James Martins: De Caymmi a Kannário, a música da Bahia é uma base só

Não por acaso, o Tropicalismo é coisa de baiano

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  • Da Redação

Publicado em 15 de janeiro de 2019 às 02:01

- Atualizado há um ano

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“A Bahia não é uma cidade de contrastes. Não é não. Quem pensa assim está enganado. Tudo aqui se interpenetra, se funde, se disfarça e volta à tona sob os aspectos mais diversos (...) De contrastes seria se fosse uma cidade com coisas que nada tem que ver com a outra, mas aqui tudo tem que ver”, escreveu um dia o pintor Carybé. E o mesmo pode ser dito da música: a base é uma só. Aqui tudo tem que ver, e se funde, se interpenetra. 

Pois nestes últimos 40 anos tornou-se cada vez mais explícito o tal elemento comum que pulsa em nossas diversas manifestações musicais. Se antes havia as turmas conflitantes do Axé e do Rock, hoje nenhum roqueiro precisa mais fingir que não sabe sambar. Mas já o fato de o movimento Axé Music ter sido batizado, ainda que jocosamente, por um roqueiro, é bastante revelador. The Rock = Arrocha. Raul Seixas cantando  Sessão das Dez: “inocente, puro e besta”.

Em 1979, o Badauê desfilou seu primeiro Carnaval. Era um afoxé pop, diferente, um neo-afoxé, como disse Antonio Risério. Talvez esteja nele a chave do processo (impossível de esmiuçar aqui) que tornou o pagodão do Psirico (via BaianaSystem) uma febre entre universitários e que nos permite unir, sem assombros, Igor Kannário e Dorival Caymmi.

CLIQUE AQUI E VEJA ESPECIAL COMPLETO CORREIO 40 ANOS+ (Foto: Arquivo CORREIO) É que, na Bahia, quando vai se ver, o novo ritmo do Verão é um toque ancestral multissecular. João Valentão cantando: “Tá ligado que eu sou barril dobrado!”. Aliás, o próprio Caymmi, em artigo raro de 1969, disse que “a música popular da Bahia nasce, com tranquilidade, no meio da rua. É a cantiga de roda que todo mundo canta, anônima e universal na sua força criadora”. E também que sua influência “é irresistível e aparece até na música erudita, como na que Radamés Gnatalli fez para harpa e orquestra baseado no pregão Flor da Noite”. Mas também vale o contrário: É o Tchan vindo de Beethoven do tchan-tchan-tchan-tchan. Trazendo a chula pro trio.

Não por acaso, o Tropicalismo é coisa de baiano. De certa forma, o movimento era uma tradução do Carnaval de Salvador para (i. e., estrangeiros) não-baianos: tratava-se não apenas de trazer a guitarra elétrica para a MPB, mas de tê-la inventado, naturalmente, para atender as nossas próprias necessidades folionas e de expressão. Essa mesma guitarra-baiana que hoje, junto aos sound systems, batiza o conjunto (tão nativo quanto alternativo) cujo vocalista preto se chama Russo. Não se tratava de aderir ao rock ’n roll, mas de se reconhe/ser roquenrol. Assim como do rock, enfim, reconhecer-se baiano. Roque? 

Hoje o lance está consolidado. O visual de Igor Kannário (e algumas de suas atitudes) lembra um punk. La Fúria é um nome à la Rage Against… – ÀTTØØXXÁ, Piatã! O Axé criou um forte mercado local e deslocou o eixo da produção de estrelas. E se Dorival precisou pegar um Ita no Norte para ir pro Rio morar, o Príncipe do Guetto só mudou de bairro. E só porque quis, e ganhou grana. Por outro lado, foi o enfraquecimento desse mesmo mercado que possibilitou o surgimento de inúmeras outras expressões (outrora sufocadas por ele) tão baianas como e que, além de tudo, realimentam o próprio Axé: de Larissa Luz a Baco Exu do Blues.

Baco, aliás, questionado sobre suas influências, cita logo Jorge Amado, o romancista. Mas também o letrista de É Doce Morrer no Mar, de Caymmi. A base é uma só. De Mestre Bimba ao Bim Bom. Entre Rogério Duprat e Edith do Prato. Letieres Leite & Orkestra Rumpi(drum-machine)lezz. 

É preciso lembrar que Paulinho Camafeu é autor de Que Bloco É Esse? (1975), a canção que lançou os blocos afros, e coautor de Fricote (1985), que estourou a Axé Music. E que, se rock 'n roll é uma expressão de cunho sexual, algo como rala-e-rola, essa mesma lubricidade está no cerne do samba de roda que hoje rala a tcheca no chão. Moraes Moreira cantando: “Quem é do roçado ralando coco se dá melhor”.

Claro que o que mais falta aqui é citar nomes. Saulo cada vez que abre o leque e se afasta do Axé, mais se torna o grande representante do Axé atual. Daniela, a Rainha Má, já era isso. Brown, o Cacique, idem. Luiz, o pai, igual. Falta(va) o mercado sacar. São quatro décadas de decantação de um sentimento para os mais jovens não terem grilo nenhum em suas buscas. Em seus sons. Em seus sims. Mas todos os nomes estão aqui, nessa trama que só pretende isso mesmo: incluir. De Caymmi a Kannário: Tudo nosso / Tudo deles.

* James Martins é poeta. Fez pesquisa e roteiro para o filme "Axé - Canto do Povo de um Lugar". É apresentador e comentarista a Rádio Metrópole.