Uma vila de cerca de 480 habitantes na Chapada Diamantina, marcada por construções de pedra, guardiã de belas paisagens e de uma parte da história do Brasil. Essa é Igatu, distrito de Andaraí, conhecida como a ‘Machu Picchu Baiana’. Mas, todo esse cenário, mesmo tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 2000, está ameaçado. O crescimento da vila, a movimentação turística, as intervenções nas construções antigas e as novas obras colocam em risco o patrimônio. Por isso, denúncias levaram o Ministério Público da Bahia a intervir e um Projeto de Lei foi criado para impor regras para as alterações paisagísticas realizadas na vila. O texto foi aprovado por unanimidade na segunda-feira (06) e sancionado nesta quarta (08), pela prefeitura de Andaraí.
O artista visual Marcos Zacariades, 60 anos, 22 dos quais morando em Igatu, é fundador da Galeria Arte e Memória e comemora a aprovação da lei. “Dá uma segurança para quem quer construir tanto moradias quanto comércios e atende à preservação do território. Porque chega a ser acintoso para um lugar tão bonito quanto Igatu um tipo de intervenção que não estabelece nenhum tipo de diálogo, que parece que tirou de um bairro desenvolvido de Salvador e colocou aqui”.
Segundo Zacariades, que acompanha a história de Igatu desde 1980, a ocupação desordenada passou a ser mais evidente a partir de 2011. “Essa ocupação, até o início dos anos 2000, aconteceu de forma tranquila, gradativa e orgânica. Já na segunda década, a partir de 2011, a ocupação foi mais intensa e não existiam regras definidas para regular isso. A cidade começou a ser descaracterizada, a sua identidade de cidade de pedra foi se perdendo porque a paisagem foi prejudicada”, acrescenta.
A nova lei é fruto de acordos propostos pelo Ministério Público da Bahia (MP-BA) e assinados no dia 26 de outubro. Por meio da Promotoria Regional Ambiental do Alto Paraguaçu, representada pelo promotor de Justiça Augusto César Carvalho, o MP realizou um estudo do local e propôs soluções. O relatório final do estudo, que levou quatro anos para ficar pronto (considerando o atraso provocado pelas restrições impostas pela pandemia), tem mais de 1.500 páginas. “Estamos prevendo todas as hipóteses para evitar danos de ocupação desenfreada que vemos em diversas cidades históricas”, disse o promotor.
Segundo Carvalho, o estudo foi iniciado após denúncias de deterioração do patrimônio material. Um inquérito civil público foi aberto para apurar e investigar o caso. “Fizemos uma investigação preliminar que apontou uma perda significativa de acervo do patrimônio material tombado de Igatu. Também identificamos a ausência de políticas públicas e de fiscalização. Fizemos um levantamento de qual era a degradação, quais eram as causas e percebemos uma ausência de estudo, de parâmetro, de legislação. Então as intervenções danosas iam sendo feitas sem maiores bloqueios”, diz o promotor.
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Ruínas das casas da época do ciclo do diamante em Igatu lembram vestígios de antigas civilizações (Foto: Victor Uchoa/Arquivo Correio) |
Preservação do patrimônio
O prefeito de Andaraí, Wilson Cardoso, defende a preservação do patrimônio e diz que a contribuição do MP com o estudo foi fundamental. “Preservar é garantir o futuro. A gente quer levar o nome de Andaraí para o mundo através de Igatu. É uma cidade cheia de belezas naturais, uma história incrível e muito potencial para o turismo. E os moradores de Igatu serão os primeiros beneficiados, estamos trabalhando para que, com o crescimento de Igatu, eles cresçam também”, coloca.
Para garantir a preservação, através do Termo de Convenção Para Salvaguarda do Patrimônio Material e Imaterial de Igatu, o MP recomendou que o município evite: construções destoantes do conjunto histórico tombado, em especial, as grandes construções que impactam negativamente na paisagem; intervenções inadequadas no patrimônio geomineiro, em especial nas ruínas de habitação garimpeira, que promovam seu completo desaparecimento; intervenções inadequadas que promovam a destruição dos vestígios arqueológicos; abertura de ruas, becos, vielas e afins que coloquem em risco a unidade urbana/ambiental; o alto índice de parcelamento e ocupação do solo, a fim de garantir a preservação da geomorfologia, os recursos hídricos e a vegetação do sítio; e o uso inadequado e ocupação irregular dos espaços públicos, bem como o bloqueio das trilhas, caminhos, becos e acessos tradicionais que possam coibir práticas tradicionais de sua população.
