Museu vivo, Salvador é transformada em uma janela para o mundo

Turistas chegam na cidade para experienciar cultura e história, e Salvador se transforma numa potência do turismo

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  • Fernanda Santana

Publicado em 29 de março de 2021 às 05:00

- Atualizado há um ano

. Crédito: Nara Gentil

Há dez anos, Azebe tinha acabado de comprar, numa galeria de arte em Nova York, uma imagem da primeira igreja construída por negros escravizados no Brasil - a Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. A foto ficara guardada, numa gaveta, como a lembrança de uma arte preta que a despertou para o passado. Uma década depois, em 2019, Azebe desembarcava em Salvador, decidida a conhecer suas origens.  

Filha de imigrantes da Jamaica e da Etiópia, moradora da Flórida, nos Estados Unidos, Azebe Etsubneh, 32 anos, estava disposta a revisitar a história da diáspora africana. O plano não era investigar sua ancestralidade a partir de livros, o que não caberia em uma semana de viagem. Queria revisitá-la no  dia a dia, no que ficou gravado na paisagem, nos corpos, na música.

Salvador, ela acreditava, era o lugar ideal. Seria sua janela do mundo, como foi para tantos outros, até  a pandemia fechar, momentaneamente, a cidade para o turismo. “Queria uma experiência imersiva, e que me fizesse aprender sobre a cultura africana”, conta. Azebe, a primeira da esquerda para direita, com um grupo de outros turistas, no Pelourinho (Foto: Acervo Pessoal) Ela sabia o que era ser negra nos Estados Unidos. Mas, precisava saber como era ser Azebe, em Salvador, onde 80% da população é preta, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

As buscas de Azebe em Salvador têm a ver com a consolidação da cidade como um local para ser vivido, não conhecido pela borda. Boa parte dos turistas não quer mais viver a experiência turística padrão, visitando os endereços mais famosos, explica Lúcia Aquino, professora da Universidade do Recôncavo da Bahia, doutora em Turismo pela Universidade de Barcelona e escritora. “Querem viver uma experiência, viver como um nativo, a cultura local. É o turismo criativo que possibilita que a pessoa chegue num lugar e faça isso”, diferencia.Hoje, o turismo é uma das principais atividades econômicas de Salvador - em 2019, circulou R$ 13,3 bilhões e trouxe 9,9 milhões de visitantes, entre eles, 1 milhão de estrangeiros. De 2014 a 2019, 53,6 milhões de turistas passaram por aqui, segundo a Secretaria Municipal de Cultura e Turismo (Secult). Uma pesquisa promovida pela Secult, em parceria com o Instituto Qualiest, mostra que Salvador é o destino que os brasileiros mais querem visitar depois da pandemia.

A marca de Salvador "está sendo essa: coisas que só existem aqui e despertam a atenção para vivenciar a cidade”, acredita o secretário municipal de Cultura e Turismo, Pablo Barrozo. A compreensão disso é, segundo Barrozo, fundamental para abrir as portas de Salvador para o mundo. O plano de retomada do turismo é pensado para o segundo semestre deste ano, caso a pandemia seja controlada.

Quando esteve em Salvador, Azebe dançou samba, que nasceu na Bahia, pelas mãos dos que vieram antes dela; cozinhou moqueca; fez aula de capoeira; navegou pela Baía de Todos os Santos.

À noite, na rua, ficava a ver os moradores, e ouvir os sons - cenário diferente das restrições impostas pela pandemia. “O ritmo da cidade me fazia sentir viva. Me sentia tão conectada ao passado”.

As pessoas querem conhecer o "museu vivo"

A história faz de Salvador uma cidade de primeiras vezes que a projetou, ao longo do tempo, no imaginário turístico. Durante mais de três séculos de colonização, ela participou ativamente do circuito mundial, pela sua posição geográfica. Aqui aportavam produtos e gente de diversas partes.

“Até quando deixa de ser a capital do Brasil, em 1763, ela continua sendo uma cabeça”, conta o historiador e escritor Daniel Rebouças. Marcada pelo barroco português e a cultura africana, Salvador vira um “museu vivo”, opina Rebouças, o que a torna ainda mais atrarativa.

Quem chega a Salvador ainda busca rastros culturais e históricos do passado - de lembranças gloriosas e um passado escravocrata abominável. O Centro Histórico é, ainda hoje, um chamariz , diz Matheus Vidal, guia de Turismo e vocalista do Olodum.

