Ligeiro, ligeiro... Desfile do Dois de Julho é acelerado, mas mantém tradição viva

Cortejo dividiu atenções com o jogo do Brasil

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  • Thais Borges

Publicado em 2 de julho de 2018 às 14:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Vestida de verde e amarelo, a baiana se apressa (Foto: Marina Silva/CORREIO)

Com a espada em punho, Maria Quitéria marchava rápido. Entre os caboclos que são símbolo da festa – os de carne e osso e os de fibra –, aquela que também é uma das principais personagens da Independência do Brasil na Bahia, apertou o passo. Não só ela, como todo mundo. Crianças e velhinhos; políticos e militantes; curiosos e admirados. 

O Dois de Julho desse ano bem que podia ser um daqueles exemplos que dizem que ‘nunca, antes, na história desse país...’. Só troque o Brasil pela Bahia para entender melhor como foram as primeiras horas da manhã desta segunda-feira (2). Ou melhor: a uma hora e meia que levou para que os carros dos caboclos fizessem todo o percurso de 2,9 quilômetros da festa – entre a Lapinha e a Praça Municipal. 

Para que baianos pudessem participar dos dois maiores eventos do dia – a celebração cívica do estado e o jogo do Brasil contra o México, pelas oitavas de final da Copa do Mundo 2018, previsto para as 11h -, o desfile foi antecipado. Mesmo assim, foi tão ligeiro que surpreendeu: a previsão inicial era que terminasse às 10h30, mas os caboclos chegaram na Praça Municipal por volta de 9h20. Romilda encarna Maria Quitéria há 37 anos (Foto: Marina Silva/CORREIO) Por isso que Maria Quitéria chegou vestida para a luta e para torcer pelo hexa. A Maria Quitéria do século XXI, na verdade, era a vendedora - de produtos eróticos e brinquedos de criança - Romilda Anunciação, 53 anos, que, há 37 encarna a heroína feirense no desfile. Dessa vez, ela encheu o traje militar de pequenas bandeirinhas do Brasil e detalhes em verde e amarelo. 

Tanta devoção é por identificação pessoal."Maria Quitéria fugiu de casa para lutar pela independência, eu fugi para criar minhas três filhas. Ela deixou uma carta para o pai, eu deixei para minha mãe", conta.Minutos antes do cortejo começar, pedia a Deus que segurasse o tempo para não atrapalhar o desfile. Estava tranquila: dizia que Deus é brasileiro. 

Brasileiro ou não, de fato, a chuva só caiu fina no fim do percurso, sem atrapalhar a festa. Animada para o jogo, Romilda/Quitéria planejava assistir em qualquer lugar onde conseguisse encontrar uma televisão. Apostava em 2x1 para o Brasil. "A gente tem que respeitar o México, que tem um time bom também". De fato, pode até ter... Mas, dessa vez, o gol adversário não saiu.  Os carros dos caboclos chegaram ao Pelourinho em tempo recorde (Foto: Marina Silva/CORREIO) A aposentada Mariana Costa, 62, também chegou cedo para ter a chance de ter um momento especial com os caboclos. Quando encontrou o CORREIO, ela tocava a cabocla, toda vestida de verde e amarelo. Até nos cabelos, uma tiara de laço de cetim nas mesmas cores. Decidiu explicar: o look da vez tinha cara de Copa, mas a presença no dia cívico era obrigatória. 

“Eu venho para fazer meus pedidos para a família, por tradição mesmo. Moro no Cabula, para você ver, né?”, disse, admitindo que tinha saído bem cedo. No momento em que fez os pedidos, não era nem 7h. 

Quem também foi fazer um pedido foi a dona de casa Jandiara Paixão, 42, que trouxe a filha Isabela, 6, para ver o desfile pela primeira vez. Mesmo sabendo que a festa seria mais corrida, ela sentiu que era o momento certo: queria homenagear o pai, morto há cinco meses.  Jaciara levou a filha Isabela; ela lembrava do pai, morto há cinco meses (Foto: Thais Borges/CORREIO) "Ele se emocionava muito com o desfile. O caboclo representa ele e a cabocla representa minha mãe", diz ela, acrescentando que já fez seus pedidos aos dois. Pediu que a filha continue estudando e consiga ser aluna do Colégio da Polícia Militar. Quer que a pequena seja PM. "Acho uma carreira muito bonita. Mas também pedi saúde para minha mãe, que ficou viúva, e esperança para todos, porque também estou desempregada". Ela preferiu que a filha arriscasse o placar do jogo de logo mais. "O Brasil vai fazer 10 gols. Dez, não! Onze", disse, toda otimista.

Os pequenos talvez acreditassem mais na Seleção Brasileira de Futebol do que o próprio time. O menino Benjamin Cerqueira, 5, também não titubeou no palpite. “Hoje o Brasil vai fazer 10”, anunciou, com o rosto todo pintado com as cores da bandeira. Acompanhado da avó, a autônoma Joselice Santos, 60, e dos tios Jaqueline Conceição, 38, e Raimundo Reis, 35, Benjamin estava ansioso pelo desfile desde o dia anterior. Queria ver os caboclos e o batuque.  Benjamin sempre vai com a família. Otimista, ele esperava surpreendentes 10 gols (Foto: Thais Borges/CORREIO) Desde os primeiros anos de vida, ele vai ao cortejo. A avó explica que é importante manter a tradição e lembrar da própria história. “Temos que prestigiar nossos antepassados. Acho os índios uma coisa magnífica”, dizia. Ela não gostou muito das mudanças por conta do jogo. Acha que o Dois de Julho é campeão absoluto. Diante da data cívica mais importante do estado, quem seriam Neymar e Philippe Coutinho? 

