'Não queremos mais a escola da forma que ela é hoje', analisa Nelson Pretto

Professor titular da Faculdade de Educação da UFBA, Pretto afirma que a responsabilidade de reinventar a escola não pode ser só do professor

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  • Flavia Azevedo

Publicado em 2 de maio de 2020 às 06:00

- Atualizado há um ano

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O desafio de reinventar a escola que vem sido imposto pelo novo coronavírus não pode ser jogado só no ‘colo do professor’, como argumenta o professor titular (e ativista) da Faculdade de Educação da UFBA, doutor em educação, bolsista do CNPQ e membro da Academia de Ciência da Bahia, com Nelson Pretto. “Não queremos mais essa escola da forma como ela está hoje estruturada”, afirma. Em entrevista ao CORREIO, Pretto questiona de muitas maneiras, a adaptação das escolas, ao momento atual. Veja a entrevista completa.   

Todos nós estamos sendo desafiados, neste momento. Qual o desafio comum a professores, alunos e famílias, no âmbito da educação?

Nós, educadores, convivemos com desafios desde que nossa profissão existe. Não temos vida fácil, não. O momento traz mais desafios. De um lado, porque também nós estamos atentos e preocupados com a situação de saúde da população mundial, do país e de nossos alunos e famílias. Pretto pontua ainda, que a mudança das escolas é extremamente necessária nesse momento de pandemia (Foto: Acervo Pessoal) De outro, porque não tivemos, ao longo do tempo, nossas demandas consideradas. E olha que nossa luta não foi e não é pequena. Lutamos através de nossos Sindicatos e Associações e através das nossas reflexões, enquanto intelectuais públicos, pesquisadores da educação que, nas nossas ações cotidianas, procuramos fazer chegar até a população, através de diversas formas de comunicação, os resultados das pesquisas e, principalmente, a crítica do que está hoje sendo posto como solução para a educação, para ficar somente nesse campo.Hoje, a situação se agrava pelo fato de as escolas não estarem funcionando, o que é absolutamente correto como estratégia para se evitar a propagação do Covid19. Alunos(as) de todas as idades e de todas as camadas sociais permanecem, teoricamente, em casa.Dizemos teoricamente porque, mais do que nunca, nessas horas, precisamos ter bastante claro o que entendemos por casa e o que significa, de fato, ficar em casa. Num país com uma enorme desigualdade social como a do Brasil, falar em casa significa, para uns, uma edificação com salas e quartos enquanto que para outros, especialmente as classes mais pobres, significa, muitas vezes, um único cômodo, onde convivem muitas pessoas, de pequenos a idosos.

Com esse enorme contingente juvenil sem aulas nas escolas, começam a surgir, aqui e em diversos países, soluções para que a educação continue. Portanto, as hashtags, #fiqueemcasa e #aescolacontinua têm significados absolutamente diferentes, para uma ou outra realidade. Isso sem mencionar a realidade laboral, para não alongar nossa conversa, mas que é fundamental para entender a complexidade do momento histórico.Dessa forma, empurram para o colo dos professores e professoras esse desafio que, sem essa clareza de quem são e como estão nossos alunos e suas famílias, não temos a menor condição de avançar em nenhuma proposta mais concreta que não seja a de acolhimento.E essa é absolutamente necessária. Mas também nós, professores e professoras, precisamos de acolhimento e suporte e não vejo nenhuma ação nesse sentido, o que é lamentável e um absurdo.

Este momento deve aumentar a distância entre estudantes da rede pública e particular ou a migração de alunos da rede particular para a pública traz outras possibilidades ao cenário?

Claro, distancia essa que já era enorme. Não nos iludamos, nunca tivemos justiça social e, por isso mesmo, nunca tivemos o que poderíamos chamar de justiça educacional.

Ou seja, a correta universalização da educação básica e ampliação do acesso às universidades públicas, não foi acompanhada de condições concretas para que as escolas, as universidades, os professores e os alunos pudessem, efetivamente, atuar plenamente em suas funções e responsabilidades.Paralelo a isso, as questões mais amplas do próprio sistema, com o país (e o mundo) vivendo profundas desigualdades sociais e econômicas, não nos possibilitam, em hipótese alguma, dizer que vivíamos uma “normalidade”.Por isso, a questão não é sobre as redes pública ou privada, mas sobre as condições concretas das famílias e dos alunos que frequentam cada uma dessas redes.

