Maior, mais simples e democrático: que Carnaval é esse?

Especialistas na folia apontam as transformações entre as festas de anos atrás e o atual modelo

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  • Fernanda Santana

Publicado em 24 de fevereiro de 2020 às 17:22

- Atualizado há um ano

. Crédito: Carlos Catela/ARQUIVO CORREIO

Na Avenida Sete de Setembro, os foliões, brancos e ricos, desfilavam ao som de óperas. Qualquer manifestação que convocasse o popular – para não dizer os elementos negros da cidade de Salvador – era ignorada e até mesmo proibida por lei. “Hoje, te desafio a pensar qualquer outro momento, que não o Carnaval, em que é possível ocupar as ruas”, provocou Paulo Miguez, pesquisador especializado na folia baiana.

Na semana em que teve início, oficialmente, o Carnaval de Salvador, conversamos com especialistas no tema. Além de Miguez, o historiador Milton Moura, e Merina Aragão, uma das principais produtoras da folia, foram provocados a refletir sobre a configuração atual da folia na cidade. 

Ao longo dos anos, resumiu Miguez, a essência permaneceu a mesma. “Uma permanente disposição pela presença nas ruas”, explica Miguez. As estatísticas oficias mostram que, diariamente, três milhões de pessoas vão para os circuitos.

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Hoje, o Carnaval parece passar por um processo de simplificação e diversificação. Os trios, como você verá, ficam menores, com mais espaço na rua para o folião, e também mais inventivos. 

O Axé vive com a diversidade de ritmos e, na avenida, é possível ouvir do pagode, eletrônico, ao pop e rock. "O Axé já é híbrido", definiu em entrevista ao CORREIO Luiz Caldas, considerado o pai do gênero.

Não há mais como eleger, por isso mesmo, um só hit. 

Também é possível ver mais espaço para o folião pipoca. Os blocos e camarotes, no entanto, sobrevivem. Pelos circuitos, os foliões desfilam mais coloridos, porque até as fantasias ficaram mais democráticas - no preço e no estilo. Muita coisa pode ter mudado. Mas uma, pelo jeito, veio para ficar: o povo sempre, e cada vez mais, na rua.   

Do gigantismo ao micro-trio Desde o primeiro trio elétrico inventado por Dodô e Osmar, em 1950, os trios também mudaram. O caminhão eletrizado ficou mais alto. E cresceu para os lados. Hoje, um dos processos que despertam atenção de quem trabalha com o Carnaval  é a diminuição dos trios elétricos.“Acho que o gigantismo do trio elétrico veio a prejudicar ele. Isso está começando a ser considerado por todas as partes”, opinou Paulo Leal, presidente da Associação Baiana de Trios Elétricos (ABTI). Não existem números que traduzam, em números, essa tendência. Os trios diminuem e pensam estruturas mais próximas do público porque o povo exige mais, espaço e artesanalidade. “Acho que a semente está plantada”, comentou Merina Aragão.

A popularização dos micro-trios – trios menores, geralmente com alegorias - pode dar uma ideia. Os foliões ficam mais próximos  

“O que a gente faz com micro-trio é devolver, em algum nível, o pertencimento da memória afetiva do baiano. Sem revival, sem saudosismo, é um pretexto, também, para que as pessoas se reúnam ”, opinou Chico Gomes, criador da Banda Marana, e idealizador do micro-trio Peixinho Elétrico.

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A mistura do axé e os novos ritmos da folia O próprio Axé se abriu para influências e não há soberania. “Toda soberania é burra, o que eu quero é diversidade. O Axé já é híbrido. Quando eu comecei, você via ali Caribe, Jamaica, Estados Unidos, tudo misturado, mas com cara da Bahia. Acho que tem faltado um pouco de dendê à mistura”, falou Luiz Caldas, ao lembrar da mescla de ritmos que é a marca da música do Carnaval baiano.  

Quem esquece do vocalista do U2, Bono Vox, cantando, da varanda do camarote Expresso 2222, na Barra, Chupa Toda com Ivete Sangalo, do trio?  Depois, vieram sertanejos e funkeiros, por exemplo, com trios próprios. Quincy Jones, Bono Vox, Flora Gil, Gilberto Gil e The Edge no Camarote 2222 (Foto: Divulgação) Os palcos e espaços privados também começaram a trazer rock, rap, pop, eletrônico. Neste Carnaval, por exemplo, o Espaço Origem levará nomes do rap local, como Vandal, Nova Era, Hiran e Underismo, ao Espaço Cultural da Barroquinha.“Acho que não teve divisor de águas, aconteceu muito naturalmente. Temos até bloco exclusivamente de DJ. Eu acho que, a partir daí, houve essa revelação de que a música eletrônica também tinha espaço e todas as outras também”, contou Merina. O pagode merece destaque nessa profusão de novos ritmos e neste novo Carnaval. Artistas como Márcio Victor, da banda Psirico, Léo Santana, e Tony Salles, do Parangolé, têm lançado os principais hits da folia soteropolitana.       

Também por isso, o Carnaval não é mais palco de um só gênero ou canção de sucesso. Quando Bono Vox cantou com Ivete, os foliões discutiam se a música do Carnaval seria Nada de Já É, Café com Pão, Piriri Pompom ou Eu Quero Esse Amor. Hoje, qual seria seu palpite?

