Inspirada por legado do Padre Pinto, festa de Reis resiste ao esvaziamento

Com lavagem, feijoada e personagens afrobrasileiros, festejo tenta retomar tempos áureos

  • Foto do(a) author(a) Alexandre Lyrio
  • Alexandre Lyrio

Publicado em 6 de janeiro de 2019 às 21:08

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Evandro Veiga/CORREIO
.

“Ele era um artista”, disse um rapaz. “Ele era iluminado”, elogiou uma senhora. “Ele era um gênio”, destacou uma moça. “Ele era tudo pra gente”, definiu uma vendedora. Ele, no caso, é José de Souza Pinto, o Padre Pinto, ex-pároco da Igreja da Lapinha, afastado da paróquia há 11 anos. Desde então, a Festa de Reis, que acontece entre os dias 2 e 6 de janeiro, enfrentava um crescente esvaziamento.

Acontece que as frases sobre Padre Pinto, ditas espontaneamente por seus “viúvos” e “viúvas”, mostram muito mais do que a importância que o religioso um dia teve para a comunidade. Na verdade, os conceitos do padre são agora inspiração para a retomada da festa. “Ele agora é a nossa resistência”, disse Elisabete Correia, 65 anos, que neste domingo, dia de Reis, vendia salgados na frente da igreja para arrecadar fundos para a paróquia.  

Algumas iniciativas têm sido feitas para reforçar e manter o público presente nos dias de terno, que teve como ponto auge a noite de sábado (5). Até mesmo uma lavagem, com a presença de baianas e personagens da cultura popular misturados à sagrada família (menino Jesus, Maria e José), é realizada desde o ano passado. O atual pároco, padre Edilson Bispo, apoiou a iniciativa da lavagem, que acontece antes do desfile oficial.

Este ano, no total quatro ternos, incluindo o Terno Anunciação, da Lapinha, desfilaram pelas ruas da Liberdade e se apresentaram no palco. Ainda muito longe da profusão do passado, ao menos o público mostra que está voltando a se interessar pela festa. “A gente sentiu que nos últimos dois anos a coisa tá retomando”, garante Otávia Veiga Malheiros, 68 anos, que integra o terno e nasceu em uma casa ao lado da igreja da Lapinha.

[[galeria]]

Apesar do estilo diferente do Padre Pinto, Edilson, que assumiu há dois anos, se mostra um religioso igualmente aberto às manifestações populares. “Misturamos personagens bíblicos aos da cultura afrodescendente, essencialmente baiana”, diz o padre. “As iniciativas que estamos tomando têm dado resultado. Nossa intenção é que as pessoas venham à Lapinha para participar não só da festa religiosa, mas também popular”, disse padre Edilson. “Essa festa marca, registra e conserva nossa cultura e nossa identidade. Todos devem participar”.

Além dos antigos integrantes do terno, a festa de Reis da Lapinha conta com jovens dispostos a manter a festividade viva. Gerações que, época do próprio Padre Pinto, viveram a infância dentro do terno e hoje alimentam paixão pelos festejos. O estudante de pedagogia Andrei Nascimento, de 19 anos, não só é o “animador” (responsável por puxar o terno) como não mede esforços para manter a festa viva.

Durante o ano inteiro, Andrei realiza quermesses e feijoadas colaborativas para arrecadar fundos para o terno Anunciação, que há 27 anos foi criado por Padre Pinto para receber os demais ternos que participavam da festa. “Nosso terno ficou quatro anos sem ir pra rua depois da saída do Padre Pinto. É uma festa que ultimamente vinha sendo desvalorizada, mas estamos tentando voltar com tudo”, afirma Andrei.

“Padre Pinto fazia a junção do profano com o religioso muito bem. Padre Edilson está tentando fazer essa articulação”, diz o jovem. “São estilos diferentes. Digamos que Padre Pinto era mais efusivo, mas Padre Edilson também tem um grande carisma”, compara Dona Otávia. A falta de apoio dos órgãos públicos também está no discurso de Andrei, Elisabete, dona Otávia e do próprio padre. “Este ano a prefeitura deu uma ajuda, montou o palco, colocou banheiros químicos, mas ainda é pouco”, diz Andrei.

Enquanto a ajuda governamental não chega, os próprios integrantes do terno, fiéis da igreja e a comunidade pensam soluções. Este ano, além da lavagem, uma feijoada após a missa deste domingo arrecadou mais dinheiro. O prato era R$15. Ainda neste domingo, o Terno da Anunciação iria fazer uma apresentação extra no Largo da Lapinha. “Mais uma ideia do padre Edilson. Ele quer colocar o terno nas ruas para as pessoas verem, assim como o nosso amado Padre Pinto”, explica dona Otávia.   

Obras de arte

Aliás, muita coisa na igreja e arredores lembra o antigo padre. Suas obras de arte estão por toda a parte. Nas paredes da igreja, três quadros enormes foram pintados pelo ex-pároco. No próprio Largo da Lapinha, em frente à igreja, o monumento em forma de estandarte foi concebido por ele, assim como o estandarte vermelho do Terno de Reis Anunciação.

Nos fundos do espaço comunitário, um enorme Cristo negro, índio e branco, também construído por Padre Pinto, representa a miscigenação. O padre foi afastado da paróquia após uma performance durante os festejos de 2006. Ele dançou em homenagem a Oxum, que no candomblé é a orixá da beleza e das águas doces. O fato tornou-se nacional, apesar de não ser a primeira vez que Padre Pinto exaltou o sincretismo em suas apresentações. A Arquidiocese de Salvador decidiu pelo afastamento do padre após 33 anos à frente da igreja da Lapinha.

Segundo Márcia Laís, responsável pela juventude da igreja da Lapinha, Padre Pinto hoje celebra missas na Igreja de São Caetano. Ele estaria vivendo na sede da Sociedade dos Vocacionistas, ordem da qual faz parte. “Fazemos questão de visita-lo nos seus aniversários de nascimento e ordenamento. Devemos muito a ele”, afirma Márcia.

O Terno de Reis, manifestação cultural que representa o momento em que os reis magos vão a Belém levar presentes ao Menino Jesus, alcançaram uma dimensão popular no Brasil a partir do século XVIII. Certamente, as festas da Lapinha já foram das mais alegres do país. “Padre Pinto ficou conhecido por reestruturar os festejos e conferir a eles aspectos da cultura local”, explica Márcia.