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Hilza Cordeiro
Publicado em 28 de dezembro de 2020 às 07:50
- Atualizado há 2 anos
Faltava pouco menos de um mês para as eleições municipais deste ano quando o prefeito de Mucugê, Cláudio Manoel Luz (PSD), resolveu doar 17 terrenos da cidade, localizada na Chapada Diamantina, para alguns de seus correligionários, entre eles secretários de Educação, Turismo, Saúde e Administração e outros funcionários da prefeitura. As decisões só foram publicadas neste mês no Diário Oficial do Município, mas os títulos foram concedidos em outubro. A situação foi denunciada nas redes sociais por um grupo de moradores e resultou numa pressão que fez o gestor anular as concessões na última quarta-feira (23).>
Entre os 17 terrenos que Manoel Luz tentou doar, 13 foram numa região muito valorizada de Mucugê, na entrada do distrito turístico, com vista para a bela Serra do Sincorá. Trata-se de uma grande área pública à beira da rodovia BA 142, na localidade da Cidade Nova, que foi rateada em lotes de 1.000m² e 1.250m², totalizando 14.000m² doados. De acordo com moradores, cada lote pode valer de R$ 200 mil a R$ 500 mil. Área em que estão localizados bens doados (Imagem: Reprodução/Google) Além desta área, também entraram no bolo outros três terrenos na localidade da Praça Santa Isabel, na região da Cidade Monumento, todos com mais de 230m². Nos documentos divulgados, as concessões foram justificadas pelo fato de os recebedores “já possuírem como seus” os terrenos. Fora esses, diversos outros bens foram doados. O CORREIO reuniu apenas os casos em que as pessoas têm vínculo com a prefeitura.>
Os beneficiados foram Marilene Oliveira Santos Bastos, secretária de Educação, Euvaldo Ribeiro Júnior, secretário de Administração, Igor Teles Silva, secretário de Saúde, Tiago de Souza Profeta, secretário de Cultura e Turismo, Adão Adeson Luz Freitas, tesoureiro, Ivânia da Silva Sousa Reis, chefe do setor de Recursos Humanos, Neiva Martins Rocha, irmã do vice-prefeito (Luiz Antônio Martins).>
Também ganharam títulos Janício Cardoso Filho, auxiliar administrativo, Luis Bazílio Novaes Ribeiro, candidato a vereador não eleito e irmão do secretário Euvaldo, Marcelo Santos Silva (Marcelo de Tidinho), vereador eleito pelo PSD, Emília da Silva Araújo e Mônica Rocha do Carmo, assessora especial.>
Dos 17 terrenos doados, apenas 14 atos foram cancelados. Os nomes de Luis Bazílio, Carlos Alberto e Edinaldo não constam na lista dos que tiveram os títulos das terras anulados.>
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Fontes: Diários oficiais de dezembro, resultados de concursos públicos, folhas de pagamento da prefeitura e moradores do município>
Conforme consta nos documentos, as doações foram embasadas na Lei 13.465/2017, que dispõe sobre regularização fundiária rural e urbana. Estas regularizações foram feitas com o tipo Reurb-E, de interesse específico, que é aplicado quando beneficiários não são pessoas de baixa renda. Embora a legislação brasileira proíba a distribuição de bens, valores e benefícios em anos eleitorais, há uma exceção em casos de calamidade pública e estado de emergência, como é o caso da pandemia, por exemplo.>
Posicionamento da prefeitura>
Procurado pela reportagem através de chamadas telefônicas e mensagem via WhatsApp, o prefeito Manoel Luz não atendeu às ligações e nem respondeu às perguntas pelo aplicativo até a publicação desta matéria. Antes, em resposta ao Jornal da Chapada, que primeiro noticiou as doações, o gestor rebateu as denúncias e disse que “as pessoas apresentaram documentos de que são possuidoras da posse desses terrenos”. >
Ainda segundo ele, a administração municipal instaurou processos normais, como é feito para todos que solicitam legitimação. “Não estamos fazendo doações e nem alienação de terrenos do município, apenas e, tão somente, legitimando a posse de quem já a tem”, afirmou.>
