Ilê Aiyê escreveu outra narrativa do Carnaval

Com estética arrojada e discurso politizado, primeiro bloco afro baiano valorizou presença negra na festa baiana

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  • Laura Fernades

Publicado em 2 de março de 2019 às 06:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Mauro Akin Nassor

“Branco com roupa africana não causaria efeito nenhum”. A frase publicada no jornal CORREIO há exatos 40 anos, no dia 28 de fevereiro de 1979, foi dita por Antônio Carlos dos Santos, o Vovô do Ilê, presidente e fundador do bloco afro mais antigo de Salvador.  Na época, o então rapaz de 20 e poucos anos rebatia as acusações de “racismo ao contrário” e explicava por que a entidade criada cinco anos antes do jornal - que está comemorando quatro décadas de vida - só desfilava com pessoas negras. Os foliões do Ilê levando beleza à madrugada do centro da cidade no Carnaval de 1996  (Foto/Arquivo Correio) “Como abrir um bloco afro, que começou com o intuito de debater o racismo, se no Carnaval é ‘eu amo esse neguinho’ e na Quarta-Feira de Cinzas vai voltar tudo ao normal? Nosso povo sem saneamento básico, sendo preterido no emprego por causa da aparência, a polícia invadindo nossas casas...”, questiona Vovô hoje, aos 66 anos, ao relembrar a entrevista que deu no primeiro ano de funcionamento do jornal.

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Com tranquilidade na voz, o presidente do Ilê Aiyê conta que, por muito tempo, foi acusado de “apartheid ao contrário” e de criar “um gueto” na festa. “Isso só vai parar quando eu abrir cota para branco no Ilê”, provoca. Então pondera, deixando a dica: “Muita gente quer sair no Ilê porque é um bloco bonito e atrai muita gente famosa, mas tem uma série de outros blocos afros que as pessoas não dão atenção”. CORREIO registra a passagem do Ilê em 1989, quando o afro comemorou 15 anos (Reprodução/Arquivo CORREIO) Casa dos Negros   Longe do tom  de queixa, Vovô reforça que o Mais Belo dos Belos foi criado com ‘muita bravura e teimosia’, há 45 anos, e seu posicionamento firme serviu para consolidar uma atitude de autoafirmação negra em um Brasil que estava saindo da ditadura militar.  Inspirado pelos movimentos pelos direitos civis nos Estados Unidos, quase que o bloco se chamou Black Power. Mas, depois de escutar os conselhos da mãe, a ialorixá Mãe Hilda Jitolú, Vovô aceitou mudar para outro nome em iorubá, que também significa a “casa dos negros”.

“Imagine, naquele momento, um grupo de jovens negros da Liberdade, cantando ‘que bloco é esse’ e ‘eu sou lindo’? Os caras ficaram assustados. A gente chegou a ter ensaios suspensos e desfile acompanhado pela polícia”, lembra Vovô.

Deusas no Ilê Em 2008, o Curuzu se rendeu à beleza da top Naomi Campbell , que acompanhou a saída do Ilê (Foto: Antônio Queiroz/Arquivo CORREIO) Com pessoas cheias de atitude e ousadia, usando dread, trança, black e roupa colorida inspirada na cultura africana, o Ilê coleciona admiradores no mundo. Chegou até a ser chamado de “o mais top dos tops”, em 2008, quando uma das modelos mais famosas do mundo, Naomi Campbell, desfilou ao lado da Deusa do Ébano e teve sua beleza questionada por um folião.

“Na hora que eu saí com a Deusa para o caminhão, Naomi veio com a gente. Aí tinha um cara na rua que olhou para ela e disse: ‘Que rainha diferente... Que mulher feia!’”, gargalha Vovô, ao narrar o momento inusitado ao CORREIO. “Aí um repórter que estava na hora disse a ele que não era a Deusa do Ilê e explicou quem era Naomi Campbell. Aí o cara: ‘logo vi que essa não era a rainha do Ilê’”, completa, rindo.

Este ano, em sua festa de 45 anos, o Ilê celebra sua própria história e importância para o Carnaval baiano e para o movimento negro. Será mais um Carnaval inesquecível.  

Ilê Aiyê vai homenagar Mãe Hilda na Avenida Dez anos da morte de Mãe Hilda Jitolú serão lembrados pelo bloco afro (Foto de 2006 de Antônio Queiroz/Arquivo CORREIO)

Falar da matriarca da família Ilê Aiyê é fazer Vovô lembrar de uma mulher guerreira que fazia os filhos terem orgulho de sua negritude. Responsável pelo nome de batismo e pela linha filosófica do trabalho do Ilê, o que inclui as atividades pedagógicas e sociais, Hilda Dias dos Santos (1923-2009), a Mãe Hilda Jitolú, esteve presente no bloco desde o início, em 1975.

“Ela sempre acompanhou, desde o primeiro ano, quando a gente saía e não tinha nem carro. Falamos do bloco e ela disse que ia sair também, porque tinha medo que a gente fosse sozinho. Era época da ditadura, né? Aí ela dizia: ‘Se meu filho for preso, eu também vou’”, conta Antonio Carlos Vovô, sobre sua mãe biológica e de Vivaldo Benvindo, Dete Lima e Hildelice Santos, fundadores e diretores do bloco.

Mulher guerreira e de pulso firme, Mãe Hilda deixou a vida terrena há dez anos e a data será lembrada no desfile do Ilê Aiyê deste ano. Mais do que um bloco, o Ilê também celebra o trabalho social da Escola Mãe Hilda, que funciona há quase 30 anos como parte do Projeto de Extensão Pedagógica da entidade. Além de destacar aspectos da história afro-brasileira, a escola atua em conjunto com a Escola de Percussão Band’Erê e a Escola Profissionalizante.

“Minha mãe sempre falava: negro tem que ser onze, não é dez não. Tem que fazer as coisas bem feitas”, lembra Vovô que, quando era criança, ouvia piada na escola sobre sua mãe ser “feiticeira”. E quando o assunto era candomblé, Mãe Hilda não misturava as coisas, o que significava censurar as músicas do Ilê que ousassem expor a religião durante o Carnaval. Sagrado e profano não se misturavam.

“A religião, desde criança, a gente aprende a preservar e respeitar”, diz Vovô, convicto. “Em casa, a gente sempre ouvia: se você não se respeitar, não tiver atitudes corretas, não será ninguém. Ela nos ensinou a valorizar a negritude e a ter a família acima de tudo”, completa, orgulhoso.