura colonial. Eu acho que isso é pouco enfatizado. Isso tem um simbolismo muito grande e fica na memória coletiva, esse é o principal legado de Palmares na educação”, afirma Maria Claudia.

Para o jornalista e professor Edson Cardoso, a história de Palmares não diz respeito apenas aos negros. “Eles preferiram morrer a ser escravizados. Isso é a mensagem maior de Palmares, é o valor da liberdade, e isso interessa a todos os seres humanos. Se você pensar que houve uma noite que antecedeu o combate final [no quilombo], que houve um momento em que se decidiu combater até o fim, eles estavam combatendo de olho no futuro, a liberdade estava acima de tudo”, aponta.

Para Maria Cláudia, é possível explorar a experiência de Palmares no ensino de História por outros ângulos, inclusive, que não apenas o mais comum, que é o da resistência. “Essa experiência de Palmares como um lugar de liberdade, a estrutura de relações sociais, a economia, como o quilombo lidava com os outros grupos do entorno na região que hoje é Alagoas é um elemento importante no ensino de História”, diz.

Ela acredita que ainda há muito o que mudar – e avançar – mas enxerga vitórias, a exemplo da manutenção dos temas relacionados à cultura negra na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), mesmo depois de toda as mudanças. “A gente tem muito o que mudar ainda. Por exemplo, a fiscalização, para saber se os conteúdos estão sendo trabalhados efetivamente, mas é importante a gente destacar isso na construção curricular do tema e marcar o dia 20 como dia de reflexão nacional, como um dia de luta”, defende. Ela também acredita que, mesmo no momento conturbado atual, sob risco de perda de direitos, há uma perspectiva positiva com a presença de outros espaços de formação, que não só a escola.

“Ao mesmo tempo que a gente tem pessoas que tentam retroagir nas coisas, tem muitas pessoas se posicionando de forma muito contundente”, afirma.  

***

Zumbi e o Quilombo dos Palmares inspiraram cultura e arte da época

- 1960: A escola de samba Acadêmicos do Salgueiro, do Rio de Janeiro, foi uma das vencedoras do Carnaval de 1960 com o samba-enredo Quilombo dos Palmares. Na época, a imprensa especializada tratou a escola como favorita, considerando que o Quilombo dos Palmares havia "descido às ruas do Rio". Zumbi, o último líder de Palmares, foi chamado no samba de "divino imperador". O enredo foi ideia de Fernando Pamplona, que havia sido jurado no Carnaval de 1959 e, no ano seguinte, foi convidado a produzir a festa da Salgueiro. A homenagem a Zumbi, segundo ele, seguia uma temática de exaltação ao negro. 

- 1965: O Teatro de Arena de São Paulo estreou em 1965 o musical Arena conta Zumbi, com texto de Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal. A música era de Edu Lobo e o elenco original tinha, além de Guarnieri, Anthero de Oliveira, Isaias Amada, David José, Susana de Moraes, Lima Duarte, Marília Medalha, Vanya Sant’anna, Carlos Castilho, Anunciação e Nenê. Na turnê internacional, a partir de 1969, Zezé Motta foi uma das atrizes que se juntou ao elenco. Aquele espetáculo inaugurou uma série de musicais do grupo de Augusto Boal, como Arena conta Tiradentes e Arena canta Bahia. Musical Arena conta Zumbi, com texto de Gianfrancesco Guarnieri, direção de Augusto Boal e música de Edu Lobo estreou em 1965, com Lima Duarte no elenco (Foto: Derly Marques/Instituto Augusto Boal) - 1976 - Jorge Ben Jor relançou, no álbum África Brasil, a música Zumbi, que ele tinha lançado em 1974 no álbum A tábua de esmeralda. Mas não era só a letra que chamava a atenção, e sim a interpretação do artista: "Ele não está só cantando, ele está dramaticamente berrando, gritando, como se fosse uma sentinela que corresse avisando que quer ver quando Zumbi chegar", aponta o jornalista e professor Edson Cardoso.

Em entrevista à jornalista Kamille Viola, para o livro África Brasil: Um dia Jorge Ben voou para toda a gente ver, Jorge Ben conta que queria, naquela música, mostrar o negro."O negro aqui é tratado como escravo. Os primeiros negros aqui, que eu cito na minha música, que são Angola, Congo, Benguela, Monjolo, Cabinda, Mina, Quiloa e Rebolo, representam etnias africanas, não escravos. Saíram de lá como africanos e aqui chegaram como escravos. Eu quis mostrar isso: que o negro, antes de tudo, é simpático, inteligente, livre e bonito. Lindo. Eu sempre quis mostrar isso nas minhas músicas", disse.No mesmo livro, lançado no ano passado, a jornalista destaca o poder da interpretação de Jorge Ben Jor na versão de 1976. "A letra da música já dava a ideia de libertação quando ela foi lançada em A tábua de esmeralda. Mas sua nova versão, no disco África Brasil, com vocal raivoso e guitarra alta, parece estar convocando todos os descendentes de africanos do Brasil para a revanche. A letra parece trazer características de Ogum para o personagem, já que Jorge se refere a ele como 'o senhor das guerras', 'o senhor das demandas'".

- 1978 - Caetano Veloso lançou Sampa. A música foi feita para um programa de TV em homenagem à cidade. Para o professor Edson Cardoso, um dos versos era um sinal de que Caetano via e vivia as movimentações no período."Tinha um dito meio anedótico que dizia que São Paulo era o túmulo do samba. Em vez disso, ele diz 'mais possível novo quilombo de Zumbi'. Por que ele diz isso? Porque ele estava em São Paulo e via a agitação que estava lá", disse.- 1984 - A partir de 1984, o Olodum começa a fazer eventos em alusão ao Dia da Consciência Negra, quebrando um certo preconceito que havia em se festejar aquela data. O primeiro dos eventos foi realizado na Praça da Sé, entre o Olodum e Movimento Negro Unificado (MNU), para 5 mil pessoas, com os cantores Lazzinho e Haroldo Menezes. É nesse ambiente que surge a primeira música do Olodum, escrita por Germano Meneghel, chamada Zumbi Rei."Começamos a fazer vários textos sobre o Quilombo dos Palmares e Zumbi. Uma diretora do Olodum, Vitória, escreveu um texto sobre Zumbi dos Palmares. Desse texto, Germano tirou parte dessa letra de luta, que ajudou a popularizar duas coisas durante passeatas e protestos: a ideia de Zumbi e do Quilombo. E a Consciência Negra. De 1984 em diante, colocamos uma pimenta baiana que foi a história da Revolta dos Búzios. Adicionamos isso para transformar os cinco heróis brasileiros em heróis Alagoanos, Baianos e Nordestinos", lembra João Jorge, presidente do Olodum."Pegamos o quilombismo de Zumbi e passamos a adicionar também a principal revolta urbana dos africanos no Brasil. Os quilombos são a luta rural, do campo, fora das cidades. A revolta dos Búzios é a mãe e o pai das revoltas urbanas dos afrodescendentes. A revolta no campo continua até hoje do ponto de vista de termos quilombos em vários lugares, inclusive na Bahia. A revolta urbana continua com o Olodum, o afroreggae, o MNU, que nacionalmente lutam por direitos, justiça e igualdade nas cidades. A luta no campo é luta por terra, por economia sustentável, preservação do ambiente. A luta na cidade é pela vida dos jovens negros, pelo acesso à educação, trabalho, renda, garantia de que essa renda vai ajudar a gente a viver", completa.