Lendário point de hollywoodianos na Bahia, bar Berro D'Água reabrirá na Barra

Local era frequentado por grandes artistas e manterá tradições

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  • Alexandre Lyrio

Publicado em 4 de agosto de 2019 às 06:30

- Atualizado há um ano

. Crédito: Betto Jr/CORREIO

- Seu Charles! Seu Charles! 

Os gritos vinham da balaustrada. No final dos anos 70, em uma tarde qualquer da década mais doidona que o mundo já viveu, Charles Pereira, conhecido como Charles Mocó, usava uma sunguinha de laterais bem cavadas e curtia um pôr do sol no Porto da Barra. Foi quando percebeu que alguém clamava por seu nome. 

- Tem um pessoal lá no bar te procurando! Disseram que não vão embora sem falar com o senhor!

O mensageiro era o garçom Nelson Peixoto, o Nelsinho, convocando o chefe para receber os clientes. Mocó subiu as escadas do Porto, atravessou a rua, caminhou alguns metros e, de sunguinha e tudo, deu de cara com “o pessoal”: Glauber Rocha, Antônio Pitanga, Vinícius de Moraes, Tom Jobim e outros artistas. Nelsinho, o lendário garçom do Berro (Foto: Acervo pessoal) Esse era o Berro D´Água, onde artistas da época tomavam drinks com cabeludos anônimos do Porto. Lá, gente comum era tratada como famosa (e vice-versa), e a Bahia, o Brasil e o mundo - ao menos os que não eram caretas - se encontravam para celebrar a vida e bolar estratégias de sobrevivência ante a repressão. 

É esse Berro que, com toques de modernidade, mas com o mesmo espírito libertário, será reaberto na próxima terça-feira (6), no mesmo Porto da Barra - não exatamente no mesmo endereço. O bar atual ganhou vista para o mar e será ao lado do restaurante Pereira.

Aos 73 anos, depois de quase 30 à frente de bares e restaurantes na Europa, Charles tem mostrado energia de menino para reviver as alegrias e loucuras do Berro, que no passado ombreava com a Fundação Cultural e o Icba como os principais centros de arte e boemia da cidade. 

“A gente quer, como naquela época, bater de frente com a cultura careta. O novo Berro estará de portas abertas para os artistas e o público alternativo, indo de encontro a tudo o que é convencional”, promete. Novo Berro D'Água reabrirá as portas nesta terça-feira (6) (Foto: Betto Jr/CORREIO) As regras da casa continuarão as mesmas. No Berro D´Água, sempre foi proibido pedir autógrafo aos artistas que o frequentavam. Esta lei só foi quebrada uma vez, pelo próprio dono, quando ele não resistiu e tietou a cantora argentina e líder comunista Mercedes Sosa. “Era proibido pedir autógrafo, mas eu pedi”, ri Charles. “No Berro almocei com Tom Jobim e jantei com Mercedes Sosa”, gaba-se ele (com toda razão). Da mesma forma, era regra que, no bar, não tocassem músicas dos famosos que estivessem presentes. “A gente não queria soar como puxa-saco. No Berro, o artista se sentia à vontade. E assim continuaremos a ser”, avisa. 

Naquela época, quem tinha cartaz no bar eram artistas novatos, muitos ainda estudantes da Escola de Teatro ou de Belas Artes. Charles diz que lançou Bel Borba, Juarez Paraíso, Maria Adair, Nildão e outros. “Os medalhões eram clientes”.

Aliás, um dos desafios do novo Berro D´Água é justamente voltar a ser o local que artistas frequentavam após se apresentar em Salvador. “Praticamente todos os artistas que faziam shows aqui, na época, terminavam a noite no Berro. Lugares como esse e o Beco dos Artistas (no Garcia) fazem falta. Estávamos órfãos de um espaço de encontro de quem faz arte e cultura”, recorda o diretor de teatro Fernando Guerreiro, frequentador assíduo do antigo bar. 

