Murundus na Bahia: ‘os mistérios por trás de um grande enigma’

Pesquisador baiano fala sobre avanços em pesquisas sobre 'cidades dos cupins'

Publicado em 24 de julho de 2019 às 09:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Foto: Divulgação

Nascido em Salvador, mas criado em Seabra, na Chapada Diamantina, o biólogo Henrique Jesus de Souza é hoje umas das referências mundiais do estudo dos murundus, unidades de relevo formadas por cupins com cerca de 9 m de diâmetro e 2,5 m de altura, muito comuns no semiárido brasileiro -- especialmente na Bahia e em Minas Gerais.

A origem desses montículos, onde Henrique brincava de ‘escorregadeira’ quando pequeno, ainda divide os estudiosos do solo em todo o mundo, mas sua dedicação ao assunto -- refletida no doutorado em Ecologia e no mestrado em Ecologia e Biomonitoramento pela Universidade Federal da Bahia (Ufba) -- têm tudo para ajudar a desvendar os mistérios por trás deste grande enigma.

O CORREIO entrevistou opesquisador, que também é especialista em Ecologia e Intervenções Ambientais pela Unijorge, para saber mais detalhes sobre os estudos que vêm sendo desenvolvidos em torno das formações que aparecem em quase todo o território baiano. Confira!O que os murundus trazem de explicação sobre o nosso território? Estamos diante de um dos maiores exemplos de “engenharia de ecossistemas” do planeta! Essa informação já havia sido apresentada à comunidade científica no artigo que publicamos no periódico Annales de la Société Entomologique de France em 2016, onde mapeamos uma distribuição geográfica real de 230.000 km², e estimamos uma distribuição geográfica potencial de 270.000 km² de murundus no semiárido. Henrique Jesus de Souza durante trabalho de campo (Foto: Divulgação) É surreal pensar que nós, habitantes desta região, passamos a vida inteira rodeados, e no caso de algumas localidades, literalmente dentro de metrópoles construídas por organismos tão pequenos quanto os cupins engenheiros. “Engenheiros de ecossistemas”, na ecologia, são organismos que diretamente ou indiretamente influenciam a disponibilidade e o fluxo de recursos para outras espécies, além deles próprios, por causar alterações físicas em materiais bióticos e abióticos.

Os cupins são considerados “engenheiros de ecossistemas” principalmente por causa da sua capacidade de modificar fisicamente o ambiente em que vivem a partir da produção de estruturas biogênicas (montículos, ninhos, câmaras, galerias, túneis, etc).No caso dos murundus, são milhares de estruturas distribuídas em uma área correspondente a 27% do bioma Caatinga e equivalente a pouco mais de duas vezes o território de Portugal, ou ao espaço que poderia ser ocupado por mais de 1.200 estádios do Maracanã (um dos maiores estádios de futebol do mundo!). Isso é fantástico!Considerando as recentes informações apresentadas por Martin [ver bibliografia no rodapé] e colaboradores de que os murundus possuem entre 690 a 3.820 anos, estas estruturas podem revelar muitos aspectos sobre as transformações históricas das paisagens e biomas do semiárido no período climático mais recente.

Os modelos fornecem evidências consistentes de que as distribuições geográficas de murundus e de quatro espécies de cupins construtores de montículos no semiárido brasileiro estão em equilíbrio com o regime climático atual (o qual já estava estabelecido pelo menos há 6.000 anos, conforme dados climáticos da base WorldClim) e a disponibilidade de nutrientes no solo, sendo os murundus, possivelmente, uma resposta adaptativa de cupins construtores de montículos às condições ambientais regionais.Quando, como e por que você resolveu pesquisar sobre o assunto? Em 2012, uma ex-colega de mestrado que atuava no ramo da consultoria ambiental entrou em contato comigo para saber se os murundus eram ninhos de formigas cortadeiras (saúvas). Ela tinha conhecimento sobre a minha dissertação de mestrado defendida na Universidade Federal da Bahia (Ufba), em 2011, que avaliou os efeitos da perturbação do habitat sobre as comunidades de formigas em florestas degradadas da Chapada Diamantina. A equipe de trabalho a qual ela fazia parte estava realizando um estudo que tinha por finalidade analisar a viabilidade técnica/ambiental da implantação de um projeto de geração de energia fotovoltaica em um campo de murundus situado no município de Wagner. Os profissionais que realizavam o estudo estavam preocupados com a possibilidade das formigas danificarem o material que seria instalado (hastes de painéis, fiações e outros equipamentos eletrônicos).