Para a anulação das certidões de posse, o prefeito considerou "o princípio administrativo da autotutela, bem como em obediência ao princípio da legalidade e da moralidade administrativa".>
Cláudio Manoel Luz tentou a reeleição para o cargo este ano, mas não conquistou eleitores suficientes para renovar o mandato. Ele teve apenas 36,6% dos votos e perdeu para a servidora pública aposentada Ana Hora Medrado (DEM), a Dona Ana, que venceu com 54,4% dos votos. >
Reação de moradores>
Mesmo com a anulação, moradores ligados à Associação Comercial e Turística de Mucugê estudam mover uma ação judicial para analisar a questão fundiária no município, que é tombado desde 1980 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Presidente da associação, Fred Matt conta que foi procurado pela população e uma petição online foi criada para solicitar que os órgãos responsáveis apurem a situação das áreas importantes para a identidade da cidade.>
Segundo habitantes ouvidos para a matéria, a prática de doação de terrenos é antiga em Mucugê e que, historicamente, costuma acontecer ao fim do mandato dos gestores. "Só que dessa vez foi uma coisa muito perceptível, muitos terrenos e quase todos um do lado do outro, então foi fácil descobrir. Houve burburinho na cidade porque são terrenos caríssimos. A gente não sabe se está correto ou não, alguns desses devem estar, nós queremos saber", diz Matt.>
A preocupação das pessoas é porque, além de ser uma área de mata nativa, é um espaço de interesse social, onde costumam ocorrer eventos esportivos de montain bike. Fred acrescenta que, por serem tantos terrenos, o local que hoje é desocupado, sem moradores, pode se tornar um novo bairro e não há um planejamento para construções na região e nem determinações estéticas para a preservação da arquitetura histórica da cidade. >
Um morador que preferiu não ser identificado aponta que é inconsistente a prefeitura doar os bens justificando que os beneficiários já os possuíam como seus. Segundo ele, não há nenhum indício de ocupação e a distribuição ameaça o sonho de montar ali um parque municipal de ciclismo. "Com essa doação, veio um sentimento de revolta porque não é a primeira vez que acontece. Não se pode sair doando terras assim a quem não precisa", avalia.>
Pelo Facebook, Fred Matt endossou: “Esses terrenos são do povo, não de privilegiados, que sejam devolvidos ao patrimônio público. Que esse tipo de ação ilegal e irresponsável nunca mais ocorra em nosso querido município”, escreveu.>
Em nota, o Ministério Público diz que recebeu no último dia 17 uma denúncia anônima acerca dos fatos e iniciou investigação para apurá-los assim como identificar eventuais responsáveis. "Caso sejam identificadas irregularidades serão adotadas as medidas cabíveis para proteger o patrimônio público e a moralidade administrativa".>
Prática é comum em eleições>
Advogado especialista em Direito Público, Neomar Filho explica que a doação de terrenos públicos depende, necessariamente, de uma lei que autorize essa prática. De fato, em Mucugê, um decreto instituiu, em 2019, o Programa Municipal de Regularização Fundiária. No entanto, o advogado conta que, no país, é comum que gestores públicos usem dessa prática de distribuição de imóveis e terras para conseguir continuar no poder. >
“Às vezes, gestores que querem continuar no poder abusam do poder que têm, da caneta que têm. Usam a máquina em favor da sua campanha ou da sua própria pessoa. Então, vão fazer isso não pensando no interesse público, mas para benefício próprio ou em benefício de terceiros”, elucida. >
Se uma investigação do ponto de vista eleitoral constatar abuso de poder político, o gestor pode perder o mandato, ter o registro eleitoral cassado e ficar inelegível por oito anos. Mas ele ainda pode sofrer ação civil pública por improbidade administrativa, caso seja detectada a desonestidade com os bens e o dinheiro público, e violação aos princípios da impessoalidade e legalidade.>