Estrelas Quando se fala de estrelas, estamos falando de todos os quilates. Numa noite qualquer, sem avisar, quem apareceu por lá foi o ator hollywoodiano Robert De Niro, que suou para entrar no Berro. A casa estava lotada e ele sofreu uma horinha do lado de fora para comemorar seu aniversário. Sim, porque no Berro ninguém furava fila no grito. “Podia ser o papa”, diz Charles.   Vinicius de Moraes e o artista plástico Luiz Jasmin (Foto: Divulgação) Mocó também lembra que outra estrela de Hollywood, Michael Douglas, também comemorou aniversário no bar. E assim passaram por lá de Pelé a Vinicius de Moraes, de Nilda Spencer a Caetano Veloso, de Luís Melodia a Gilberto Gil. Ninguém estava livre de bater a testa no teto ao subir ou descer as escadas que dava acesso ao sobrado.  “O Berro era nosso Baixo Leblon, nosso Baixo Gávea, como são esses lugares no Rio. Era o ‘Baixo Salvador’, onde se reunia o pessoal underground de cinema, teatro, música. Um lugar incrível para encontrar amigos e comer”, definiu Gil, direto da Europa, onde faz turnê e, por isso, não virá à reabertura. Aliás, não haverá festa de inauguração. Charles explica que o espaço não comportaria tantos convidados. “São muitos amigos!”. A decisão, então, foi simplesmente abrir as portas do bar. Se a casa estiver cheia, quem chegar vai esperar com paciência, como nos velhos tempos.

Antes mesmo do seu retorno, a importância do Berro para a cultura da década de 1970 foi eternizada no Livro Anos 70 Bahia, lançado em 2017. A publicação dedica um dos seus capítulos ao bar. “O Porto da Barra era o ‘start’. Tudo começava no Porto e terminava no Berro D´Água!”, diz o produtor cultural Sérgio Siqueira, um dos autores do livro e o maior incentivador desta reabertura. “De certa forma, os anos 70 estão voltando de várias maneiras. Charles é inquieto e mostra que tem a mesma coragem de sempre”, completa.  Irreverência dos frequentadores do Berro (Foto: Divulgação) O livro conta que todos saíam da praia para o bar, onde ficavam até altas madrugadas. “O Berro não tinha hora pra fechar. A gente amanhecia na mesa do bar”, confirma o jornalista Osmar ‘Marrom’ Martins, repórter especial e colunista do CORREIO, outro grande incentivador do retorno do Bar. 

Jazz club Charles Mocó está ciente do desafio de atrair não só a velha, mas a nova guarda. Por isso, o novo Berro vai ter um mural com fotos antigas, como as que você vê nessa página, mas terá um conceito diferente. Ele voltará com a alma de um clube de jazz dos anos 40/50, mas continuará sendo palco para lançamentos de artistas, livros e stand ups.  Bar manterá tradição, garante Charles (Foto: Betto Jr/CORREIO) Mais do que conquistar novos públicos, o Berro luta para tentar fazer da Barra um bairro noturno, como antigamente.“O trânsito engarrafava do Cristo até o Porto. A noite baiana nas décadas de 70, 80 e início de 90 era fervilhante. Todo mundo se divertia, ficava louco e ainda trabalhava no dia seguinte”, lembra a jornalista Kátia Guzzo. O Berro só fechava às segundas-feiras. Na verdade, não fechava. A noite era reservada para publicitários das principais agências de Salvador debaterem ideias e discutirem sobre marketing político.

Cardápio Se é para reviver o antigo Berro D´Água, que seja com tudo o que se tem direito. Inclusive o serviço irretocável e o cardápio cantado em versos e prosas. Para garantir isso, o mesmo garçom, Nelsinho, ficará um tempo no estabelecimento, com a missão de treinar a nova equipe.  Cardápio original está mantido (Foto: Divulgação) “Estou encantado com a nova roupagem. Uma sacada fantástica essa retomada”, comemora Nelsinho, que hoje trabalha como palestrante e dá consultoria a bares e restaurantes. “Charles é muito capaz, criativo e recebe a todos com muito carinho. Todos eram iguais no Berro”, lembra Nelsinho, chamado de “Anjinho” por Clara Nunes, também frequentadora.   