A fotógrafa Stephanie Fonde chegou a Salvador em 2012, para uma visita, e morou na cidade por cinco anos, no bairro do Santo Antônio Além do Carmos. Queria conhecer Salvador pois ela lhe parecia “única". Na cidade, andava sempre atenta às possíveis descobertas, que sempre se revelavam. “Me tornei a fotógrafa que sou  fotografando em Salvador. Eu aprendi muito mais saindo, do que eu poderia aprender em  escola”, conta.  Stephanie na casa em que morou por cinco anos, em Salvador, no Santo Antônio Além do Carmo (Foto: Acervo Pessoal)  A experiência de Foden foi contada no NY Times, jornal norte-americano que exaltou, em 2019 e 2020, Salvador na lista dos melhores lugares do mundo para se conhecer.

Salvador nunca quis ser Paris

Em 1940, Salvador ensaiava os primeiros passos para institucionalizar o turismo. Já existiam hotéis luxuosos como o Palace, na Rua Chile, por exemplo. Mas, é a partir da década de 40, com a abertura de uma repartição específica para prestar informações da cidade para os turistas, que a cidade se torna “pioneira”, conta Lúcia Aquino. Foi a primeira repartição do tipo, no país.

À época, a burguesia e estudantes de História - como o historiador Cid Teixeira - formam um núcleo de guias de turismo, lembra Aquino. 

Na década de 50, o diretor da Diretoria Municipal de Turismo Vasconcellos Maia tenta fortalecer o que Salvador tinha de mais típico. Ele promovia, por exemplo, visitas a terreiros de Candomblé. Era o início do turismo cultural, síntese do hoje chamado turismo criativo, e uma nova abertura de Salvador para o mundo.  Em 1953, Salvador se torna a primeira cidade do Brasil a formular um Plano Diretor do Turismo. O desenvolvimento do setor foi freado em 1964, com o Golpe Militar.

Enquanto o Rio de Janeiro queria se aproximar de Paris, Salvador sempre quis ser ela mesma. Cantada pelo Tropicalismo, fotografada por Pierre Verger, pintada por Carybé e contada por Jorge Amado, enumera Goli Guerreiro, antropóloga e autora, o cosmopolitismo da cidade fica cada vez mais forte.

Em 1995, Salvador é a primeira do Brasil a adotar o Programa Nacional de Desenvolvimento do Turismo, para pensar intervenções  de promoção do turismo. Nesse período, os grupos afros - como o Ilê Aiyê, o primeiro deles, em 1974, e o Olodum, criado em 1979, - ganham  popularidade mundial e atraem turistas interessados em conhecer Salvador através das nossas heranças étnicas.  "O Ilê contribui muito para a vinda de turistas. O Curuzu ficou muito famoso, a saída do Ilê, o espetáculo do Carnaval. Despertamos a curiosidade de conhecer a periferia e recebemos um número muito grande de estrangeiros e brasileiros", diz Vovô do Ilê, criador go Ilê Ayiê>A profissionalização das festas religiosas e do Carnaval de Salvador, projeto fortalecido a partir de 1997, alavancam ainda mais a cidade, comenta Guerreiro. No Carnaval de 2020, 854 mil turistas circularam por Salvador. Há oito anos, as mudanças de infraestrutura promovidas na cidade são um novo incentivo aos turistas, pontua Guerreiro. Moema Brocchini abriu as portas da própria casa par receber turistas e ensiná-los a cozinhar (Foto: Paula Fróes/CORREIO) Justamente nesse período, Moema Brocchini, 60, abriu as portas da própria casa, na Avenida Centenário, para turistas. Depois de 18 anos em Paris, onde tinha um restaurante, ela retornou a Salvador. Numa tarde, lendo sobre a profissão do Guia de Turismo, teve uma epifania.  

“Tínhamos comprado uma casa, eu e minha mãe, e decidimos fazer uma experiência”, lembra. A ideia é que, lá, os turistas aprendam a cozinhar com Moema, que, enquanto cozinha, conta histórias da cidade refletida naqueles pratos. Na casa, ficam espalhadas obras da mãe dela, a artista plástica Maria Adair.  A pandemia interrompeu o projeto.

Brocchini acredita que a culinária é um dos aspectos mais importantes para viver Salvador. Não dá para conhecer o mundo, ela acredita, sem descobri-lo por dentro. Muito menos sem considerar Salvador como um ponto de partida.

O Aniversário de Salvador é uma realização do jornal Correio com o patrocínio da Wilson Sons, Jotagê e CF Refrigeração e o apoio da Sotero, Salvador Shopping, Salvador Norte Shopping, JVF e AJL.