'O ambiente era muito hostil', relata 1º negro a se formar em Medicina pelas cotas na Ufba

Saiba como está a vida e confira o relato de Ícaro Luis 15 anos depois de as cotas terem sido implantadas

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  • Alexandre Lyrio

Publicado em 24 de novembro de 2019 às 08:06

- Atualizado há um ano

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No dia da sua colação de grau, em janeiro de 2012, um filme passou na cabeça do médico Ícaro Luis Vidal, hoje com 32 anos. Aliás, um filme com cenas não tão agradáveis. O primeiro estudante a ingressar pelo sistema de cotas no curso de Medicina da Universidade Federal da Bahia (Ufba) tem um relato ao mesmo tempo crítico e emocionante sobre sua trajetória.

Ícaro iniciou o curso em 2005, quando a Ufba implantou o sistema de cotas. Se os atuais ciotistas relatam uma convivência tranquila com os não cotistas, ao que tudo indica isso era bem diferente logo que as cotas foram implantadas. Segundo Ícaro, 15 anos atrás "o ambiente era bastante hostil. Por um instante pensei em desistir".  Ícaro: primeiro negro cotista de Medicina "Os estudantes sempre diziam que seus colegas com melhor capacitação e com escores maiores haviam ficado de fora por causa das cotas. Os professores por sua vez diziam que a qualidade do curso despencaria com a entrada de alunos de 'baixo nível' intelectual", conta, 15 anos depois de implantado o sistema, tema de uma reportagem especial publicada no CORREIO deste domingo.

Após a formatura, Ícaro foi trabalhar em um Posto de Saúde da Família e fez residência na área. "Os pacientes diziam que pela primeira vez eles viam um 'médico favela'". Desde o ano passado, Ícaro voltou a estudar e se tranferiu para a Universidade de La Laguna, na ilha de Tenerife, Espanha. Em 2015, a Universidade de La Laguna foi incluída no ranking das 500 melhores universidades do mundo. 

Confira abaixo o relato completo: 

"Eu entrei com a primeira turma de politicas afirmativas da UFBA. Ao começar o curso, o ambiente era bastante hostil. As mudanças geram desconforto para quem está em sua zona de conforto. As provocações, tanto dos não cotistas como dos professores, não eram nominativas. Eram discursos impersonalizados. O estudantes sempre diziam que seus colegas com melhor capacitação e com escores maiores haviam ficado de fora por causa das cotas. Os professores por sua vez diziam que a qualidade do curso despencaria com a entrada de alunos de 'baixo nível' intelectual.A estrutura do curso tampouco foi acolhedora, os turnos integrais com aulas em diferentes localidades, encarecia ainda mais o curso. Por um instante pensei em desistir, falta representatividade. A todo momento a estrutura se encarregava de mostrar que aquele ambiente não me comportava, era muito estranho. Por obra do destino, tive que trancar um semestre por questões de trabalho e isso me renovou o fôlego.

A turma na qual me reintegrei era menos hostil com as políticas de cotas e assim consegui levar melhor o curso. Ainda que o ambiente fosse menos hostil, ouvia constantemente 'piadas' a respeito do meu cabelo estilo blackpower e nas atividades práticas nunca era considerado o médico, sempre era confundido desde o profissional da limpeza ao técnico de enfermagem, que era o nível máximo que os pacientes e os recursos humanos locais consideravam possiível um negro estar.Mesmo com as cotas, via poucos negros na universidade. Quando saí, o panorama já estava mais diversificado, mais colorido. A colação de grau foi muito emocionante, passou um filme de tudo que foi vivido. Toda a familia era só lagrimas, demorei a me conter. Olhava aquele anel de formatura, olhava as paredes da universidade e o sentimento de etapa concluída era libertador.

Depois da formatura, fui trabalhar em uma unidade de saude da familia dentro do distrito sanitario que cresci. Para os pacientes era surpreendente, eles diziam que pela primeira vez eles viam um 'médico favela' e que se sentiam mais àvontade. Alguns me saudavam com um "E aí, minha cor!". Trabalhava com eles de maneira a derrubar a barreira imaginária que existe entre os profissionais de saúde e os pacientes.

Somos pessoas que apenas temos conhecimentos diferentes, ninguém é melhor ou pior que ninguém. Trabalhei por seis anos nesta unidade de saúde, onde fiz minha residencia em Medicina de Familia e Comunidade e uma especialização em prepectoria  de Residencia Médica no SUS. Coordenava este trabalho com os plantões no Samu Camaçari e a Tutoria de práticas de Medicina de Família da Unifacs.

Em 2018, dei uma pausa em minhas atividades assistenciais e voltei a estudar, dessa vez cavei a oportunidade na Universidad de La Laguna, na Espanha, assim juntei o amor com o plano de construir minha carreira como futuro professor universitário. Hoje estou no segundo ano do mestrado em Investigação, Gestão e Qualidade em Cuidados para a Saúde e atuando como médico de urgencias no SCS, equivalente ao SUS no Brasil.