O ex-sócio de Charles, o francês Jacques Frappa, responsável pela culinária, veio de Paris e ficará em Salvador por um mês. Vai ensinar os novos cozinheiros a reproduzir iguarias como o Steak ao Poivre e o Filé ao Berro D’Água. O cardápio será mantido, mas com algumas novidades. Até a capa do antigo menu será reproduzida. “Estamos pegando os clássicos do Berro D´Água e adaptando algumas novidades”, promete Jacques, formado no restaurante francês Chez Bernard, que também marcou época em Salvador. 

O serviço, mesmo com o bar lotado, era elogiadíssimo. “Se você pedisse o filé mal passado, vinha para sua mesa mal passado”, garante Charles, disposto a reviver dias como aquele em que, de sunguinha, recebeu “um pessoal” da pesada no Berro.

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Bar terá traillers de teatro e shows de drag queens O novo Berro só abrirá as portas na terça-feira, mas Seu Charles Mocó já adianta: vai ser um espaço multicultural, onde o preconceito não tem voz nem vez. O dono do local diz que o bar terá shows de jazz, blues, bossa-nova, música instrumental e performances. 

“O bar nosso de cada dia é um lugar para bater papo. Por isso, mesmo quando o som for ao vivo, será no clima que permitam as pessoas conversarem”, avisa. 

Entre as novidades, ele teve a ideia de incluir algo que considera inédito em bares e restaurantes na Bahia: os traillers de teatro. As peças que estiverem em cartaz na cidade podem enviar atores ao Berro para fazer apresentações de até 10 minutos, para um teaser, ou seja, uma chamada para atrair o público para assistir à peça. Só um gostinho.

“Quem estiver em cartaz pode vir aqui um dia na semana, fazer um set, e depois, se apresentar: ‘estamos em cartaz, tal dia, em tal lugar’. Divulgar o trabalho”, incentiva.

Charles Mocó também quer ousar e colocar shows de drag queens no novo Berro. “Seriam shows estilosos, sem erotização e sem chocar ninguém. Até strip-tease podemos ter aqui. Sem erotizar, sempre com arte. No Berro não censuramos nada que seja artístico. O Berro D´Água não é um bar careta!”, enfatiza. 

Em relação à decoração, as paredes do novo Berro são enfeitadas com fotos em preto e branco de grandes nomes do jazz internacional - entre eles João Gilberto. O artista plástico Bel Borba, que iniciou a carreira expondo suas obras no antigo Berro, é quem assina o mural de Miles Davis da nova fachada, além de ser o autor de uma escultura feita com garrafas que ficará exposta no interior do bar. 

Além disso, Bel Borba também é o responsável pela escultura do saxofinista na entrada da casa. A curiosidade é que a peça é conhecida. Feita em parceria com Reynivaldo Britoicava, ficava no antigo Aeroclube. "Reynivaldo me telefonou e perguntou se eu podia tocar a logística de desinstalação, içamento, transporte e o armazenamento da peça. E assim fiz, tudo corretamente, guardando a mesma no meu atelier. Agora, quatro anos depois, surgiu a oportunidade de expor a peça na porta do Berro D'Agua para o deleite dos transeunte. Lá deve ficar por 6 à 12 meses", revela Bel. 

Quem quiser se programar para conferir tudo isso de perto e marcar presença na reabertura do Berro D’Água, já pode separar um espacinho na agenda. A reestreia do lendário bar será nesta terça-feira, a partir das 18h.

Para reabrir as portas em grande estilo, haverá um dueto de jazz com Paulinho Andrade e Luizinho Assis. 

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