“Achei horrível isso. Primeiro a obrigação, depois a diversão”, completou, sem antes deixar de lembrar que, na Copa de 2010, quando o desfile também precisou ser acelerado devido à partida do Brasil, o país foi eliminado pela Holanda nas quartas de final.“Correu tanto para nada. Esse ano vai ser igual, mas a gente não deixa de desfilar”. Dessa vez, pelo menos, o resultado (do jogo) foi diferente - ainda que o placar de 2 a 0 tenha ficado bem longe dos gols esperados pelos pequenos...  Os pequenos torcedores-patriotas roubaram a cena (Foto: Marina Silva/CORREIO) Com jogo ou sem jogo Era o mesmo caso da professora Rita de Cássia Oliveira, 58. Para ela, não tinha possibilidade de não ir – com jogo ou sem jogo. "É aqui que começa. Aqui é a nossa independência da Bahia e estamos aqui para comemorar, apesar de tudo. É para pedir ao caboclo e à cabocla que ajude o Brasil".  Rita de Cássia deu uma 'broncona' em quem não sabia o que significava o Dois de Julho (Foto: Thais Borges/CORREIO) Ela conta que, há pouco, ficou decepcionada com um pai e um filho de 20 anos que não sabiam dizer o que era o Dois de Julho. Eles responderam apenas sobre a parte "profana", segundo ela. "Não dei uma bronquinha, não. Dei uma broncona! Mandei estudar", afirmou, aos risos. 

Mas, talvez ninguém tenha levado tanto ao pé da letra quanto a promotora de eventos Paloma Andrade, 25, e a digitadora Milena Rocha, 36. Cada uma tinha seu próprio recorde: Paloma seguia com a barriga de seis meses de gravidez. Assim, levou a filha mais velha, Geovana, 5, e a mais nova, Paola, que ainda nem nasceu.  Paola (de verde) foi ao cortejo grávida de seis meses; Milena levou a pequena Maria Eduarda, de um mês (Foto: Thais Borges/CORREIO) A amiga Milena também não ficava atrás. Foi com a pequena Mariellen, 11, e Maria Eduarda, uma recém-nascida de apenas um mês. Tanto Paloma quanto Milena decidiram que, dessa vez, não iriam acompanhar o cortejo. Iam ficar pela Lapinha mesmo, perto de casa. “Acho bonito quem faz pedido, mas eu nunca fiz. Venho mais pela tradição mesmo”, revelou Paola. 

Fachadas decoradas No meio do percurso, o patriotismo, tão aflorado entre as camisas verde e amarelo, não poderia deixar de invadir as casas. Esse ano, o tradicional concurso de fachadas voltou a ser realizado pela Fundação Gregório de Mattos (FGM). E, como não poderia deixar de ser, reuniu concorrentes de peso. 

O artista plástico Joaquim Assis, 54, foi um deles. Ele decidiu participar da competição há cinco dias. Com o tempo curto, virou noite e gastou R$ 2,7 mil para enfeitar a fachada da Associação da Terceira Idade Eterna Juventude. "Tô no páreo, né?", brincou Joaquim, que já venceu o concurso em duas ocasiões.  O artista plástico Joaquim demorou cinco dias para arrumar a fachada (Foto: Thais Borges/CORREIO) Os enfeites – que incluíam uma réplica do carro da cabocla – foram bancados por uma vaquinha entre os associados, que incluem mulheres que venceram o câncer de mama.“Eu gosto muito do resgate da nossa história. E o bom de ter a Copa é que o Brasil está precisando de alegria para amenizar tudo que está acontecendo”, opinou Joaquim.  A técnica em Medicina Nuclear Elisângela Cajé, 44, preferiu deixar a fachada nas cores da bandeira da Bahia: azul, vermelho e branco. Embora não tivesse se inscrito no concurso, explicou que preferiu fugir das cores brasileiras para não misturar as duas coisas. “Mas acho que dá para conciliar a torcida. Mesmo morando aqui, eu não deixaria de participar do cortejo. Se fosse em outro lugar, eu iria do mesmo jeito”.  Elisângela manteve as cores da Bahia na fachada (Foto: Thais Borges/CORREIO) Aniversariante do dia, dona Maria de São Pedro, 78, faz uma fachada viva há 21 anos. Com ajuda da família, espera resgatar o espírito cívico dos vizinhos, independente de prêmio. Na fachada de dona Maria, netos e sobrinhos encarnam Joana Angélica, Maria Felipa, Maria Quitéria e os caboclos. "Mas se eu ganhar, é bom, viu?", brincou ela, que nem sabia que o concurso tinha voltado. A fachada de dona Maria tinha os personagens históricos (Foto: Thais Borges/CORREIO) A filha, Claudeci Leite, 35, não gostou das mudanças do desfile por conta da Copa."A Copa é na Rússia, não tem a ver com nosso momento aqui", explica.Os vencedores do concurso só devem ser conhecidos daqui a cerca de 10 dias, de acordo com a FGM. O concurso vai premiar as três melhores decorações. O primeiro, o segundo e o terceiro colocados vão receber R$ 2 mil, R$ 1 mil e R$ 500, respectivamente. Segundo a FGM, o objetivo é valorizar os imóveis da região, além de incentivar a preservação da memória e do patrimônio cultural de Salvador. 

Durante o percurso, 18 fachadas foram registradas pela comissão julgadora do concurso. A comissão é formada por um representante da FGM, outro da Faculdade de Belas Artes (Ufba) e da Faculdade de Arquitetura (FAU/Ufba).