Imagem de santa e urna funerária indígena são achadas sob o solo de Salvador

Escavações na Avenida Sete de Setembro chegam ao Relógio de São Pedro

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  • Da Redação

Publicado em 23 de novembro de 2019 às 05:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Arisson Marinho/CORREIO

Debaixo do asfalto da Avenida Sete de Setembro, está escondida a história de Salvador. Parte dela foi descoberta pelos arqueólogos que trabalham na obra de requalificação da via. São mais de 10 mil artefatos históricos que voltaram à tona com o trabalho nas duas primeiras etapas da obra, que começaram na Casa D’Itália e estão no Relógio de São Pedro.

Um dos achados foi uma imagem de Nossa Senhora - ainda não é possível confirmar se se trata da imagem do Rosário ou da Saúde. A peça foi identificada no sítio de escavação na altura do Relógio de São Pedro. A 300 metros do local, os trabalhadores ainda acharam a primeira urna de sepultamento indígena tupi-guarani na capital. Mais de 10 mil artefatos foram encontrados debaixo do asfalto da Avenida Sete de Setembro (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) A imagem da santa está há quatro dias no laboratório dos arqueólogos, onde são feitos os estudos mais aprofundados sobre a origem das peças, e ainda não é possível determinar de forma exata o período que o artefato foi produzido. O arqueólogo e coordenador geral do projeto de arqueologia da Avenida Sete de Setembro, Cláudio César de Souza e Silva, conta que a imagem deve ter sido soterrada entre o final do século 18 e início do século 19.“Entendemos como um descarte da imagem e a santa foi junto com os restos culturais”, ressaltou o arqueólogo.A peça foi descoberta entre ossadas dentro de um reservatório de água encontrado pelos arqueólogos. Três pedaços da imagem já foram identificados, resta apenas a cabeça da santa para montá-la.

Mesmo faltando uma parte, é possível afirmar que a imagem segue o estilo barroco. Entretanto, ainda pairam dúvidas sobre qual santa está representada no achado histórico.

"Pela pesquisa que fizemos, trata-se da Nossa Senhora do Rosário ou da Saúde. Está mais para a do Rosário porque identificamos uma bola na mão dela. Podemos dizer isso por algumas características que a santa nos remete e pelas características da pesquisa inicial”, afirmou Cláudio.

Ele disse ainda que a imagem pode ter tido uma vida útil antes de ser soterrada. A hipótese dos arqueólogos é de que a peça tenha sido parte da igreja de São Pedro, que existia onde agora é o relógio de mesmo nome.

A igreja que ficava no local também seguia o estilo barroco, afirmou o historiador Rafael Dantas. O templo católico foi demolido em 1913 para a construção da Avenida Sete pelo então governador J.J.Seabra. Antes da igreja, existia a capela de São Pedro no local.

“Se a peça é de barro, existe a possibilidade de ser antes da igreja. Mas não se pode afirmar, só tem como afirmar com estudos detalhados para datar a peça”, explicou o historiador.

Sepultamento tupi-guarani Com a descoberta da imagem, reapareceu a santa escondida há cerca de 300 anos debaixo de uma das avenidas mais importantes da capital baiana. Pode parecer muito tempo, mas artefatos ainda mais antigos estão soterrados na região.

O grupo de arqueólogos que trabalham na obra já retirou parte de uma urna funerária de índios tupi-guarani que pode datar do período pré-colonial, ou seja, antes da colonização portuguesa no Brasil. Cláudio explicou que a peça de cerâmica retirada da urna pode datar desde o século 14 até o século 16. Todo o sepultamento, com os ossos, permanece enterrado na via.

A peça é a única encontrada por arqueólogos na capital baiana capaz de confirmar os relatos históricos da existência de aldeias indígenas no entorno da fortaleza de Salvador.“A arqueologia ainda não tinha encontrado um vestígio material da existência desses índios. A partir da sondagem encontramos um sepultamento indígena tupi-guarani”, explicou o coordenador.Segundo Cláudio, se trata de uma tampa e um vasilhame com um corpo sepultado. Ele explicou que geralmente este tipo de sepultamento é secundário e feito com pessoas importantes. “O achado pode trazer um conhecimento maior sobre o tipo de cerimônia de sepultamentos”, afirmou.

Até agora foram encontrados os vestígios da urna, mas a equipe ainda está na fase de resgate e retirada do material. Segundo o arqueólogo, a tradição tupi-guarani está associada entre mil e 900 anos atrás, sendo a mais recente no período pré-colonial.

O historiador Rafael Dantas explicou que a urna tem grande representatividade por ressaltar o papel da população indígena na construção de Salvador.