“Você não consegue perceber sozinho  Eu preciso que o rádio e a televisão digam qual é o hit”, disse Milton Moura. Luiz Caldas acha que “esse negócio de música do Carnaval não cola mais, não há só um carnaval, por isso, não há só uma música”.

Abaixando as cordas para os foliões brincar O principal mercado da festa, os blocos, não é mais protagonista, opinaram os especialistas à reportagem. O historiador Milton Moura acredita que a própria crise financeira da classe média contribuiu para o enfraquecimento dos blocos, por meio do qual se projetaram bandas como Chiclete com Banana. Sem falar na padronização dos blocos. “Acredito que o modelo tenha enchido o saco. Todos  ficaram iguais. Esse processo de mudança já está bem consolidado”, complementou.Não há nenhum levantamento que mostre a diminuição dos blocos e, quando se fala no assunto, diz Merina Aragão, “estamos falando dos mais tradicionais, como o Camaleão”.

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A Prefeitura de Salvador patrocinará 202 trios sem corda de acordo com a Saltur, e o Governo do Estado 49 trios - contando atrações repetidas. Puxarão trios sem corda artistas como Ivete Sangalo, Carlinhos Brown e Claudia Leitte.  

A pipoca também chegou aos carnavais nos bairros, que ganharam força. São sete bairros de Salvador com carnavais oficialmente, segundo a Saltur. Mas há também outras regiões, como Nordeste de Amaralina e Imbuí. Na Liberdade, estarão nomes como Sarajane e Márcia Castro; na Boca do Rio, Gerônimo e Attooxxaa; e, em Cajazeiras, Igor Kannário e Duas Medidas.  “Me parece que todas as vezes que Momo vai ficar subordinado a um só lugar, rompe a costura e reaparece em outros lugares”, brincou Miguez, sobre os espaços do Carnaval.Com o enfraquecimento dos blocos, ganharam também os camarotes. Hoje, sobretudo no Circuito Dodô (Barra-Ondina), eles se distribuem nas sacadas de prédios e em estruturas montadas exclusivamente para eles. “É uma questão de disputa. No bloco, as coisas andam, é preciso ‘negociar’ com a cidade inteira. É mais fácil tomar conta de uma piscina que da praia, né? Na piscina só entra quem você deixar. O negócio migrou”, acredita Miguez.A festa diversa feita pelo folião A configuração atual do Carnaval seria a de uma festa mais diversa, menos cercada por cordas, com outros ritmos que não apenas o Axé Music. Está cada vez maior, também, o interesse por participar diretamente da festa. É o que dizem os estudiosos ouvidos pela reportagem.“A gente faz nossa própria festa”, definiu ao CORREIO a dona de casa Vilma Facchi Neto, 63, enquanto ia em direção a Barra, no último Fuzuê.Ela criou o bloco infantil e gratuito Os Pestinhas, com o trio Maderada Kids e carro de apoio, ambos de um metro de altura, puxados por um velotrol guiado por crianças. 

Neste ano, o número de foliões-artistas – como Vilma - interessados em colocar fanfarras e bloquinhos na rua alcançou um recorde. Em comparação aos pré-carnavais do ano passado, os 64 cadastrados para desfilar no Fuzuê passaram para 84, e, no Furdunço, a quantidade subiu de 190 para 230, de acordo com a Empresa Salvador de Turismo (Saltur).

Tem bloco e espaço para bebês e crianças, adolescentes, idosos e manifestações populares. Tem samba, capoeira e percussão, e todos os tipos de fantasias.  “O reconhecimento do caráter popular da festa está firmado.  Tanto que estamos recebendo cada vez mais pedidos para incluir fanfarras”, disse Merina Aragão, gerente da Saltur há 34 anos.Os carnavais da elite permanecem resguardados nos camarotes e em alguns blocos que chegam a cobrar, nas vésperas da festa, mais de R$ 1 mil por abadá. As disputas entre quem está no chão, nas calçadas, cercados por cordas e no conforto de salões climatizados continuam. Mas o Carnaval de hoje, ao que tudo indica, já revolucionou a história da festa.

Dos trios aos foliões, a ideia do que é a folia pode ser para todos tem sido uma reivindicação.

Democracia das fantasias Não há certo e errado. As fantasias mais elaboradas ainda existem. Mas os tules, enfeites, brilhos, passadeiras - principalmente com letras de músicas - e plaquinhas penduradas no pescoço reinventaram a forma de se fantasiar na folia. Pelos circuitos, os ambulantes vendem de adereços. De cocás a cílios de luz led. (Foto: Marina Silva/CORREIO) Para Milton Moura, a venda de adereços personalizados está cada vez mais maior. "Todo mundo ficou mais colorido", opina o historiador. E por um preço mais baixo. Um cocá mais elaborado, por exemplo, é vendido por R$ 10. 

A ressignificação do que é sair fantasiado na folia acompanha e reflete a própria simplificação e diversificação do Carnaval. "Existe lugar para suprir a necessidade de ganhar dinheiro por quem encontrou no Carnaval uma maneira de completar o orçamento. E o Carnaval é também uma festa de transformação. O Carnaval permite coisas que muitas vezes a intelectualidade não gosta de ver", complementou.  

A inventividade das novas fantasias faz parte da própria história do Carnaval. "Gerônimo, por exemplo, inventou o buzanfan [trio elétrico feito a partir de um ônibus]. Esse é o espírito do Carnaval, a invenção", disse Moura. 

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