O Assunto: por que o cabelo do preto incomoda?

Episódios de racismo com grande repercussão nos últimos dias em Salvador não são casos isolados

Publicado em 8 de fevereiro de 2020 às 05:30

- Atualizado há um ano

. Crédito: Bruno Wendel/CORREIO

Durante pouco mais de seis minutos, integrantes do grupo Rapaziada da Baixa Fria (RBF) cantam e respondem, num videoclipe lançado há dez anos todo tipo de ofensas e ataques sofridos por negros donos de um ‘blackão’ - cabelo Black Power. A música, não por acaso chamada de ‘Cabelo da Desgraça’, trata do racismo, e do ‘incômodo’ que o racista sente com o cabelo do outro - digo, com o cabelo do negro.

Em pouco mais de uma semana, episódios de racismo ganharam as manchetes, comoveram e revoltaram pessoas em Salvador e fora daqui: começou pelas gêmeas de apenas 3 anos, vítimas do racismo de uma segurança na estação Rodoviária do metrô; passou pelo adolescente agredido e xingado por um policial militar numa abordagem em Paripe, no Subúrbio: “Desgraça de cabelo!”; ganhou fôlego com o vídeo de outro PM chutando a cabeça - vejam, a cabeça - de um homem negro no Pelourinho.

Leia também: Da periferia para salões de bairros nobres, platinar cabeleireira custa até R$ 600

Por mais que se tente reduzir os episódios a casos isolados - como fizeram o governador do estado e o comando da Polícia Militar - quem ousa sair pela rua com seu ‘blackão’ cantado pela RBF sabe que o ódio disfarçado de incômodo é diário. A diferença está no registro, na repercussão que cada caso ganha.

Em 2010, quando lançou o clipe da música que desfila um catatau de ofensas, agressões e xingamentos ouvidos por quem sustenta seu cabelo com orgulho, o músico Aspri Oliveira se surpreendia - mas nem tanto -, com um sorriso no rosto, com o incômodo alheio: “É impressionante, porque o cabelo é nosso e acaba incomodando as outras pessoas”. Não é incômodo, é racismo, mesmo. É crime. Deveria dar cadeia.

N'O Assunto desta semana, o CORREIO traz dois artigos - da colunista Flavia Azevedo e do jornalista e escritor Flávio VM Costa. Confira:

Cabelo incomoda quando é signo de liberdadePor Flavia Azevedo

Ao assumir os grisalhos, aquela mulher demonstra sua superioridade diante de uma lógica que desqualifica as mais velhas e as escraviza, em salões de beleza. Ao raspar a cabeça, a outra se afirma livre do padrão de feminilidade, desdenha de um fetiche masculino e também escapa da indústria cosmética, que rouba boa parte do nosso dinheiro. O nome disso é liberdade e liberdade incomoda. Não é só cabelo.

Corpo também é manifesto e, por mais que digamos "é gosto pessoal", o cabelo nos entrega. Pessoas que envelhecem mantendo o corte da infância dizem muito sobre etapas em aberto. Multidões de mulheres com cabelos idênticos demonstram que desejam ser aceitas, com desespero. Homens de fios impecáveis me brocham, mas isso já é outro enredo. Meu filho, aos quatro anos, decidindo como queria seu próprio cabelo, me deixou morta de orgulho e com um tiquinho de medo.Cabelos não são criticados pela aparência, deixe de ser besta. É, sim, pelo discurso que trazem.Bem por isso, são mutáveis os critérios de "beleza". As perucas mais bizarras já foram sinônimo de elegância, porque eram acessíveis apenas para a nobreza. Percebe que aceitação ou repúdio tem a ver, apenas, com a narrativa? Não à toa, entre tantos efeitos colaterais, mulheres em quimioterapia sofrem especialmente com a perda dos cabelos. É que, junto com eles, "vai a feminilidade", foi assim que aprenderam.

As gêmeas de cabelos crespos não teriam sido agredidas no metrô de Salvador se aqueles penteados não fossem outdoors onde qualquer um pode ler: insubordinadas. Da mesma maneira, o ódio do PM, na abordagem ao adolescente de cabelo black, foi disparado pelo discurso subliminar de orgulho e autoestima, vindo de alguém que certa estrutura deseja morto ou capacho. Como sabemos, nenhum dos dois casos é "isolado".

Até recentemente (ainda deve acontecer), mulheres tinham cabelos alisados em salões de beleza, mesmo quando não pediam. Eu já alisei porque quis, mas também já saí sem meus cachos (2C), quando queria só hidratar. Era o óbvio que ninguém desejasse "cabelo duro". O liso (e louro, de preferência) era sempre "melhor". Isso, até o movimento negro chegar também nesse lugar e, acredite, recentemente a cabeleireira (negra), que espichou meu cabelo compulsoriamente, apareceu toda trançada.

Na situação das meninas e também na do adolescente, está a evidência do incômodo com esse território conquistado. Um lugar explicitado por belas coroas, cabelos que não serão mais negados, escondidos nem alisados por "obrigação". Negros e negras já lutaram. Agora é o seguinte: não tem perdão, racismo é crime. Fogo nos racistas. Que paguem caro.

***

Cabelo na réguaPor Flávio VM Costa

Percebam o andar ridículo, de galo trôpego, do policial militar após espancar o franzino cabeludo de Paripe. Sem o poder lhe conferido pela farda, resta um projeto de gente movido pelo ódio. Ele bateu no adolescente porque foi ensinado a bater, porque gosta de bater, porque permitem que bata e porque bater é a única reação possível diante de um preto bonito de cabeleira exuberante.

Ali vemos um homem sem rumo. Seu destino apropriado seria a cela, mas daqui a um tempo o PM andará por novas ruas escuras de Salvador, com as asas abertas de frango bombado, escolhendo outra vítima a ser surrada - ou coisa pior. E o motivo não importa: pode ser pelo cabelo, por uma corrente de ouro ou porque, simplesmente, o preto lhe atravessou o caminho.O racista deseja sempre aniquilar a individualidade do preto, mesmo que não esteja consciente disso. Como não é livre por dentro, a liberdade exterior do outro é uma ofensa.Dread locks, cabeleira black power, longos cachos ou até mesmo um corte curto de cor chamativa lhe causam terror. Se estiver em posição de autoridade, agirá com a covardia dos carrascos autorizados.

O segurança da rodoviária que faz troça das lindas gêmeas, no final de janeiro, e o policial militar que espanca o jovem de Paripe estão irmanados pelo mesmo tipo de escravidão mental.

Seja qual for o lugar ocupado na hierarquia social, o opressor exerce o controle dos corpos pretos por meio da violência (verbal ou física) porque para ele é inconcebível a variedade da vida.

A mãe não pensa mudar o penteado das gêmeas Linda 1 e Linda 2. Não há motivo. Elas são maravilhosas e não se grita “misericórdia” diante da beleza. O jovem de Paripe já disse que pensa em cortar o cabelo. Também disse que gosta do jeito que está agora. Ele é um homem livre. O PM, o segurança e todo e qualquer racista nunca serão.