Embora eu suspeitasse que as estruturas fossem, na verdade, o resultado da atividade de cupins, logo foi possível descobrir que buscar uma corroboração científica para isto não seria uma tarefa trivial. Quando consultei a literatura científica naquela ocasião, cheguei à conclusão de que ainda não havia nenhuma referência bibliográfica que pudesse ser utilizada para fundamentar o meu parecer sobre a origem dos murundus. Foi então que escrevi para o pesquisador que foi o meu orientador no mestrado, Dr. Jacques Hubert Charles Delabie, para perguntar se ele sabia de algo relacionado ao assunto. Ele respondeu que também não tinha conhecimento de estudos sobre os murundus da Chapada e que a origem destas estruturas já havia suscitado a sua curiosidade logo quando ele chegou ao Brasil na década de 1980.

Nesta mesma mensagem, ele se despediu fazendo o convite que influenciaria os rumos da minha trajetória acadêmica: “Tudo isso (a origem e formação dos murundus) poderia ser o tema de uma interessante tese de doutorado a ser desenvolvida na Chapada Diamantina... Alguém interessado!?”. Foi a partir de então, que pensando em me candidatar a uma vaga no Doutorado em Ecologia ofertado pela Ufba, escrevi um projeto de pesquisa para investigar a origem dos murundus, no qual ingressei em 2013.Qual a contribuição para a ciência que você espera passar com o seu trabalho?  Espero abrir caminhos para que outros pesquisadores possam futuramente explorar novos horizontes sobre o assunto. Há alguns anos, quando comecei a pesquisar sobre os murundus do semiárido, não havia referências bibliográficas que pudessem ser utilizadas como base para investigar a sua origem. Hoje, quem se interessar em pesquisar sobre o assunto terá um conteúdo disponível para se basear.

Na minha defesa de tese, mostrei uma imagem com um muro e uma escada. A analogia que apresentei para a banca examinadora foi a seguinte: quando eu comecei a investigar sobre a origem dos murundus no semiárido, havia um grande muro que impedia que eu visualizasse o que estava acontecendo do outro lado.Hoje, a minha tese representa a escada que poderá ser utilizada como suporte por aqueles que desejarem entender com mais profundidade o que se passa do outro lado do muro. Estamos apenas iniciando a decifrar os mistérios por trás de um grande enigma.Roy Funch [americano naturalizado brasileiro/baiano que estuda o assunto desde os anos 80] é outra referência no assunto. Já tinha conhecimento sobre o trabalho dele? O que tinha de conhecimento sobre o trabalho de Roy foram as informações descritas em uma curta comunicação (short communication) da revista Journal of Arid Environments publicada em 2015, onde ele relata a ocorrência dos murundus no semiárido brasileiro (uma área estimada em 112.000 km²) e atribui a origem dessas estruturas à atividade de cupins construtores de montículos, mas sem apresentar evidências conclusivas.

Tive conhecimento da correspondência publicada na revista Current Biology, da qual ele é coautor, e fiquei satisfeito pelo seu grupo de pesquisa ter conseguido datar a idade dos murundus. Algo que não foi possível de ser feito na minha tese de doutorado, devido à falta de recursos financeiros e tecnológicos do nosso laboratório naquela ocasião. Roy estima que haja 200 milhões de murundus. Você tem alguma estimativa de quantidade? Se sim, de que forma chegou ao número? Em um artigo publicado recentemente no periódico Austral Ecology, nós fornecemos evidências de que a densidade de murundus (número de estruturas por unidade de área) está fortemente relacionada ao regime de temperatura local com o tipo de solo influenciando seu efeito sobre aquela propriedade. A densidade média é de 15 murundus por hectare (ou seja, 15 estruturas por 0,01 km²).

Considerando que mapeamos uma abrangência geográfica de murundus no semiárido de 230.000 km², é possível estimar grosseiramente a existência de 345 milhões de murundus nesta região. Digo “grosseiramente” porque a estimativa assume que a distribuição geográfica dos murundus é espacialmente contínua, o que não é verdadeiro no mundo real.

Dentro da sua abrangência geográfica, existem áreas que apresentam clima, solo, topografia e relevo que são inadequados à formação de murundus, mas que a título de simplificação estão incluídas no modelo. Os modelos na ciência são representações do mundo real que os cientistas elaboram para tentar traduzir suas observações sobre a natureza.

