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Flavia Azevedo
Publicado em 5 de abril de 2020 às 10:12
- Atualizado há 2 anos
(Ilustração: Morgana Miranda/CORREIO) Quase todo dia agradeço por estar solteira, nesse isolamento. Não, eu não quero mais morar com homem nenhum, por melhor que ele seja, muito menos numa situação de convívio 24/7. Deus é mais. Mesmo sentindo falta das "participações especiais" (temporariamente suspensas), estar em carreira solo, isolada com meu filho, é todo o conforto emocional que eu poderia desejar, nessa travessia incerta que não sabemos como nem quando vai acabar.>
Mas há sinais: depois da Gripe Espanhola - que matou cerca de 40 milhões de pessoas em todo o mundo - o Rio de Janeiro (onde morreram mais de 14 mil) teve um dos Carnavais mais eróticos, libertários e animados da sua história. Isso em 1919. Portanto, já tenho uma meta e quero avisar que estarei viva e pronta para pular o próximo, em Salvador, por mais que ele demore a chegar. Por esse Carnaval, por meu filho, por meus amigos e amigas, por minha família e por muitos outros motivos, pretendo demais sair viva dessa agonia. Para que isso aconteça, precisamos, principalmente, de duas coisas: higiene impecável e equilíbrio emocional, além de todas as necessidades básicas. Diante do que concluo que ter um marido, neste momento, é puro atraso de vida, na maioria dos casos.>
A conclusão nem é só minha, digo logo. E nem fui a primeira, no meu grupo de amigas, a falar sobre a dificuldade de encontrar alguma paz quando se precisa explicar protocolos avançados de higiene a pessoas que nem sequer aprenderam a dar descarga com a tampa do vaso fechada. Ou a sentar pra fazer xixi. Ou a lavar o pinto direito, em casos mais graves. Eu, solteiríssima, não tenho do que reclamar, nesse aspecto, mas tenho ouvido desabafos de mulheres que não aguentam mais seus homens heteros tradicionais.>
Demanda pura. Eles querem sair, eles acham que é só uma "gripezinha", eles não dividem as tarefas domésticas, eles acham que mulheres exageram nos cuidados, ele levou a filha pequena ao banco lotado (caso real), ele quer receber a visita da mãe que trabalha em laboratório (outro caso real), ele quer vir de São Paulo para a Bahia encontrar a esposa e os filhos pequenos, mesmo estando "gripado" (mais realidade). Ele está entediado. Só ele, o alecrim dourado que nasceu no campo sem ser semeado.>
Há situações mais graves, eu sei. Mas antes que os sommeliers de militância (amei o termo, Salvatore!) me perguntem "mas e sobre mulheres que estão confinadas com seus espancadores, você não vai falar?" ou "você tem que falar das pessoas que estão desabrigadas" digo logo: já falei e falarei, mas hoje, não. Neste fim de tarde, enquanto aguardo a entrega das cervejas que vou beber sozinha e em paz, direciono meus melhores pensamentos para as mulheres que estão limpando, cozinhando, fazendo home office, homeschooling e lidando com esses fatores de risco encarnados. Respiremos juntas. Por ora, calma. Daqui a pouco ele volta pro trabalho, as crianças voltam a ter aulas, a vida vai voltando ao "normal". Só não esqueça de anotar cada desgosto desses dias porque, como sabemos, os cartórios também vão reabrir e, claro, aquele Carnaval vai chegar.>