A sala de aula, como conhecemos até março deste ano, ainda será uma realidade no mundo pós-pandemia? Ou, pelo menos, é uma realidade a ser buscada ou já devemos pensar no espaço da escola de outra maneira?Não será, não terá como ser e isso, para nós pesquisadores da educação, é muito bom. Não queremos mais essa escola da forma como ela está hoje estruturada.As políticas públicas, principalmente as desse governo - mas que vem sendo implementadas desde meados dos anos 1990 do século passado -, são políticas marcadas por grandes reformas com forte influência dos organismos internacionais, a exemplo do Banco Mundial e da Organização Mundial do Comercio (OCDE), através de diversos documentos que geraram, de forma resumida, primeiro os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), no governo FHC e, agora, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), Reforma do Ensino Médio e Base Nacional de Formação de Professores (BNC-Formação).Aqui, começam a aparecer as ideias de “modernização da educação” centrada em mecanismos de controle, tirando totalmente a autonomia e o protagonismo dos professores. Passamos a ouvir palavras como metas, indicadores, ranking, produtividade, eficiência e qualidade total, palavras que sempre foram muito estranhas a nós, educadores. Isso tudo com uma forte presença do setor empresarial, através das já conhecidas e famosas Fundações.Mudar essa realidade exige uma luta política muito intensa pois o que mais precisamos agora é retomar o papel dos professores como importantes lideranças intelectuais e políticas para que possam ser, junto com alunos e famílias, os protagonistas dessas transformações.

Precisamos de uma revolução da educação, o que em nosso grupo de pesquisa da Faculdade de Educação da UFBA denominamos de “políticas que fortaleçam os professores e professoras” como produtores de culturas e de conhecimento e não como repassadores de informações.Assim, a questão central, para nós, é pensar, antes de tudo, sobre a própria concepção de educação e de currículo. O(a) professor(a), de uma maneira geral, usa com certa tranquilidade as redes digitais, mas não dá conta de trazer isso para o cotidiano dos processos formativos, pois o que ele sabe fazer é engessado pelo currículo fechado, a tal grade curricular, agora intensificado pela BNCC.Assim, fica muito fácil culpar o professor e a professora pelo fracasso do uso das tecnologias na educação, coisa que já se fazia em tempos de relativa normalidade e, mais ainda agora, em tempos de pandemia e confinamento. Estamos vivendo uma crise, crise que possibilitaria uma revolução radical (de raiz!) em todos os processos educativos.

Não podemos pensar em trazer a sala de aula tradicional para as redes online. Precisamos, no mínimo, implantar outros processos formativos que estejam centrados numa perspectiva de fortalecimento da autoria, da formação para a cidadania, com sistemas descentralizados que fortaleçam a escola enquanto um “ecossistema pedagógico de aprendizagem, comunicação e produção de culturas e conhecimentos” e nos afastando de forma radical, de novo, das grandes plataformas a exemplo de Google, Microsoft, Facebook, entre tantos outros, que estão ávidos para adentrar no sistema educacional pois, além de ter acesso a todos os nossos dados, ainda criam um mercado cativo para o futuro.

O papel dos pais – quando eles existem e podem, de fato, contribuir com seus filhos no cotidiano – não é o de substituir a escola e o trabalho do professor. O que eu faria era continuar a formação mais ampla, uma formação cultural e cidadã, coisa que, na minha modesta opinião, deveria ser o que estivéssemos fazendo nessa interação com as escolas.Estaria cobrando debates mais coletivos sobre as desigualdades econômicas e sociais, sobre as questões ecológicas, que se constituem hoje num dos maiores desafios futuros para as nações e o planeta.Certamente, não estaria cobrando cumprimento de carga horária nem de números de dias letivos, mas estaria solidário com os professores e os colegas dos meus filhos para a construção de um país. solidário e justo. Esta, neste momento, é uma das tarefas mais importantes da sociedade e a educação pode, e muito, ajudar nesse movimento.

Quem é Nelson Pretto é professor titular (e ativista) da Faculdade de Educação da UFBA, doutor em educação, bolsista do CNPQ e membro da Academia de Ciência da Bahia