Para investigar a distribuição geográfica de murundus no semiárido brasileiro adotamos uma abordagem baseada em mapeamento espacialmente explícito e modelagem preditiva. Imagens de satélite em alta resolução disponibilizadas no software de livre acesso Google Earth foram utilizadas para essa tarefa.Uma grade amostra composta de 550 células de igual tamanho (10 km², totalizando 550.000 km²) foi configurada em uma imagem de satélite utilizando ferramentas geoespaciais, e 225 células foram selecionadas aleatoriamente para a pesquisa. Dentro de cada célula da grade, os campos de murundus identificados visualmente foram marcados e georreferenciados.Além da distribuição real, os dados de ocorrência coletados foram também usados para construir um modelo preditivo de distribuição potencial dos murundus a partir de um método matemático denominado “máxima entropia”. Modelos preditivos dessa natureza usam dados de ocorrência conhecidos, além de variáveis ambientais (por exemplo: clima, solo e vegetação), para estimar a probabilidade de ocorrência de objetos ou espécies em espaços geográficos previamente definidos.Quais espécies de cupins existem na Bahia?  O estudo que publicamos no Annales de la Société Entomologique de France, em 2016, forneceu evidências de que pelo menos quatro espécies de cupins construtores de montículos podem estar ou estiveram envolvidas na formação de murundus no semiárido brasileiro: Syntermes dirus, Syntermes wheeleri, Cornitermes bequaerti e Cornitermes silvestrii.

Nós observamos uma forte congruência geográfica entre as distribuições potenciais dessas espécies e de campos de murundus. Alguém mais cético pode argumentar que esta congruência geográfica é apenas o reflexo de uma colonização secundária das estruturas por aquelas espécies.

No entanto, os modelos preditivos que geramos para duas espécies de organismos não relacionados aos cupins (a “formiga gigante”, Dinoponera quadriceps e a palmeira “licuri”, Syagrus coronata), e que também vivem frequentemente associadas aos murundus, sugerem que a colonização fortuita de organismos sobre estas estruturas não produz padrões definidos de congruência geográfica.

Em conjunto, estes resultados forneceram as primeiras evidências quantitativas de que a formação de murundus no semiárido brasileiro poderia ser uma resposta adaptativa de cupins construtores de montículos a condições ambientais particulares em escala regional.

As quatro espécies citadas são bem distribuídas em boa parte da Região Neotropical (a região biogeográfica que compreende toda a América do Sul, além da América Central, incluindo a parte sul do México e da península da Baixa Califórnia, o sul da Flórida, e todas as ilhas do Caribe). Alguns desses cupins, a exemplo de Syntermes dirus, são considerados pragas em plantações agrícolas e no ambiente urbano.Os murundus são interconectados? É possível que os murundus estejam interconectados em algum nível, como foi sugerido na recente publicação de Martin e colaboradores na revista Current Biology. No entanto, as evidências apresentadas por estes autores ainda não me deixaram completamente convencido de que a interconexão entre os murundus tenha atingido o patamar relatado em algumas matérias de divulgação sobre a publicação.

Isso não é uma crítica! É apenas um relato pessoal de uma informação que ainda não foi integralmente compreendida. O fato é que o fenômeno da formação de murundus ocorreu de forma muito semelhante e independente em centenas de localidades do semiárido. Foto: Henrique Souza/Divulgação As evidências que sustentam essa afirmação se baseiam na observação dos padrões de dispersão espacial dos murundus em pequena escala. Nós analisamos detalhadamente 36 campos de murundus distantes entre si por uma distância mínima de 5 km nos estados da Bahia e Minas Gerais, e verificamos que todos eles apresentaram uma distribuição regular que é estatisticamente significativa na escala de distância de até 50 m radialmente, e uma distribuição completamente aleatória em todas as outras escalas de distância superiores.

A interpretação para esses padrões é que os cupins construtores de murundus provavelmente selecionaram aleatoriamente seus locais de nidificação com base em fatores ambientais locais que também se distribuem aleatoriamente no espaço.

No entanto, eles tendem a evitar os “territórios de forrageamento” (áreas usadas pelos indivíduos de uma colônia para coletar recursos alimentares ou para construção de ninhos) das colônias mais próximas preexistentes, aumentando ou diminuindo as distâncias destas, a depender da disponibilidade de recursos do local, daí o padrão de distribuição regular na escala mais reduzida.Como numa colmeia, é provável que exista uma espécie de “centro de controle”? Se existe um “centro de controle” dentro de um cupinzeiro ou mesmo de uma colônia subterrânea, esse lugar é a câmara real. Nela vivem a rainha e o rei da colônia, responsáveis pela fundação do ninho e pela multiplicação dos cupins.Quando se trata de insetos sociais, como os cupins, as abelhas e as formigas, o que importa é a sobrevivência da colônia. Por isso, o seu sucesso e vitalidade passa muito pelo o que ocorre na câmara real, como a proteção e alimentação adequada da rainha, a postura de ovos, etc.Em várias espécies de cupins construtores de montículo a câmera real é construída abaixo da superfície do solo com materiais de fácil cimentação (por exemplo argila, saliva e fezes) para garantir maior resistência à ação de intempéries e predadores.

