Medo da polícia fez estudantes deixarem ocupação do Odorico Tavares

'No escuro, bala é mais perdida ainda', diz jovem; ocupação durou mais de 10 horas

Publicado em 23 de janeiro de 2020 às 02:00

- Atualizado há 10 meses

. Crédito: Foto: Betto Jr./CORREIO
Concentração em frente ao colégio era grande no acesso pelo Corredor da Vitória por Foto: Betto Jr./CORREIO

A polícia ainda não estava na escola quando dois membros do movimento estudantil chegaram para ocupar o Colégio Estadual Odorico Tavares, no Corredor da Vitória, em Salvador, nesta terça-feira (21). Como a instituição estava com os portões abertos, outros 28 jovens entraram em seguida e tomaram a unidade para protestar contra o fechamento deste que um dia foi um dos colégios mais disputados da cidade.

Após dez horas de ocupação, os manifestantes decidiram liberar o imóvel por uma razão: medo.

Era a primeira vez de Lis Bispo, 16 anos, num protesto. Ela entrou por volta das 14h30 junto com o grupo. Concluinte do ensino médio do Odorico no ano passado, a estudante conta que sentiu a tensão acirrar ao cair da noite.“A cada hora chegavam carros e mais carros da polícia. No decorrer da madrugada, vieram mais e a gente tinha medo de tomar um tiro a qualquer momento”, temia.Tomado por ex-estudantes da instituição e por membros da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes), União Estadual dos Estudantes (Uees) e Associação de Grêmios e Estudantes de Salvador (Ages), o Odorico Tavares teve água e energia cortadas durante a permanência dos jovens, alguns deles menores de idade, como Lis. 

Os primeiros momentos da chegada da polícia são descritos como ‘truculentos’ por Débora Nepomuceno, 20, vice-presidente nacional da Ubes. Dois cadeados que os estudantes colocaram para fechar os portões foram quebrados pelos oficiais.“Os policiais não estavam cientes do que estava acontecendo. Explicamos que estávamos ali em protesto para que não vendam a escola e então pararam para ouvir nossas pautas, nossas exigências”, conta.Outro líder da Ubes, o diretor Vinícius Calmon, 20, lembra que uma policial chegou a rasgar a bandeira do movimento. Segundo ele, a oficial foi contida pelos próprios militares, que defenderam que não havia necessidade da atitude. Aos poucos, apoiadores, curiosos e equipes de reportagem lotaram a frente do colégio. Débora diz que após a chegada da imprensa, a polícia criou um cordão de isolamento nos portões. “Para nos silenciar”, afirma. 

Mas, até aí, a jovem avalia que os policiais estavam compreensivos, apesar de proibirem a entrada de suprimentos doados por apoiadores. No entanto, uma moradora de um prédio vizinho arrumou um modo de abastecer a galera. De acordo com os jovens, a mulher reuniu donativos na portaria e os gritou para jogar alimentos e lençóis através da sua janela. 

As lideranças não queriam abrir mão da ocupação enquanto representantes da Secretaria de Educação do Estado (SEC) não conversassem com os manifestantes. Ao passo que tentavam o acordo, Débora diz ter visto 10 viaturas no acesso ao colégio pelo Corredor da Vitória e outras cinco na parte de baixo, a partir do Canela. 

Tensão“Uma das nossas preocupações foi o fato de já termos visto várias viaturas chegarem e ficarem vazias. Somos jovens, contra o poder de fogo e o aval que tinham para nos tirar dali. Enquanto por cima a gente tentava conversar, eles já estavam vendo a melhor situação para entrar no colégio por baixo”, lembra Débora. Conforme relato da estudante, os manifestantes começaram a ouvir um som que parecia o portão inferior do Canela sendo serrado, seguido do barulho de passos e sirenes. “Acho que queriam nos assustar ou encobrir outros barulhos”, suspeita. A partir daí, os estudantes ficaram todos reunidos no terceiro pavimento, o mais alto, no acesso pelo Corredor da Vitória. “Quando a mídia foi embora, ficamos só nós e a polícia. Chegou um momento que tinha mais policial do que manifestante”, lembra.

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A tensão psicológica foi a pior dificuldade na manutenção do movimento, avalia Vinicius Calmon. Segundo ele, o acúmulo de vivências dos jovens da periferia com relação à polícia fez com que eles temessem a atuação.“Ficamos sem luz, ouvindo barulhos. No escuro, qualquer bala é mais perdida ainda e essas balas acham os corpos. Não sabíamos o que esperar”, descreve.Desocupação Débora diz que por mais que tentasse convencer os colegas de que nada aconteceria contra eles, a maioria dos jovens estava assustada e decidiu prezar pela integridade física, desocupando o colégio.“Por mais que a gente estivesse num diálogo pacífico com a polícia, é difícil convencer um jovem da periferia, que conhece a repressão do estado, de que ia ficar tudo bem”, revela. Uma das líderes do movimento, Débora Nepomuceno, vice-presidente nacional da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Foto: Divulgação/Ubes) Procurada, a Polícia Militar da Bahia disse, em nota, que não detalha as técnicas empregadas nesta situação e orientou que as perguntas do CORREIO sobre o caso fossem direcionadas à Secretaria de Comunicação do Estado (Secom). Questionada, a pasta disse apenas que “os estudantes deixaram o colégio de forma pacífica, por volta de 1h30, e que não houve uso de força policial".

A vice-presidente da Ubes, defende, no entanto, que apesar de terem sido apenas dez horas de ocupação, a mobilização teve saldo positivo porque deu maior visibilidade à causa e obriga a SEC a dar uma resposta à comunidade escolar. Para o ex-estudante do Odorico, Yan Santana, 20, esse foi apenas o primeiro passo. “Teremos mais manifestações e vamos correr atrás para que o colégio fique aberto, nós vamos reverter essa venda”, endossou.

Reunião

Durante o jornal Bahia Meio Dia, o secretário de educação, Jerônimo Rodrigues, disse em entrevista à TV Bahia que tenta uma reunião com os estudantes na secretaria. No entanto, os manifestantes garantem que não tiveram contato com a gestão estadual até o fim da tarde desta quarta (22). 

Sobre a atuação da Polícia Militar na situação, Rodrigues afirmou que a desocupação foi feita sem nenhum prejuízo físico aos estudantes. “Em momento algum, as ocupações feitas no estado têm agressão ou comportamento agressivo”, disse ele, informando que a retirada foi feita através de negociação com a PM. Em sua fala, o gestor negou ainda a acusação de que o governo provocou intencionalmente o esvaziamento da escola através do bloqueio gradual de matrículas.

Venda do colégio Foi aprovado ontem na Assembleia Legislativa da Bahia (Alba) o pedido de urgência para a votação do Projeto de Lei que pretende autorizar a venda do Colégio Estadual Odorico Tavares. Encaminhado pelo próprio governador Rui Costa, o pedido foi publicado no Diário Oficial da Alba no início do mês. De acordo com a assessoria da assembleia, a pauta só deverá começar a ser discutida a partir da próxima semana, possivelmente na terça-feira (28). 

Se aprovado, o projeto autorizará o governo do estado a alienar o imóvel. Segundo o texto da proposição, os recursos financeiros arrecadados serão destinados à infraestrutura, ampliação e melhoramento da rede física escolar estadual. 

Em paralelo, as advogadas do movimento pela permanência do Odorico, Juliana Caires e Jeane Ferreira, solicitaram, nesta quarta, um recurso da liminar que pede a garantia de matrículas novas para o ensino médio na instituição. Fachada do Odorico Tavares no acesso pelo Canela (Foto: Tiago Caldas/CORREIO)