Luto pela pandemia, devoção e tradição: veja como foi celebrado o Dia de Iemanjá em Salvador

Presente dos pescadores foi levado ao mar durante a manhã, para diminuir a presença de público

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  • Daniel Aloísio

Publicado em 2 de fevereiro de 2021 às 15:01

- Atualizado há um ano

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. por Arisson Marinho/CORREIO

“Irreconhecível". Essa era a expressão mais usada por pescadores e devotos de Iemanjá que estavam presentes no Rio Vermelho na manhã desse dia 2 de fevereiro. Quem estava acostumado com os cerca de 1 milhão de pessoas que se aglomeravam no bairro, em anos normais da festa, ficou surpreso com as ruas sem interdição. Alguns baianos e turistas aproveitaram a situação para acompanhar de longe a entrega do presente pelos pescadores no mar em um barco icônico, que carregava uma bandeira preta com os dizeres: “224.504 vidas”, uma referência ao número de mortos pela covid-19 no Brasil.  

Foi exatamente às 7h39 que o presente foi colocado no barco. O céu estava carregado de nuvens pesadas, mas só houve trovões e pancadas de chuva após o fim do ritual, o que ajudou a dispersar os curiosos que observavam tudo da orla. A entrega do presente é a parte mais simbólica da festa, que no ano passado foi reconhecida como Patrimônio Cultural de Salvador. Se não fosse a pandemia, esse momento só iria acontecer no final da tarde, após muita reverência dos devotos durante todo o dia.  

A pandemia fez com que a cerimônia fosse mais simples, mas não menos especial. O presente saiu do terreiro Ikê Axé Awa Negy, localizado no final de linha do Engenho Velho da Federação. O responsável pela preparação foi o babalorixá Pai Ducho de Ogum. "Foi a primeira vez oficialmente que estive a frente. Foi muito bem preparado, com amor, satisfação e carinho. Sei que Iemanjá vai aceitar. Não é grande, mas o que tá indo dentro para ela é amor", disse.  

O presente veio em um carro aberto, com a presença de integrantes do terreiro. Quando estava perto do acesso à praia do Rio Vermelho, uma certa aglomeração foi formada ao redor dele. As pessoas não resistiram à tentação e chegaram perto para saudar Iemanjá. Nesse momento, foi gerado engarrafamento na orla. Alguns também não usavam a máscara corretamente. Muitos gritavam: “Odoyá, minha mãe!”.  

Por volta das 8h30, o presente deixou o carro e foi levado até a areia da praia, ao som de atabaques. Ao mesmo tempo, o barco dos pescadores se aproximou da orla. “Bora! Tá na hora!”, gritava um dos navegantes, como se quisesse adiantar o ritual e evitar a aglomeração, que se formava na orla, de pessoas que observavam a cena. “Isso aqui está irreconhecível. Olha o que a pandemia fez com o nosso Dia de Iemanjá”, gritava um devoto, de longe.   

A interdição na orla do Rio Vermelho foi da praia de Buracão até a da Paciência. No entanto, nenhuma rua do bairro boêmio foi fechada. O fluxo de carros permaneceu normal. Até a manhã dessa terça-feira (2), não foram observados os tradicionais bloquinhos de rua, bandas ou até pessoas consumindo bebidas alcoólicas, como acontecem normalmente na parte profana da festa. Os bares e restaurantes do Rio Vermelho só poderão ser abertos a partir das 19h.  

Cena  Para Isaac Edington, presidente da Empresa Salvador Turismo (Saltur), a cerimônia foi positiva. "Eu estava preocupado com esse dia, mas as pessoas respeitaram. Sempre tem alguns curiosos, desobedientes, mas eles não entraram na praia, que desde ontem está interditada. A hora da entrega do presente é o momento crítico, pois as pessoas fazem a sua cerimônia e a gente também tem que respeitar. No geral, vemos que as pessoas estão respeitando a forma de realização das festas populares durante a pandemia", apontou. 

Leonel Monteiro, presidente da Associação Brasileira de Preservação da Cultura Afro-Ameríndia (AFA), também participou do ritual. Ele destacou a importância da festa para o candomblé, uma vez que Iemanjá é uma divindade africana e o ritual que acontece no Rio Vermelho é exclusivo para a mesma. “Esse é o grande detalhe da festa. Todo 2 de fevereiro o pessoal vem, orientado por terreiros, para saudá-la de forma exclusiva. Isso mostra o respeito e a fé que as pessoas têm nas divindades africanas, sobretudo ela, que acolhe a todos”, diz.  

O presidente da AFA também destacou a importância da festa ter sido mantida mesmo em época de pandemia. “Ver o Rio Vermelho dessa forma é frustrante, porém é importante manter a tradição respeitando a vida, sem gerar aglomeração. Isso é uma forma de praticar o legado ancestral deixado pelos reis e rainhas que vieram escravizados e estamos passando esse conhecimento para os mais novos, para perpetuar o culto”, argumenta.  

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Mesmo assim, o sentimento na Colônia de Pescadores do Rio Vermelho, que também organiza a festa, era de tristeza. “Nós estamos vivendo um dos momentos mais triste. Jamais iriamos imaginar que íamos passar por isso. O pescador é quem escolhe o tipo de presente, busca patrocínio e está à frente de tudo. Esse ano nem patrocínio houve. Está tudo simplório, dentro da legalidade, para não passar em branco”, explica Helcio Silveira, presidente da Colônia.  

Se a pandemia foi o fator que tanto prejudicou a festa de Iemanjá em 2021, o jeito é pedir a ela que nos livre do vírus. “Na verdade, quem traz a saúde é Nanã, Obaluayê leva a doença e Ossain promove a cura. Mas todas essas energias trabalham em parceria. Todas elas nos protegem. Ao pedir a qualquer uma de nossa divindade, inclusive a Iemanjá, isso reverbera para toda as outras, que atuam em favor da humanidade. Por isso, Odoyá!”, exclamou Leonel Monteiro.  

* Com orientação da subchefe Monique Lobo