A reportagem teve acesso ao projeto da lei aprovada, que prevê que qualquer tipo de intervenção, pública ou privada, deverá evitar a destruição ou degradação das características dos elementos naturais como morfologia do terreno, vegetação e recursos hídricos, bem como dos elementos de significância cultural que compõem o patrimônio geomineiro material e imaterial do distrito de Igatu. Todos os projetos estão sujeitos à aprovação dos órgãos responsáveis pelos tombamentos Federal e Estadual.
Também há regulamentação específica para escavações e terraplanagens, obras de muros e contenções, intervenções nos recursos hídricos, bem como obras de drenagem e esgotamento sanitário; arruamentos, ruínas de habitações garimpeiras, obras em edificações existentes e obras para construções novas.
As edificações em bom estado deverão ser conservadas e são passíveis de ações de manutenção e/ou restauração, sendo terminantemente proibidas a mutilação ou descaracterização. As edificações que perderam parcialmente os aspectos formais, tipológicos, construtivos, artísticos e históricos, devem ser resgatadas por meio de ações de conservação. As edificações ou elementos cuja presença desqualifica, descaracteriza ou impacta negativamente o setor onde se localizam, devem ser substituídas.
Para os projetos de obras novas ou de acréscimos, que venham interferir na visibilidade e ambiência do local tombado ou que possam comprometer a paisagem, deverá ser apresentado estudo específico referente à sua interferência no local, com simulação sobre fotografias tiradas de pontos de visibilidade.
O projeto também prevê a setorização de Igatu, que é a divisão do território do distrito em 12 setores nos quais; as regras são diferentes para cada um deles. Os setores são: (1) Frontispício Parque Luís do Santos; (2) Frontispício Igreja, (3) Morrão e Galeria; (4) Frontispício Acesso a Vila; (5) Frontispício Madalena; (6) Frontispício Cruzeiro; (7) Barriguda; (8) Verruga; (9) Rua da Forca; (10) Bambolim; (11) Manga do Céu; (12) Alto da Estrela; (13) Centro.
Nos setores 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9 e 11, as fachadas devem obrigatoriamente seguir as seguintes regras: a fachada principal deverá ser executada em alvenaria de pedra ou ser revestida em pedra; as fachadas e empenas que causem impacto paisagístico no conjunto urbano deverão ser preferencialmente executadas em alvenaria de pedra ou ser revestida em pedra; as demais fachadas poderão ser rebocadas e pintadas com tinta fosca em cor pastel.
No setor 12, as construções deverão ter suas fachadas e empenas rebocadas e pintadas com tinta fosca em cor pastel. Para os fechamentos portões, janelas, portas e similares não será permitido material reflexivo como vidro, metal e similares, ou o uso de tintas com brilho;
Nos setores 2, 3, 6, 9, 11 e 12, as fachadas principais deverão respeitar a proporção de cheios e vazios das construções contíguas mais antigas, onde cheios são as massas de parede e vazios são as aberturas de portas e janelas.
O setor 1, Frontispício Parque Luís do Santos, é uma porção do território que coincide com a área do Parque Urbano de Igatu. Por isso, o Projeto de Lei diz que o setor é uma área não edificável, exceto para construções de apoio ao Parque e deverá ser regulamentada através de um Plano de Manejo.
Para todos os setores, a altura máxima da edificação incluindo a cobertura deverá ser: para as edificações cuja cobertura é de telha cerâmica tradicional tipo calha e canal, o gabarito máximo é de 5,80m; para as edificações que utilizem cobertura parcial ou total do tipo teto plano/verde o gabarito máximo do mesmo deverá ser de 3,30m. A altura das fachadas principal e posterior deverá ser no máximo de 3m.
Além disso, dentre outras resoluções, não será permitido o acampamento ou instalações de barracas de camping, motorhome e outras modalidades de hospedagens em vias públicas. Também estão previstas regras para coibir a poluição visual e sonora e placas informativas sobre a história de Igatu devem ser instaladas ressaltando a importância da conservação do local.
