Letieres na memória: 'A sonora vingança da Orkestra Rumpilezz'

Texto de Franciel Cruz no início da trajetória de Letieres Leite com sua orquestra era um dos preferidos do maestro; leia na íntegra

Publicado em 27 de outubro de 2021 às 23:19

- Atualizado há 10 meses

. Crédito: Foto: Divulgação

Um texto escrito pelo jornalista e escritor Franciel Cruz, há cerca de 15 anos, marcou o maestro Letieres Leite, que morreu nesta quarta-feira (27), em Salvador. O próprio escritor relembrou a ocasião em que soube da predileção, espécie de prólogo da trajetória de sucesso do músico e sua trupe.

"A Bahia acaba de perder um de seus maiores gênios musicais: LETIERES LEITE. Há coisa de 15 anos, quando ele criou a fantástica Orkestra Rumpilezz, rabisquei um texto sobre. Generoso, ele disse: vou emoldurar. Um maestro, um dos raros que mereciam este título", recordou Franciel.

O texto também faz parte do livro 'Ingresia: chibanças e seiscentos demônhos', lançado pelo autor em 2018.

Leia na íntegra:

"A sonora vingança da Orkestra Rumpilezz"

Nem a lua, nem o conhaque. O que realmente me deixou comovido como o diabo foi saber que chegou ao fim um constrangedor, indecente e inexplicável silêncio.

Felizmente, os bons instrumentistas da Bahia resolveram dialogar com os tambores da religiosidade de matriz africana.

É vero que esta revolução na música baiana já acontece desde março de 2006, todavia, confesso, não fiz fé. Pensei se tratar apenas de mais uma tentativa da interminável série de macumbas pra turista ou, na melhor das hipóteses, de mais uma sessão de lombra music tamborístico-jazzistica.

Ledo e ivo engano.

Na noite deste domingo, na Concha Acústica, finalmente me rendi à Orkestra Rumpilezz, este é o nome do milagre, que une o vigor percussivo dos batuques dos terreiros com um naipe de sopros da mais alta qualidade.

Creiam, hereges, eles fazem um trabalho que livra a Bahia do vexame a que fomos submetidos desde que nossas mais caras heranças musicais foram sequestradas por um bando de seres rebolantemente macabros. E provam ainda que música ruim não é nossa sina, ao contrário do que já estávamos nos acostumando.

E temos a certeza de algo diferente logo no início da apresentação. O show começa na espinha mole, com os percussionistas dando o tom. Aliás, além da deferência de serem os primeiros a ocupar o palco, o respeito à força dos atabaques, timbaus, surdos e pandeiros se dá também no campo simbólico da indumentária. Os cinco rapazes, mais alinhados do que meio-fio, tocam de smoking branco. Talvez os mais afoitos digam que isto é besteira. Não acho. Entendo que é uma forma de elevar a percussão, que sempre foi tratada com desleixo. No entanto, o couro come mesmo quando os 15 músicos de sopro se juntam aos percussionistas. Acontece, então, uma explosão sonora que nos deixa felizes e orgulhosos. E, depois de tantas vergonhas, nada melhor do que bons motivos para nos orgulharmos e ficarmos contentes com as coisas desta besta e ainda bela província.

Mas não prosseguirei com esta prosa ruim de pseudo-crítico musical ufanista. Não tenho esta vocação. Faço apenas este último parágrafo para registrar um episódio ocorrido em dezembro de 2003. Na ocasião, assisti pela primeira vez a uma exibição da Spok Frevo Orquestra de Recife, que dialogava com o frevo com respeito, mas sem aquele ranço saudosista. Foi uma experiência de lavar e enxaguar a alma. Ao término, entretanto, senti apenas vergonha. Vergonha de ser baiano e não termos a capacidade de unir tradição e modernidade de forma sensível e original. Agora, com a Rumpilezz acabou a inveja. Estou vingado dos pernambucanos.

Som na caixa, maestro.