Nós encontramos estruturas biogênicas (por exemplo, galerias, túneis e câmaras real) com diferentes graus de conservação dentro de alguns murundus, atestando a intensa atividade de construção de colônias de cupins ao longo do tempo. Existem outras pesquisas no mundo sobre essas formações ou em relação a formações semelhantes?  Sim. Sobre os murundus do semiárido brasileiro, a minha tese de doutorado, defendida em maio de 2017 no Programa de Pós-Graduação em Ecologia e Biomonitoramento da Ufba, representa um trabalho pioneiro sobre o assunto. Alguns capítulos foram publicados recentemente em periódicos internacionais na forma de artigos científicos originais (original articles). Além do nosso trabalho, e daquele realizado por Roy Funch e seu grupo de pesquisa, há também algumas publicações sobre outros aspectos relacionados aos murundus, que não tratam diretamente da sua origem. 

Através de uma busca na Plataforma Lattes é possível identificar alguns estudantes e pesquisadores de universidades sediadas principalmente em Minas Gerais (Universidade Federal de Viçosa, Universidade Estadual de Montes Claros e Universidade Federal de Uberlândia) que estudaram, no Norte daquele estado, alguns processos de formação dos solos em áreas de ocorrência de murundus. Há também um grupo de pesquisa da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb) que investigou recentemente a diversidade de organismos de solo em campos de murundus na região de Contendas do Sincorá – porção sul da Chapada.

A respeito das pesquisas sobre formações semelhantes, há estudos em várias partes do mundo. A começar pelo nosso país, em savanas inundáveis do Brasil Central, os microrrelevos murundus (embora outros termos também sejam empregados para designar essas estruturas, como “monchões” e “covoal”) foram originalmente considerados um produto da atividade localizada de cupins no final da década de 1980 por Ary Teixeira de Oliveira Filho, pesquisador da Universidade Estadual de Campinas. No entanto, evidências recentes fornecidas por pesquisadores da Universidade de Brasília (UnB) apontam para uma origem geomorfológica através de erosão diferencial mediada por águas de infiltração e escoamento superficial. Henrique Souza sobre um dos montículos analisados (Foto: Divulgação) Em savanas africanas, os montes de terra denominados “heuweltjies” (pequenas colinas) já foram considerados ninhos fossilizados de térmitas no início dos anos 1990, mas, evidências recentes sugerem uma gênese através da vegetação induzida pela deposição de sedimentos eólicos.

Analogamente, os “fairy circles” (círculos de fada) – padrões circulares nos solos rodeados por anéis de gramíneas – encontrados principalmente no deserto da Namíbia, foram sugeridos resultar da atividade de forrageio de uma espécie particular de “cupim de areia”, Psammotermes allocerus, em 2013. 

Contrária a esta ideia, está em voga um debate na ecologia sobre como modelos de retroalimentação dependentes da escala – através dos quais plantas facilitariam indivíduos vizinhos enquanto competem com indivíduos distantes – poderiam explicar o padrão espacial regular típico dos “círculos de fada”. 

Como se pode observar, a biosfera é repleta de estruturas de origem enigmática que a própria ciência, considerada por muitos, tão “confiável” e “infalível”, tem encontrado dificuldades para desvendar.

Confira as principais referências de trabalhos desenvolvidos por Henrique Jesus de Souza, Roy Funch e outros pesquisadores de murundus da Bahia:Souza, H.J. (2017) A origem dos murundus no semiárido brasileiro. Tese de Doutorado. Universidade Federal da Bahia, Salvador, Brasil. 143p. Souza, H.J. & Delabie, J.H.C. (2016) ‘Murundus’ structures in the semi-arid region of Brazil: testing their geographical congruence with mound-building termites (Blattodea: Termitoidea: Termitidae). Annales de la Société Entomologique de France, 52, 369-385. Souza, H.J. & Delabie, J.H.C. (2018) Fine-scale spatial distribution and density of murundus structures in the semi-arid region of Brazil. Austral Ecology, 43, 268-279. Funch, R.R. (2015) Termite mounds as dominant land forms in semiarid northeastern Brazil. Journal of Arid Environments, 122, 27-29. Martin, S.J.; Funch, R.R.; Hanson, P.R. & Yoo, E. A vast 4,000-year-old spatial pattern of termite mounds. Current Biology, 28, R1283-R1295.