O descumprimento da lei sujeita o infrator ao pagamento de multa, conforme código de tributos do município, e mais: na reincidência, a multa será aplicada em dobro. O valor previsto deverá ser reajustado anualmente, pelos índices oficiais. Cabe ao Município, através de seus órgãos competentes, a adoção de ações preventivas e de fiscalização, visando ao cumprimento do disposto na lei.
Para que a população participe ativamente da implementação da Política Municipal Conservação, a prefeitura proverá a prestação de assistência técnica pública e gratuita no âmbito da arquitetura, engenharia e urbanismo para a população de baixa renda do Distrito de Igatu.
O Iphan foi procurado para explicar de que maneira vem atuando para conservar e fiscalizar o patrimônio tombado, mas não respondeu ao contato.
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Construções de pedra tornam Igatu um local único e bastante visitado (Foto: Victor Uchoa/Arquivo Correio) |
Acordo prevê transformação de vila em unidade de conservação
No acordo com o Ministério Público da Bahia, está prevista a necessidade de implantação e regularização da Unidade de Conservação Parque de Igatu, com previsão ainda da elaboração de um plano de manejo e instituição de um conselho gestor.
Também ficaram previstos outros dois Termos de Ajuste de Conduta. Um deles é sobre o Sistema Municipal de Gestão Ambiental, com o objetivo de regularizar o Sistema Municipal de Meio Ambiente (Sismuma). A vila de Igatu deverá adequar a gestão de política ambiental às normas federais. Campanhas de educação ambiental devem ainda ser realizadas.
Por último, está o compromisso de regularização das atividades de gerenciamento dos resíduos sólidos urbanos. O objetivo é promover a destinação ambientalmente adequada dos resíduos sólidos, que inclui a reutilização, a reciclagem e a compostagem. A adequação deverá seguir a lei nº 11.445/2007, que estabelece as diretrizes nacionais para o saneamento básico, bem como da lei 12.305/2010 que institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos.
Cidade de pedra surgiu com o ciclo do diamante
Igatu é distrito da cidade de Andaraí, na Chapada Diamantina. O povoado possui um casario histórico de pedra, do século XIX, resquício da época do Ciclo do Diamante na região. Por essa característica, é conhecido pelo apelido de Machu Picchu Baiana, em referência às ruinas da histórica cidade dos incas, no Peru.
Durante a fase do garimpo de diamantes, a então vila de Igatu chegou a ter mais de 9 mil moradores. A maioria dos garimpeiros construía as casas utilizando as pedras abundantes no local, em uma espécie de construção sem argamassa.
“No auge do ciclo diamantino, Igatu chegou a ter cinema e um comércio desenvolvido. Veio gente de todo canto, principalmente do Norte de Minas Gerais. A pedra é a base da atividade garimpeira e era o que se tinha para a construção das casas. Igatu se tornou um espaço onde a pedra se impôs como linguagem arquitetônica”, diz Marcos Zacariades, morador de Igatu, artista visual e fundador da Galeria Arte e Memória de Igatu.
Com o declínio da produção de diamantes, a cidade praticamente foi abandonada, restando casas fechadas, ruínas e poucos moradores. Depois de abandonadas, as casas viraram ruínas que lembram as construções de civilizações remotas. Hoje, Igatu tem 480 moradores, segundo Amarildo dos Santos, 57 anos, que faz o censo manuscrito do local por conta própria.
“O auge de Igatu durou de 1844 até mais ou menos o final da guerra, em 1945. Depois disso, em pouco tempo a cidade ficou vazia”, conta Zacariades. Essa fase durou até os anos 1980 e, a partir do final da década, deu-se início à chegada de novos moradores e a um movimento turístico. “Aí foi o início de um novo momento para a vila. Nessa época, Igatu estava intacta e foi isso que me atraiu para cá. Um lugar tão precioso precisaria de investimentos e cuidados especiais e foi aí que eu decidi abrir a galeria”, diz o morador.
Atualmente, Igatu atrai visitantes de todo o mundo e o turismo é sua principal atividade econômica. A vila, que é um local propício ao turismo histórico-cultural, além do turismo de natureza e de aventura, também é conhecida por ser a terra natal do escritor Herberto Sales, que imortalizou o coronel Aureliano Gondim no romance Cascalho.
*Com a orientação da chefe de reportagem Perla Ribeiro