“No entorno de Salvador, em 1549, tínhamos aldeamento. Os índios ajudaram na construção da cidade de Salvador. A descoberta desse sítio é muito significativa para entender o processo de antes da fundação da capital”, disse.

Pedaços de história Apesar destas descobertas importantes, o arqueólogo ressalta que não existem prioridades para a pesquisa. O importante é encontrar artefatos capazes de contar a história de uma época.

Dentre o que foi encontrado no local, estão ossadas, como mandíbulas e dentes, garrafas de vidro, cerâmicas, uma bola de canhão e uma chave. Entre os artefatos descobertos estão garrafas de vidro, cerâmicas e até uma bola de canhão (Foto: Arisson Marinho/CORREIO) Arqueologia das obras Contar a história de Salvador é contar a história do Brasil, em especial, dos primórdios do país. Por isso, a cidade tem grande potencial arqueológico. “Se cavar tudo, descobre muita coisa. Ao longo de todo o trecho da Avenida Sete, tivemos uma ocupação humana, tanto na fundação da cidade e na ocupação do território”, afirmou Dantas.

Por esse motivo, é de extrema importância se atentar ao aspecto arqueológico para fazer obras na cidade. "Temos que olhar isso como sendo patrimônio brasileiro e mundial”, ressaltou.

O secretário municipal de cultura e turismo, Claudio Tinoco, afirmou que a prefeitura já sabia do potencial arqueológico da área e esperava encontrar referências históricas com a obra na avenida.

“A gente sabe que essa região é a origem da cidade, a instalação da cidade. É um avenida centenária. Mesmo assim, o que foi encontrado supera as nossas expectativas de achados, como fragmentos da urna que nos remetem para o período pré-colonial, que mostra a possível presença do povoamento da parte alta da cidade por povos indígenas”, afirmou.

Ao passar pela intervenção para a construção da nova Avenida Sete, alguns materiais teriam se perdido. “Em Salvador, onde escavar e fizer um furo pode estar destruindo o passado. A obra de JJ Seabra passou na avenida e foram seis metros de demolição para alargar a via”, pontuou o arqueólogo.

Para Tinoco, as pessoas afetadas pela obra devem compreender que o procedimento é importante. “Na historicidade, se os elementos não servirem no futuro não tem sentido. Enterrados, eles deixariam de ser conhecidos. Devemos valorizar esses aspectos em detrimentos de um aspecto que é o transtorno, uma intervenção que se prolonga ou necessita de um ritmo diferente e mais cuidado que outras obras”, ressaltou o gestor da pasta.

Para que a história não se repita, Tinoco afirmou que uma intenção da prefeitura é criar um memorial para o que é achado na obra. Por enquanto, as peças vão seguir para o Centro de Antropologia e Arqueologia de Paulo Afonso.

Requalificação da área As obras de requalificação da Avenida Sete de Setembro e da Praça Castro Alves começaram em maio de 2019 - três meses depois do início da prospecção arqueológica na via. A intervenção deve durar um ano. O prazo para o fim da intervenção é maio de 2020.

Dentre as mudanças estão a instalação de rede de água e de esgoto secundária, a manutenção do sistema de drenagem, novo asfalto, alargamento da calçada, modernização da iluminação e a instalação da fiação de telefone debaixo da via.

Serão 1,5 km de melhorias, entre a Casa D'Itália e a Praça Castro Alves. Até agora, a obra já chegou ao Relógio de São Pedro - restam apenas duas etapas para concluir as mudanças.

Durante o trabalho de sondagem arqueológica, foram 108 pontos de intervenções ao longo da via. O número é 65% maior do que o previsto inicialmente, de 65 furos.   As obras na Avenida Sete e Praça Castro Alves foram financiadas pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), através do Programa Nacional de Desenvolvimento do Turismo (Prodetur), e contam com aproximadamente R$ 20 milhões em investimentos.

Visita aos achados Logo após a visita da reportagem ao canteiro de obras da requalificação da Avenida Sete de Setembro e da Praça Castro Alves, estudantes do Colégio Estadual Ypiranga chegaram ao local para conhecer as descobertas arqueológicas feitas na região. A ida dos jovens ao local faz parte do projeto de educação patrimonial.

No laboratório de arqueologia, o grupo de estudantes aprendeu sobre as peças que foram achadas na obra.

Para marcar uma visita aos achados arqueológicos da área, o interessado deve ir ao canteiro de obras, que fica na Ladeira da Montanha. Lá, é possível ver a disponibilidade de horários para visitar o local e agendar a ida acompanhada de um arqueólogo.

*Com orientação do chefe de reportagem Jorge Gauthier